Texto e contexto, por Luis Fernando
Veríssimo
Na peça “Ricardo II”, de Shakespeare, há
uma fala famosa que é muito citada como um hino patriótico à Inglaterra. Quem a
diz é o duque John de Gount, tio do rei Ricardo II e pai de Henry Bolingbroke,
desafeto exilado do rei, que acabará derrubando do trono.
John de Gount, à beira da morte, exalta
as riquezas e as glórias do seu país (“este outro Eden”, “esta pedra preciosa
posta no mar prateado”, a salvo “da inveja de terras menos felizes”, “este lote
abençoado, este chão, este reino, esta Inglaterra”) num tom de entusiasmo
crescente que empolga até quem não é inglês — se lido até a metade.
O resto da fala, raramente citada, é um
lamento pelo declínio desta maravilha, cuja grandeza o rei está dilapidando.
“Esta Inglaterra acostumada a conquistar, hoje é vergonhosamente derrotada por
si mesma”, diz Gount, que termina desejando que “o escândalo desapareça junto
com a minha vida, alegrando minha morte iminente”.
Já contei (umas cem vezes) que vi o
Millôr Fernandes levantar uma plateia num encontro literário em Passo Fundo com
a leitura de um texto de candente defesa da democracia e dos direitos humanos,
e depois da ovação revelar que acabara de ler o discurso de posse do general
Médici na Presidência da República, quando se inaugurava o período mais escuro
da ditadura.
Um período em que com frequência o
discurso do poder contrastava com a realidade à sua volta, e o texto era
desmentido pelo contexto. A aula do Millôr foi sobre a força autônoma da
retórica, capaz de mobilizar uma multidão que ignora seu contexto. Mas pior do
que isto é quando o contexto é conhecido e mesmo assim as palavras compõem
outra realidade, e empolgam e mobilizam do mesmo jeito.
A história brasileira está cheia de
exemplos do triunfo da oratória bacharelista sobre a realidade do momento, do
dito sem a menor relação com o feito.
Para ser justo com o Médici e o autor do
seu discurso, é preciso reconhecer que em todo discurso de posse presidencial
há um desencontro parecido entre intenção e realidade. Quem não se lembra do
discurso de posse do Collor?
Shakespeare tem outros exemplos de textos
em que uma parte se vira contra a outra, como a exaltação que vira lamento de
John de Gount. O mais notório é a fala de Marco Antonio sobre o corpo de César
assassinado, que começa dando razão aos assassinos e termina incitando a massa
a matá-los. Em outro trecho da peça alguém diz que se deve ter muito, mas muito
cuidado com os bons oradores.
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