sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O Princípio da supremacia do interesse público deve ser reformulado?


Por Flávio Henrique Unes Pereira


Não é de hoje que a Administração Pública se vale do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado para se defender. Em informações prestadas pela autoridade coatora nos mandados de segurança, nos recursos judiciais dos entes federados, em pareceres da advocacia pública.
Sabemos, também, que diversos dispositivos legais estabelecem o “interesse público” como condição para rescisão ou alteração de contratos,[1] criação de empresas estatais (artigo 173, caput, CR/88), entre outros. Entretanto, o déficit de motivação de decisões administrativas e judiciais, ao interpretarem o sentido de tais termos, revela a insuficiência do conceito abstrato de interesse público.
O “público” seria clarividente para prescindir de interlocução efetiva da Administração com os atores interessados, isto é, o “público” dispensaria o relato fiel das pretensões aduzidas e a consideração de todos os argumentos suscitados pelos envolvidos ou interessados. Seria algo da ordem das pré-compreensões, “todos já sabem do que estamos falando”.
Ocorre que a delimitação conceitual da expressão “interesse público” ou “interesse geral”, embora útil, não consegue resolver a questão, dada a própria complexidade do tema e a incapacidade da natureza abstrata dos termos diante da realidade. O perigo, em síntese, é transparecer, por meio do conceito, simplicidade teórica que não se ajusta à realidade.
Indispensável, a nosso ver, é saber se o ordenamento jurídico impõe ao particular o ônus de suportar determinada ação administrativa em determinado contexto, a partir das particularidades de cada caso.
A interpretação do ordenamento jurídico demandará, nesse caminho, a consideração das pretensões argumentativas dos envolvidos. Não há como eliminar a interlocução entre a Administração e o cidadão, especialmente quando em pauta ação limitativa da liberdade ou propriedade privada.
Assim, consideramos relevante a reformulação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado para o princípio do interesse público, na medida em que este é resultado de um processo interpretativo e essencialmente dialógico, e não uma noção apriorística entre dois “interesses”, o público e o privado.[2]
A análise da jurisprudência pátria revela a complexidade do tema. Em alguns casos, a noção de supremacia do interesse público é utilizada de modo irrefletido, pois não há fundamentação sobre o sentido de interesse público no caso concreto, valendo-se o julgado da máxima ou da fórmula da supremacia como se esta prescindisse de contextualização. Outras vezes, constata-se um cuidado maior em sua aplicação, a revelar, ao menos, necessidade de se repensar a denominação do mencionado princípio.
Ilustrativo o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 22.665-3/DF (STF), em que a empresa Cabotec requereu a uma das delegacias do Ministério de Comunicação autorização para operar serviço de distribuição de sinais de TV a cabo. Contra o indeferimento do pedido foi impetrado mandado de segurança, sob a alegação de que teriam sido atendidas as condições previstas em ato normativo editado pela Administração Pública. Ocorre que a autoridade coatora sustentou que a decisão administrativa sobre a questão estava inserida no âmbito de sua competência discricionária.
O ministro Marco Aurélio, relator originário do referido recurso ordinário, deferiu o pedido, entendendo que a Administração autolimitou-se por meio de ato normativo de que constavam os requisitos para a operacionalização de sinais de TV a cabo, razão pela qual não haveria ato discricionário, mas, sim, ato vinculado. O ministro ressaltou, ainda, que a posição clássica da doutrina sobre a discricionariedade na autorização não se aplicaria no caso, pois a Administração estabeleceu exigências que, uma vez atendidas, conferiram o direito à autorização, esvaziando, consequentemente, a competência discricionária.
O ministro Nelson Jobim pediu vista e apresentou voto divergente, fundado no princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
Esse precedente revela o perigo que as pré-compreensões sobre a “supremacia do interesse público” possuem de comprometer significativamente o devido processo legal, na sua perspectiva substancial.
O risco está, portanto, na interpretação solitária — descontextualizada — que o enunciado pode induzir, haja vista que o termo “supremacia” e a noção de “supremacia do interesse público sobre o interesse privado” levam à simplificação de seus sentidos. Quer dizer, nem sempre o interesse manifestado pelo particular pode ser tido, a priori, como oposto ao interesse público.
O interesse público, portanto, construído na esfera pública, requer a consideração de todas as alegações, privadas ou estatais, em jogo para, ao final, revelar seu conteúdo, segundo disponha o ordenamento jurídico vigente. Em outras palavras, é a simplificação sobre a interpretação do “interesse público” que precisa ser superada no contexto do Estado Democrático de Direito[3].
Por fim, é imperioso esclarecer que a proposição de mudança terminológica — de supremacia de interesse público para apenas interesse público — não corresponde à postura ingênua de substituição de uma fórmula por outra, como se, abstratamente ou aprioristicamente, a complexidade em torno do sentido do interesse público fosse, definitivamente, solucionada. A provocação, na verdade, apenas obriga ao desvelamento da fórmula e ao cotejo do ato com a realidade fática a partir da discursividade do devido processo, sem presunção em favor de qualquer interesse, seja o estatal ou o individual.

[1] Cf. artigos 49; 58, I; 78, XII, todos da Lei n. 8.666, de 21.06.1993.
[2]A propósito, o art. 2º da Lei n. 9.784/99, que dispõe sobre o processo administrativo no âmbito federal, indica o princípio do interesse público, a afastar o risco de se interpretar a aparente oposição do interesse público com o privado de modo a confundir público com coletivo e privado com individual ou egoístico.

[3] Jacques Chevallier, ao discorrer sobre o “Estado desmitificado”, afirma que o mito do “interesse geral”, sob o qual o Estado construiu sua legitimidade, perde força, porquanto “[...] não aparece mais como sendo monopólio do Estado, tal como dele não é o signo distintivo”. E conclui: “O interesse geral não é mais considerado como o produto de uma geração espontânea: à base de sua formação, encontram-se necessariamente os interesses particulares dos indivíduos e dos grupos; em decorrência, interesse geral e interesses particulares não aparecem mais como sendo de natureza radicalmente diferente e sua oposição tende a desaparecer.” (CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-moderno. Trad. Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 82-83.)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O inimigo como tragédia e como farsa
Por Luiz Moreira

Karl Marx, um dos mais argutos e complexos pensadores do Ocidente, cunhou frase que é repetida em diversos contextos e que é apropriada para expressar os diferentes modos de manifestação do mesmo fenômeno: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Se é certo que a conjunção de diversos fatores e inúmeras condições não permitem a simples repetição do fenômeno histórico, também o é que a oposição (antífrase) entre tragédia e farsa reflete uma decadência entre ambos, mas também adverte que a ninguém é permitido portar-se ingenuamente ante as intrincadas relações políticas, sociais e econômicas.

Embora haja consenso que as instituições republicanas devem submissão à soberania popular, razão pela qual ocorrem eleições periódicas, foi produzida ideologia que não apenas subordina, mas que criminaliza os poderes que decorrem do voto.

No Brasil, como caso único, adotou-se sistema em que há supremacia do sistema de justiça sobre a política, adotando-se, ao mesmo tempo, controle difuso de constitucionalidade, como nos Estados Unidos, e concentrado, como na Alemanha, com clara preferência pelo modelo repressivo, no qual o sistema de justiça age como corretor das instituições políticas. Tal construção mitiga a democracia e fragiliza a atividade política, de modo a produzir ambiente semelhante ao vivenciado nas ditaduras.

Atualmente, há um claro desprestígio da lei, substituída por interpretações jurídicas fundadas em princípios constitucionais “abertos”. Desse modo, prospera ideologia que permite que manifestações individuais de magistrados e de membros do Ministério Público se sobreponham às leis.

Um dado é particularmente constrangedor: enquanto o sistema de justiça conviveu harmoniosamente com o regime de exceção instalado pela ditadura civil e militar, a sociedade reagia construindo uma rede de apoios que se fundava na atuação de artistas, nas forças políticas clandestinas, nos movimentos eclesiais de base, no Movimento Democrático Brasileiro, na Ordem dos Advogados do Brasil e na Associação Brasileira de Imprensa.

Ante a cassação de três de seus ministros (Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva) e a aposentadoria voluntária, em solidariedade aos ministros cassados, do presidente e do vice-presidente do STF (Antônio Gonçalves de Oliveira e Antônio Carlos Lafayette de Andrada), os demais ministros se mantiveram nos respectivos cargos, em ato que representou mais que a convalidação jurídica do regime de exceção.

Não bastasse o aniquilamento físico e ideológico promovido pela ditadura, houve não apenas a convalidação desses atos pelo sistema de justiça, mas sua perfeita formalização jurídica. Ou seja, não havia democracia, mas havia Estado de direito.

O inimigo como tragédia
Em Carl Schmitt o inimigo é o hostil e adquire contornos institucionais com a ditadura brasileira: o inimigo era o estranho, o desconhecido e contra ele era permitida qualquer hostilidade.

Operando método de eliminação de cidadãos, que consistia na produção da figura do inimigo, o Estado brasileiro adaptou métodos e nomenclaturas utilizados nas guerras e os aplicou aos cidadãos que se opunham ao regime. Esses cidadãos eram identificados e apartados da comunidade política.

O método de apartação consistia na formulação de lista de suspeitos, com sua posterior submissão à tortura. Os inimigos do regime eram identificados, torturados e mortos. Aos sobreviventes restavam dois caminhos: o exílio ou a clandestinidade. Ambos significavam que a hostilidade do regime os transformara em apátridas.

É nesse contexto que foi produzida a campanha “Brasil, ame-o ou deixe-o”, para sinalizar que o desterro era o destino a que eram encaminhados os dissidentes que resistiram à tortura.

E o que podem esperar os dissidentes? Além de vítimas de tortura física e de alvos de uma guerra psicológica, aguardavam a reprovação de suas condutas pelo sistema de justiça, isto é, além de aniquilados fisicamente foram também condenados pelo sistema de justiça.

Desse modo, o Estado de direito se realiza como tragédia, pois à hostilidade política sucede a decisão judicial.

O inimigo como farsa
Günther Jakobs também formula um conceito de inimigo. Para ele, o inimicus é o criminoso.

Jakobs concebe dois tipos de direito penal. No direito penal dos cidadãos, a pena é um parâmetro a ser evitado e os cidadãos que se desviarem desse parâmetro devem suportar a pena como “reparação do dano”, isto é, a pena é um castigo que deve ser aplicado para que seja conservada a norma penal.

Já o direito penal do inimigo é a regulamentação do Estado de exceção. Criam-se os meios jurídicos para o aniquilamento dos que descumprem determinadas normas penais. Assim, se um cidadão infringir algumas normas ou se cometer determinados crimes, a ele não se aplicam as normas penais que são válidas para os demais, vez que se trata de eliminar o inimigo.

Para Jakobs, o cidadão que viola a norma penal, ainda que de menor potencial ofensivo, é já inimigo, ainda que provisoriamente. Mas os cidadãos que praticam certos crimes ou que os praticam mais vezes são inimigos permanentes e a eles não se aplicam o direito penal do cidadão. Como inimigos do Estado deixam de ser tratados como pessoa.

Desse modo, o criminoso é aquele cuja conduta o aparta da comunidade jurídica. Esse apartar significa tanto ato de isolamento quanto perda de direitos. Isolamento porque deixa de ser membro da comunidade dos cidadãos e, por não participar dela, não usufrui dos direitos que nela são gestados.

O que antes era circunscrito às favelas, aos presídios e às periferias passa a se generalizar. Mesmo medidas judiciais de exceção, como prisões processuais, passam a ser regra. O cidadão, transformado em inimigo, de presumivelmente inocente é transformado em previamente suspeito, assim como medidas invasivas e prisões, em regra.

A "lava jato" e a reedição do inimigo
Com o propósito de subverter essa estrutura garantista da Constituição foi moldado um componente ideológico abstrato (o combate à corrupção) e um “exército” de combatentes, que se utiliza de campanhas midiáticas para obter o apoio da população às suas causas e lhes garantir que essa atuação seja inquestionável.

Esse alinhamento do sistema de justiça à mídia tem garantido supremacia da primeira instância sobre as instâncias revisoras. Ou seja, os juízes dos tribunais têm evitado conceder habeas corpus ou mesmo decretar nulidades processuais, pois têm receio de serem tidos como coniventes com a corrupção.

Mais do que ocupar o topo do Poder Judiciário, o STF é o guardião das liberdades. Desse modo, uma de suas missões é apreciar e julgar habeas corpus, justamente para coibir qualquer arbitrariedade praticada pelo Estado.

Não é admissível que a apreciação e a concessão de habeas corpus dependam de percursos burocráticos, sobretudo quando são conhecidos os problemas com o tempo de duração dos processos no sistema de justiça. Assim, não faz qualquer sentido a manutenção, pelo STF, da Súmula 691, por significar primazia da burocracia judiciária ante as liberdades, da qual o habeas corpus é expressão.

Embora vivamos sob uma democracia constitucional, a operação "lava jato" tem se utilizado de métodos condizentes com a transformação de cidadãos em inimigos: primeiro, com a figura da delação; segundo, com a transformação da prisão preventiva em meio ordinário apto a produzir provas.

A delação premiada é uma adaptação, para o direito, da figura do confessionário da igreja católica. No catolicismo, o pecador se dirige ao confessionário para obter o perdão de suas culpas; já no direito penal, o delator é aquele que confessa ter cometido crimes e que projeta seu agir em termos utilitários, isto é, no agir do delator tudo é calculado: o crime praticado, o que confessar e o a quem envolver ou a quem proteger. Diferentemente do pecador ante o confessionário, o delator é um jogador que se utiliza do sistema de justiça para obter vantagens.

Na perspectiva adotada pela "lava jato", ou seja, a do direito penal do inimigo, duas questões afrontam o direito penal constitucional vigente no Brasil:

(I) a transformação do depoimento do delator de indício em prova, com a consequente equiparação dos depoimentos de dois ou de mais delatores em conjunto probatório; e (II) a tendência a se perder a diferença qualitativa, ainda existente, entre os métodos investigativos da polícia e do ministério público dos praticados por delinquentes.

Já a prisão preventiva como meio de produção de prova se classifica como modalidade de guerra ao inimigo.

Embora o STF já tenha se posicionado sobre a ilegalidade dessa medida, a permanência da Súmula 691 retarda o triunfo das liberdades sobre o arbítrio.

A ninguém interessa a impunidade. No entanto, o combate à impunidade não pode significar violação à Constituição. O combate à impunidade significa investigação criteriosa, com autonomia operacional da Polícia, independência institucional do Ministério Público e garantias à atuação do Judiciário. Significa também presunção de inocência, divisão entre as atividades de acusar e de julgar, devido processo legal e reconhecimento da importância do advogado para o sistema de justiça.

Nas democracias constitucionais a liberdade é a regra. Nessas, cidadãos só são presos quando constatadas suas culpas em processos em que a ampla defesa e o devido processo legal são observados. Antes circunscrita geograficamente às favelas, aos presídios e às periferias, esse estado de exceção rompe essa estratificação e se generaliza, em falso movimento de universalização da exceção.


Cabe ao STF conter essa farsa.