A necessidade de respeito ao princípio da legalidade na delação premiada
19 de janeiro de 2016, 20h02
“... O
Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao
preço de sua impunidade para “fazer Justiça” o que o Direito Penal
repugna desde os tempos de Beccaria...” [1]
Na sociedade civil, seguramente há quem pense tratar-se a delação premiada de um instituto novo. Ledo e rematado engano[2][3]. Cuida-se de vetusto e antigo meio de prova, questionável por diversos vieses[4].
No presente texto, não nos dedicaremos à análise de qualquer outro
aspecto das delações que não seja o da estrita e mera legalidade,
notadamente em relação às repercussões jurídicas da delação. De fato,
muitos se questionam como seria possível ao estado juiz aplicar penas de
dezenas de anos em regime de prisão domiciliar, como tem ocorrido no
âmbito da tal investigação[5].
Diga-se
ao leitor que este não pretende ser um artigo científico, acadêmico. A
finalidade é trazer esclarecimentos a respeito de um instituto tão
debatido e em voga. Somente isso. Explicar, para qualquer pessoa, de
qualquer área, quais são as consequências da delação premiada no Brasil e
evidenciar que, decisivamente, a operação "lava jato" está em
descompasso com a legalidade.
O leitor deve ser advertido que a
regra básica do Direito Penal é o princípio da legalidade. A legalidade é
o início e o fim do ordenamento jurídico. Isso ocorre para evitar abuso
por parte do estado, tiranias em nome da busca da Justiça. Por um lado,
é necessário proteger bens jurídicos e a própria sociedade, de outra
banda, necessário se faz evitar que o investigado, ou mesmo condenado,
seja vítima do totalitarismo do Estado. Como adverte Hassemer: “A lei
não é, para o afetado, apenas o fundamento de sua condenação, mas também
a proteção contra o excesso, a garantia da proporcionalidade e do
controle”[6].
Antes da adoção do princípio da legalidade, os jurisdicionados, as
pessoas, ficavam ao bel prazer daqueles que diziam o direito julgar como
quisessem. A legalidade é, dita de forma bem singela e simples, ao
mesmo tempo, uma proteção para o Estado e para as pessoas.
Diga-se
ainda ao leitor (informação que pode ser confirmada com qualquer pessoa
da área) que as normas penais são cogentes, ou seja, não podem ser
alteradas pela vontade das partes, nem mesmo em acordo feito com o
Ministério Público (que, antes de acusador deve ser fiscal da lei) e
homologado pelo Judiciário.
Com essa colocação introdutória, caro
leitor (repita-se que você pode confirmar isso com qualquer estudante de
Direito Penal), saiba de duas coisas: a legalidade rege os pressupostos
de todos os institutos do Direito Penal, bem como rege todas as suas consequências, em todo e qualquer caso.
Pois
bem. No âmbito da tal operação, tem sido relativamente frequente ver
penas elevadíssimas, altíssimas, aplicadas em regime de prisão
domiciliar, ao fundamento de que se trata de um réu delator. Consoante
se verá ao longo deste texto, tais conclusões são manifesta e
absurdamente ilegais, de nada adiantando falar que “a lei precisa de
alguns ajustes”[7]. Efetivamente, ao regrar as consequências para o réu delator, o caput do artigo 4° da Lei 12.850/2013, trata, in verbis:
Art. 4°. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos
daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a
investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração
advenha um ou mais dos seguintes resultados:
Primeiramente,
advirta-se que ao dizer que o juiz poderá, em verdade, impõe-se ao
magistrado um dever. Trata-se, pois, de um poder-dever. Preenchidos os
requisitos, a concessão é obrigatória. A lei é de clareza solar e
somente permite uma de três alternativas: 1) aplicação de perdão
judicial; 2) redução de pena de um a dois terços; 3) substituição por
penas alternativas (obviamente, respeitadas todas as regras de
substituição).
Se as delações premiadas existem, o que se espera,
minimamente, é que sejam feitas de acordo com a lei. Vale lembrar que o
Direito Penal é pautado na noção de legalidade estrita. Jamais se poderá
viver um Direito Penal em que a legalidade estrita ceda lugar à
legalidade da emergência/conveniência.
Para que não paire
qualquer dúvida, há de se dizer que a prisão domiciliar, no Brasil,
somente é cabível nas seguintes hipóteses: O artigo 117 da Lei de
Execuções Penais prevê que "somente se admitirá o recolhimento do
beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar
de: I — condenado maior de 70 (setenta) anos; II — condenado acometido
de doença grave; III — condenada com filho menor ou deficiente físico ou
mental; IV — condenada gestante".
Já no Código de Processo Penal,
a prisão domiciliar é tratada no artigo 318 como uma das hipóteses de
substituição de prisão preventiva (de natureza processual, portanto,
inaplicável a quem já foi condenado). No Código de Processo Penal, a
prisão domiciliar tem lugar quando: "Art. 318. Poderá o juiz
substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
(redação dada pela Lei 12.403, de 2011); I — maior de 80 (oitenta) anos;
(incluído pela Lei 12.403, de 2011); II — extremamente debilitado por
motivo de doença grave; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); III —
imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos
de idade ou com deficiência; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); IV —
gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto
risco. (incluído pela Lei 12.403, de 2011). Parágrafo único. Para a
substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos
neste artigo. (Incluído pela Lei 12.403, de 2011)".
Ou seja, caro
leitor, como no Direito Penal todos os institutos devem ser sevos à lei,
somente se aplica prisão domiciliar nas hipóteses retromencionadas,
onde não se leu hipótese de aplicação ao réu delator.
Assim, leitor, goste-se ou não, você já concluiu que não é possível legalmente aplicar penas de dezenas de anos em regime de prisão domiciliar. Essas penas são, pois, absurdamente ilegais.
Tenta-se,
com os acordos de delação premiada, modificar-se a ordem jurídica e os
procedimentos (garantias) existentes no ordenamento pátrio. Por
evidente, não pode ficar a critério do juízo, a escolha do regime de
cumprimento da pena. Critérios existem para serem obedecidos, não
cabendo ao Judiciário a perigosa e inconstitucional função de legislar
positivamente.
Pois bem.
O acordo de delação premiada — ou
colaboração, como eufemisticamente prevê a Lei 12850 — possui
consequências, definidas na própria lei de organização criminosa.
Questiona-se: qual a dificuldade de se conceder o perdão judicial ou
mesmo reduzir/substituir as penas?
Por outro lado, a legalidade
estrita é malferida, ao passo em que se aplicam regimes de cumprimento
de pena inexistentes, chegando-se à aberrante condenação em dezenas de
anos e a concessão de prisão domiciliar. A sociedade civil não pode se
esquecer de todo e qualquer juiz ou presentante ministerial deve
respeito às leis do país. E não é por outro motivo que o Código Penal
começa, justamente no artigo primeiro, tratando do princípio da
legalidade.
Mas por que tais aberrações e ilegalidades vêm acontecendo?
No
âmbito da tal operação, vê-se um invulgar e incomum preocupação com a
opinião pública. Relativamente frequente, nas decisões relacionadas à
tal operação, haver a menção a “propiciará assim não só o exercício da
ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio
público sobre a atuação da administração pública e da própria Justiça
criminal”.
A sociedade civil, então, precisa começar a perguntar:
por que não se concedeu perdão judicial? Por que não se aplicaram as
penas e depois as mesmas foram reduzidas, aplicando a diminuição em até
dois terços? Por que um condenado a dezenas de anos de prisão ficará em
regime de prisão domiciliar, nunca sendo demais sublinhar que há a
possibilidade, ao menos em hipótese, de um delator voltar a delinquir...
A resposta é elementar...
Por
um lado, possivelmente, os adeptos do tal garantismo penal integral não
aceitariam que um delator ficasse sem pena, porque isso representaria
uma “proteção insuficiente de bens jurídicos”. De mais a mais, a tal
opinião pública não compreenderia como um delator premiado sairia com
perdão judicial — causa extintiva de punibilidade, em decisão
declaratória da extinção de responsabilidade criminal. Dito de forma
mais clara e direta: perdão judicial seria colocar fim a qualquer tipo
de responsabilidade criminal. A lei prevê isso. E, como se deve
observância às leis, era uma alternativa viável, que, seguramente, não
atenderia aos anseios punitivistas da maioria das pessoas.
De
outra banda, o que adiantaria a um delator, condenado a dezenas de anos
de prisão, ter sua pena reduzida em dois terços se isso, ao fim e ao
cabo, o levaria para a prisão em regime fechado, de todo jeito. O leitor
imagina, em são consciência, que alguém delataria para assumir uma pena
de, por exemplo, dez anos em regime inicial fechado? Seguramente que
não. A alternativa seria um desestímulo para as delações e aí... Já
viu.... Ninguém delataria mais....
Qual a alternativa, então:
legislar no caso concreto — e sobre isso há um eloquente e ensurdecedor
silêncio do Ministério Público e também da Ordem dos Advogados do
Brasil. Criou-se um remendo maldito, uma forma de manter um apelo aos
desejos de delação sem que se cumpra a lei.
E qual será a consequência jurídica de tais ilegalidades para a investigação?
Bem,
isso, o tempo demonstrará. Mas se as pessoas disseram o que disseram
com a promessa de um prêmio ilegal — o que se imagina possa ter
ocorrido, certo é que a delação não pode ser mantida. Não se pode manter
um instituto quando a consequência prometida é uma ilegalidade
manifesta.
Mas isso é assunto para outro texto...
[1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Ob. Cit. p. 59.
[2]
Lembre-se, por oportuno, que a colaboração entre Estado e criminosos é
antiga, remonta à época em que os piratas repartiam o butim com as
coroas que os custeavam. Não há grande diferença entre isto e a delação
premiada, pois ambas são francamente inadmissíveis. Sobre a referência
histórica, ver MINGARDI, Guaracy. O que é crime organizado: uma definição das ciências sociais. In Revista do ILANUD n.º 8.
[3]“...
A impunidade dos agentes encobertos e dos chamados arrependidos
constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio
que forma parte essencial do Estado Democrático de Direito: o Estado não
pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade..” ZAFFARONI,
Eugênio. Ob. Cit. p. 59
[4]
Somente por compromisso acadêmico, consigne-se que o primeiro autor
deste texto foi membro da comissão de reforma do Código Penal (PLS 236),
tendo votado favoravelmente à adoção da delação premiada somente para o
crime de extorsão mediante sequestro.
[6] HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: SAFE, 2005. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da Silva, p. 268.
[7] O ajuste de uma norma penal somente pode ser feito por legisladores.
Gamil
Föppel El Hireche é advogado e professor. Doutor em Direito Penal
Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do
Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de
Execuções Penais.
Pedro Ravel Freitas Santos é
pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito).
Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico
Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).
Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2016, 20h02