sexta-feira, 1 de abril de 2016


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE TECNOLOGIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – DTCS – CAMPUS III
COLEGIADO DE DIREITO
CURSO DE DIREITO
DISCIPLINA: DIREITO TRIBUTÁRIO I
DOCENTE: LUIZ ANTONIO COSTA DE SANTANA
ALUNO_____________________________________________________________

Observações: A prova deverá ser entrega no horário da aula do dia 02/04/2016, manuscrita e legível.


1a avaliação de Direito Tributário I


1a Questão

Dino Buzzati, a nosso sentir, melhor demonstra a desgraça que é a prevalência da forma sobre a substância: O autor italiano nos conta, em seu precioso e clássico “O Deserto dos Tártaros”, que fora avistado um cavalo a uma certa distância do forte. O soldado Giuseppe Lazzari pensou se tratar de Fiocco, seu cavalo. Malgrado não ter sido autorizado a ir buscar o cavalo, sorrateiramente se dirigiu às muralhas para capturar o animal.
Percebeu que o cavalo não era o seu. Mesmo assim, resolveu voltar ao forte com o quadrúpede (livre tradução):
“A sentinela endireitou-se, olhou de novo à sua frente, viu que as duas sombras não eram sonho, já se encontravam próximas, a uns setenta metros: exatamente um soldado e um cavalo. Então sobraçou o fuzil, preparou o cão para o disparo, enrijeceu-se no gesto repetido centenas de vezes  durante a instrução. Depois gritou: - Quem vem lá, quem vem lá?
Lazzari era soldado novo, não pensava nem de longe que sem a palavra de ordem seria impossível entrar. No máximo, temia uma punição por ter-se afastado sem permissão; mas, quem sabe, talvez o coronel o perdoaria por causa do cavalo recuperado; (...)
- Quem vem lá, quem vem lá? – uma vez mais e depois deveria disparar. (...)
- Sou eu, Lazzari! – gritou. – Mande o chefe do posto de guarda abrir! Peguei o cavalo! E não faça estardalhaço senão me metem atrás das grades!
A sentinela não se mexeu. Com o fuzil preparado, permanecia parada, tentando retardar ao máximo o terceiro ‘quem vem lá’. (...)
- Quem vem lá, quem vem lá? – gritou pela terceira vez a sentinela e na voz estava subentendida como que uma advertência pessoal e anti-regulamentar. Queria dizer: volte atrás enquanto é tempo, quer morrer?
E finalmente Lazzari entendeu, lembrou num lampejo as duras leis do forte, sentiu-se perdido.
Mas em vez de fugir, sabe-se lá por que, largou as rédeas do cavalo e adiantou-se sozinho, invocando com voz aguda:
- Sou eu, Lazzari! Não está vendo? Moretto, ô Moretto! Sou eu! Mas o que está fazendo com o fuzil? Ficou Louco, Moretto?
Mas a sentinela não era mais Moretto, era simplesmente um soldado com as feições endurecidas que agora erguia lentamente o fuzil, fazendo pontaria contra o amigo. Apoiou a espingarda no ombro e olhou de soslaio para o sargento-mor, invocando silenciosamente um sinal para suspender. (...)
- Sou eu, Lazzari! – gritava. – Não está vendo que sou eu? Não atire, Moretto!
Mas a sentinela não era mais Moretto com quem todos os colegas brincavam à vontade, era apenas uma sentinela do forte, em uniforme de pano azul-escuro com a bandeirola de couro curtido, absolutamente idêntica a todas as demais à noite, uma sentinela qualquer que fez pontaria e agora apertava o gatilho. (...)
Agora que o dever fora cumprido, a sentinela pôs o fuzil no chão, debruçou-se no pára-peito, olhou para baixo, esperando não ter acertado. E no escuro parecia-lhe de fato que Lazzari não havia caído.
Não, Lazzari estava ainda de pé, e o cavalo se aproximara dele. Depois, no silêncio deixado pelo tiro, ouviu-se sua voz, num tom desesperado:
- Ô Moretto, você me matou!
Dito isso, Lazzari desabou lentamente para a frente. (...)[1]” (destaquei).

Pergunta: Com base no texto e as discussões efetuada em aula, estabeleça um paralelo entre razoabilidade e proporcionalidade. (3,0 pontos).

2a Questão

“O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara:
Pareceu-lhe uma boca banguela.
E eu menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem
Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara
Em que se passara passa passará o raro pesadelo
Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e o amaro
(...)” (destaquei).
O estrangeiro, Caetano Veloso.

Pergunta: Com base no trecho da canção e as discussões travadas em aula, estabeleça a distinção entre texto e norma e eventual paradoxo existente na possibilidade de várias respostas corretas no Direito. (3,0 pontos).


3a Questão
Aureliano Buendia[2], prefeito de Macondo[3], assumiu a gestão municipal encontrando um quadro de dívidas para com diversos credores. Com o credor A encontrou um débito empenhado e liquidado, mas sem o instrumento de contrato. Com o credor B, a dívida estava empenhada e liquidada, mas não foi encontrado o objeto da compra (um computador).

Você, nomeado Procurador Geral de Macondo, emita parecer jurídico solucionando o caso. (4,0 pontos).






[1] BUZZATI, Dino. IL DESERTO DEI TARTARI. Copyright 1945 Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., Milano, Capítulo XII, 101-104. No original:
“La sentinella si riscosse, guardò ancora dinanzi a sé vide che le due ombre  non erano un sogno,  si trovavano oramai vicine,  saranno stati appena settanta metri: esattamente un soldato  e  un  cavallo.  Allora imbracciò il fucile, preparò il cane allo sparo, si irrigidì nel gesto ripetuto centinaia di volte all'istruzione. Poi gridò: ‘Chi va là, chi va là?’.
Il Lazzari era soldato da poco tempo, non pensava neppure lontanamente che senza la parola d'ordine non sarebbe potuto rientrare. Tutt'al più temeva  una  punizione  per  essersi  allontanato  senza permesso;  ma chissà,  forse il colonnello l'avrebbe perdonato per via  del  cavallo recuperato; (...)
‘Chi va là, chi va là?" ripeté la sentinella. Ancora una volta e poi avrebbe dovuto sparare.
‘Sono io, Lazzari!’ gridò. ‘Manda il capoposto ad aprirmi! ho preso il cavallo! E non farti accorgere se no mi ficcano dentro!’
La sentinella non  si  mosse.  Con il fucile imbracciato se ne stava ferma, cercando di ritardare al possibile il terzo ‘chivalà’. (...)
‘Chi va là, chi va là?" gridò la terza volta la  sentinella  e  nella voce    c'era    sottinteso    come    un   avvertimento   privato   e antiregolamentare. Voleva dire: ‘Torna indietro fino  a  che  sei  in tempo; vuoi farti ammazzare?’
E  finalmente  il  Lazzari capì,  si ricordò in un lampo le dure leggi della Fortezza, si sentì perduto.
Ma invece di fuggire, chissà perché, lasciò le briglie del cavallo e si fece avanti da solo,  invocando con     voce acuta:
‘Sono io,  Lazzari!  Non mi vedi?  Moretto, o Moretto! Sono io! Ma che cosa fai con il fucile? Sei matto, Moretto?’
Ma la sentinella non era più Moretto, era semplicemente un soldato con la faccia dura che adesso alzava lentamente il fucile,  mirando contro l'amico.  Aveva  appoggiato  lo  schioppo  alla  spalla  e con la coda     dell'occhio sbirciò il sergente maggiore, invocando silenziosamente un cenno di lasciar stare. (...)
‘Sono io,  Lazzari!’ gridava. ‘Non vedi che sono io? Non sparare, Moretto!’
Ma la sentinella non era più il  Moretto  con  cui  tutti  i  camerati scherzavano  liberamente,  era soltanto una sentinella della Fortezza, in uniforme di panno azzurro scuro con la  bandoliera  di  mascarizzo,    assolutamente  identica  a tutte le altre nella notte,  una sentinella qualsiasi che aveva mirato ed ora premeva il grilletto. (...)
Ora che il dovere era fatto,  la sentinella mise il fucile a terra, si sporse dal parapetto,  guardò in giù sperando di non avere colpito.  E nel buio gli parve infatti che il Lazzari non fosse caduto.
No,  il  Lazzari  era  ancora in piedi,  e il cavallo gli si era fatto vicino.  Poi,  nel silenzio lasciato dallo sparo,  si udì la sua voce, con che disperato suono:
‘Oh Moretto, mi hai ammazzato!’.
Questo  il  Lazzari disse e si afflosciò lentamente in avanti. (...)”.
[2] Um dos personagens da obra Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques.
[3] Cidade ficticia da obra Cem anos de solidao, de Gabriel Garcia Marques.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Consultor Jurídico

DIÁRIO DE CLASSE

Umberto Eco e o desrespeito ao texto nas superinterpretações do Supremo

27 de fevereiro de 2016, 8h00

Por 

Umberto Eco (1932-2016) despediu-se de nós dois dias após o Supremo Tribunal Federal ter modificado seu entendimento sobre o princípio constitucional da ampla defesa, passando a admitir a execução provisória da pena após decisão condenatória de segundo grau, à revelia do disposto expressamente no texto constitucional.

Reconhecido mundialmente, sobretudo após a publicação do romance O Nome da Rosa (1980), obra traduzida para mais de 40 línguas e adaptada para o cinema, além de renomado escritor, Eco foi um importante teórico — no caso, filósofo e semioticista —, cuja leitura se mostra cada vez mais imprescindível para os juristas, especialmente nos últimos dias.

Tento explicar, rapidamente, o porquê.

Em Obra Aberta, publicada nos anos 1960, Eco sustentava o papel ativo do leitor na interpretação de textos escritos, comunicações orais, manifestações artísticas etc. No entanto, três décadas mais tarde, em Interpretação e Superinterpretação, o mesmo Eco discute os exageros dos intérpretes, destacando serem os excessos por eles cometidos os verdadeiros responsáveis pelas más interpretações.

Essa mesma ideia também está presente em Os Limites da Interpretação, onde Eco resgata o valor do texto. Para ele, a possibilidade de um mesmo texto comportar diversas interpretações, em razão de sua plurivocidade, não significa, de maneira nenhuma, que desse mesmo texto se possa fazer qualquer interpretação. Algumas interpretações são manifestamente equivocadas, não podendo prevalecer por violarem a materialidade do próprio texto: “Frequentemente os textos dizem mais do que o que seus autores pretendiam dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes gostariam que eles dissessem” (Eco, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 81).

É preciso, portanto, respeitar o texto. Há critérios para limitar — e controlar — a interpretação. Aqui reside a importância da hermenêutica filosófica. Como alerta Eco, “existe um sentido dos textos, ou melhor, existem muitos, mas não se pode dizer que não exista nenhum ou que todos sejam igualmente bons. Falar dos limites da interpretação significa apelar para um modus, ou seja, para uma medida” (1995, p. 34).

Se, num primeiro momento, Eco privilegiou a autoridade do leitor — e, aqui, ele cita a maliciosa sugestão de Todorov: “Um texto não passa de um piquenique em que o autor traz as palavras e os leitores o sentido” —, contribuindo para certa arrogância do leitor, que assumiu um papel ativo demais na atribuição livre de sentidos; num segundo momento, Eco preocupa-se com os limites que o texto impõe à atividade interpretativa: entre a inacessível intenção do autor (intentio auctoris), muito difícil de se descobrir, além de irrelevante para a compreensão, e a discutível intenção do leitor (intentio lectoris), que desbasta o texto até atingir uma forma que sirva a seu propósito, existe a intenção do texto (intentio operis), que refuta interpretações absurdas e insustentáveis.

A conclusão aponta para um processo intersubjetivo de cooperação entre o leitor, o autor e o (con)texto, que ocupa a centralidade dessa interação dialética. Isso porque o leitor sempre se encontra com o texto por meio de sua manifestação linear. Sua interpretação, entretanto, sempre dependerá do horizonte de sentido e de expectativas do leitor. Ocorre que, para além disso, há uma enciclopédia cultural que abarca não apenas a língua e seu funcionamento, mas também o registro de todas as interpretações anteriores desse mesmo texto, isto é, a tradição conformada por determinada comunidade de leitores, uma vez que um texto sempre remeterá a outro texto, que remeterá a outro texto, e assim por diante. E isso não pode, jamais, ser ignorado, ao menos quando se busca uma interpretação adequada.

Assim, a superinterpretação — sempre mais polêmica porque exagerada — seria uma leitura inadequada de um texto. Ela caracteriza-se pela imposição da vontade do leitor, que desrespeita a intenção do texto, ao violar a sua coerência ou, então, ultrapassar seus limites semânticos, apoderando-se de seu sentido.

Eis, aqui, apenas um exemplo do legado teórico de Umberto Eco. Que suas lições ecoem na comunidade jurídica, especialmente no Supremo, que tem insistindo em superinterpretar a malsinada Constituição.

André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional (IMED/RS) e da Faculdade Guanambi (FG/BA), e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 27 de fevereiro de 2016, 8h00

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A necessidade de respeito ao princípio da legalidade na delação premiada

19 de janeiro de 2016, 20h02
Por  e 
“... O Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço de sua impunidade para “fazer Justiça” o que o Direito Penal repugna desde os tempos de Beccaria...” [1]
Na sociedade civil, seguramente há quem pense tratar-se a delação premiada de um instituto novo. Ledo e rematado engano[2][3]. Cuida-se de vetusto e antigo meio de prova, questionável por diversos vieses[4]. No presente texto, não nos dedicaremos à análise de qualquer outro aspecto das delações que não seja o da estrita e mera legalidade, notadamente em relação às repercussões jurídicas da delação. De fato, muitos se questionam como seria possível ao estado juiz aplicar penas de dezenas de anos em regime de prisão domiciliar, como tem ocorrido no âmbito da tal investigação[5].
Diga-se ao leitor que este não pretende ser um artigo científico, acadêmico. A finalidade é trazer esclarecimentos a respeito de um instituto tão debatido e em voga. Somente isso. Explicar, para qualquer pessoa, de qualquer área, quais são as consequências da delação premiada no Brasil e evidenciar que, decisivamente, a operação "lava jato" está em descompasso com a legalidade.
O leitor deve ser advertido que a regra básica do Direito Penal é o princípio da legalidade. A legalidade é o início e o fim do ordenamento jurídico. Isso ocorre para evitar abuso por parte do estado, tiranias em nome da busca da Justiça. Por um lado, é necessário proteger bens jurídicos e a própria sociedade, de outra banda, necessário se faz evitar que o investigado, ou mesmo condenado, seja vítima do totalitarismo do Estado. Como adverte Hassemer: “A lei não é, para o afetado, apenas o fundamento de sua condenação, mas também a proteção contra o excesso, a garantia da proporcionalidade e do controle”[6]. Antes da adoção do princípio da legalidade, os jurisdicionados, as pessoas, ficavam ao bel prazer daqueles que diziam o direito julgar como quisessem. A legalidade é, dita de forma bem singela e simples, ao mesmo tempo, uma proteção para o Estado e para as pessoas.
Diga-se ainda ao leitor (informação que pode ser confirmada com qualquer pessoa da área) que as normas penais são cogentes, ou seja, não podem ser alteradas pela vontade das partes, nem mesmo em acordo feito com o Ministério Público (que, antes de acusador deve ser fiscal da lei) e homologado pelo Judiciário.
Com essa colocação introdutória, caro leitor (repita-se que você pode confirmar isso com qualquer estudante de Direito Penal), saiba de duas coisas: a legalidade rege os pressupostos de todos os institutos do Direito Penal, bem como rege todas as suas consequências, em todo e qualquer caso.
Pois bem. No âmbito da tal operação, tem sido relativamente frequente ver penas elevadíssimas, altíssimas, aplicadas em regime de prisão domiciliar, ao fundamento de que se trata de um réu delator. Consoante se verá ao longo deste texto, tais conclusões são manifesta e absurdamente ilegais, de nada adiantando falar que “a lei precisa de alguns ajustes”[7]. Efetivamente, ao regrar as consequências para o réu delator, o caput do artigo 4° da Lei 12.850/2013, trata, in verbis:
Art. 4°. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
Primeiramente, advirta-se que ao dizer que o juiz poderá, em verdade, impõe-se ao magistrado um dever. Trata-se, pois, de um poder-dever. Preenchidos os requisitos, a concessão é obrigatória. A lei é de clareza solar e somente permite uma de três alternativas: 1) aplicação de perdão judicial; 2) redução de pena de um a dois terços; 3) substituição por penas alternativas (obviamente, respeitadas todas as regras de substituição).
Se as delações premiadas existem, o que se espera, minimamente, é que sejam feitas de acordo com a lei. Vale lembrar que o Direito Penal é pautado na noção de legalidade estrita. Jamais se poderá viver um Direito Penal em que a legalidade estrita ceda lugar à legalidade da emergência/conveniência. 
Para que não paire qualquer dúvida, há de se dizer que a prisão domiciliar, no Brasil, somente é cabível nas seguintes hipóteses: O artigo 117 da Lei de Execuções Penais prevê que "somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I — condenado maior de 70 (setenta) anos; II — condenado acometido de doença grave; III — condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV — condenada gestante".
Já no Código de Processo Penal, a prisão domiciliar é tratada no artigo 318 como uma das hipóteses de substituição de prisão preventiva (de natureza processual, portanto, inaplicável a quem já foi condenado). No Código de Processo Penal, a prisão domiciliar tem lugar quando: "Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (redação dada pela Lei 12.403, de 2011); I — maior de 80 (oitenta) anos; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); II — extremamente debilitado por motivo de doença grave; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); III — imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); IV — gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. (incluído pela Lei 12.403, de 2011). Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo. (Incluído pela Lei 12.403, de 2011)".
Ou seja, caro leitor, como no Direito Penal todos os institutos devem ser sevos à lei, somente se aplica prisão domiciliar nas hipóteses retromencionadas, onde não se leu hipótese de aplicação ao réu delator.
Assim, leitor, goste-se ou não, você já concluiu que não é possível legalmente aplicar penas de dezenas de anos em regime de prisão domiciliar. Essas penas são, pois, absurdamente ilegais.
Tenta-se, com os acordos de delação premiada, modificar-se a ordem jurídica e os procedimentos (garantias) existentes no ordenamento pátrio. Por evidente, não pode ficar a critério do juízo, a escolha do regime de cumprimento da pena. Critérios existem para serem obedecidos, não cabendo ao Judiciário a perigosa e inconstitucional função de legislar positivamente.
Pois bem.
O acordo de delação premiada — ou colaboração, como eufemisticamente prevê a Lei 12850 — possui consequências, definidas na própria lei de organização criminosa. Questiona-se: qual a dificuldade de se conceder o perdão judicial ou mesmo reduzir/substituir as penas?
Por outro lado, a legalidade estrita é malferida, ao passo em que se aplicam regimes de cumprimento de pena inexistentes, chegando-se à aberrante condenação em dezenas de anos e a concessão de prisão domiciliar. A sociedade civil não pode se esquecer de todo e qualquer juiz ou presentante ministerial deve respeito às leis do país. E não é por outro motivo que o Código Penal começa, justamente no artigo primeiro, tratando do princípio da legalidade.
Mas por que tais aberrações e ilegalidades vêm acontecendo?
No âmbito da tal operação, vê-se um invulgar e incomum preocupação com a opinião pública. Relativamente frequente, nas decisões relacionadas à tal operação, haver a menção a “propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da administração pública e da própria Justiça criminal”.
A sociedade civil, então, precisa começar a perguntar: por que não se concedeu perdão judicial? Por que não se aplicaram as penas e depois as mesmas foram reduzidas, aplicando a diminuição em até dois terços? Por que um condenado a dezenas de anos de prisão ficará em regime de prisão domiciliar, nunca sendo demais sublinhar que há a possibilidade, ao menos em hipótese, de um delator voltar a delinquir...
A resposta é elementar...
Por um lado, possivelmente, os adeptos do tal garantismo penal integral não aceitariam que um delator ficasse sem pena, porque isso representaria uma “proteção insuficiente de bens jurídicos”. De mais a mais, a tal opinião pública não compreenderia como um delator premiado sairia com perdão judicial — causa extintiva de punibilidade, em decisão declaratória da extinção de responsabilidade criminal. Dito de forma mais clara e direta: perdão judicial seria colocar fim a qualquer tipo de responsabilidade criminal. A lei prevê isso. E, como se deve observância às leis, era uma alternativa viável, que, seguramente, não atenderia aos anseios punitivistas da maioria das pessoas.
De outra banda, o que adiantaria a um delator, condenado a dezenas de anos de prisão, ter sua pena reduzida em dois terços se isso, ao fim e ao cabo, o levaria para a prisão em regime fechado, de todo jeito. O leitor imagina, em são consciência, que alguém delataria para assumir uma pena de, por exemplo, dez anos em regime inicial fechado? Seguramente que não. A alternativa seria um desestímulo para as delações e aí... Já viu.... Ninguém delataria mais....
Qual a alternativa, então: legislar no caso concreto — e sobre isso há um eloquente e ensurdecedor silêncio do Ministério Público e também da Ordem dos Advogados do Brasil. Criou-se um remendo maldito, uma forma de manter um apelo aos desejos de delação sem que se cumpra a lei.
E qual será a consequência jurídica de tais ilegalidades para a investigação?
Bem, isso, o tempo demonstrará. Mas se as pessoas disseram o que disseram com a promessa de um prêmio ilegal — o que se imagina possa ter ocorrido, certo é que a delação não pode ser mantida. Não se pode manter um instituto quando a consequência prometida é uma ilegalidade manifesta.
Mas isso é assunto para outro texto...


[1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Ob. Cit. p. 59.
[2] Lembre-se, por oportuno, que a colaboração entre Estado e criminosos é antiga, remonta à época em que os piratas repartiam o butim com as coroas que os custeavam. Não há grande diferença entre isto e a delação premiada, pois ambas são francamente inadmissíveis. Sobre a referência histórica, ver MINGARDI, Guaracy. O que é crime organizado: uma definição das ciências sociais. In Revista do ILANUD  n.º 8.
[3]“... A impunidade dos agentes encobertos e dos chamados arrependidos constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado Democrático de Direito: o Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade..” ZAFFARONI, Eugênio. Ob. Cit. p. 59
[4] Somente por compromisso acadêmico, consigne-se que o primeiro autor deste texto foi membro da comissão de reforma do Código Penal (PLS 236), tendo votado favoravelmente à adoção da delação premiada somente para o crime de extorsão mediante sequestro.
[6] HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: SAFE, 2005. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da Silva, p. 268.
[7] O ajuste de uma norma penal somente pode ser feito por legisladores.
Gamil Föppel El Hireche é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.
Pedro Ravel Freitas Santos é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).

Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2016, 20h02