quinta-feira, 29 de março de 2012

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Azdak, Humpty Dumpty e os Embargos Declaratórios

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POR LENIO LUIZ STRECK
Caricatura Lenio Streck [Spacca]
Nesta segunda coluna, peço a compreensão dos leitores para a sua dimensão. A extensão do texto se deve à complexidade do assunto. Prometo que, para as próximas, na medida do possível, o texto estará mais condizente com a “pós-modernidade” (sabe-se lá o que quer dizer esse termo “anêmico”). Ou seja, o texto estará mais enxuto. Vamos, pois, ao assunto prometido na semana passada: o que é isto – os Embargos Declaratórios e a (in)efetividade da Justiça.

Bertolt Brecht, entre tantas peças, escreveu uma que se reveste de especial relevância para o Direito. Trata-se do Círculo de Giz Caucasiano,[1] que trata da história de uma cidade imaginária em que ocorre um conflito de terras depois da guerra travada contra o nazismo. Mas o que interessa, aqui, é a história de Azdak. Ele é escrivão de uma aldeia que, sem saber, acaba salvando a vida do Grão-duque, líder absoluto antes de um primeiro golpe de Estado e que volta ao poder no segundo golpe. Azdak quer se entregar (ou se punir) por ter salvado o tirano, mas quando vai se entregar, descobre que os tempos continuam os mesmos, e acaba sendo escolhido juiz. Para decidir o destino de uma criança, traça um círculo de giz e coloca as duas mães no meio, para lutar pela criança. Como Salomão, decide por aquela que não “larga” a criança para não a machucar (ele decide em favor daquela que larga a criança, a serva Grucha).
A característica principal de Azdak é que ele decide como quer. O próprio Brecht — e nunca esqueçamos das raízes ideológicas que o sustentavam — disse que a intenção era mostrar que o seu personagem (Azdak) era alguém decepcionado “ao perceber que a queda dos velhos senhores não anuncia um novo tempo, mas um tempo de novos senhores”. Assim, ele continua a praticar o direito burguês, só que esfarrapado, sabotado, no exclusivo interesse do próprio juiz”. Claro que, e ainda é Brecht quem fala, “essa explicação não muda nada das minhas intenções e não justifica Azdak”.
Como diz Maurini de Souza Alves Pereira, em texto chamado A lei e a ética em Azdak – o Círculo de Giz Caucasiano, Azdak é múltiplo e contraditório, e nenhum personagem consegue concebê-lo em suas contradições, ou chegar a uma conclusão sobre a complexidade de suas atitudes: para a cozinheira, ele não entende do ofício, e absolve os “maiores ladrões”, demonstrando que o povo estava consciente de que a lei era feita para proteger os poderosos. Azdak não era entendido como antítese a essa lei pelos personagens, e suas atitudes não levam as pessoas da peça a uma síntese.
A peça trata de três julgamentos de Azdak, além daquele do Círculo de Giz. Em um deles, dois grandes proprietários de terra levam a juízo uma velha camponesa que mantinha uma vaca pertencente a um deles, e um presunto do outro. O segundo também reclamava que vacas dele haviam sido mortas para que deixasse de cobrar o arrendamento do lote da senhora. Ela atribui, tanto os bens quanto o perdão da dívida, à atuação de “São Banditus”, que os proprietários acusam ser Irakli, cunhado dela, um justiceiro que roubava dos ricos para dar aos pobres. Esse personagem é o que mais se aproxima do juiz enquanto contraventor. Azdak multou os proprietários em “quinhentas piastras”, por não acreditarem em milagre e absolveu a velha e o “São Banditus”, a quem ofereceu vinho depois da sentença, precedida de uma declaração lírica.
Eis algumas máximas de Azdak: “É bom para a justiça funcionar ao ar livre. O vento lhe levanta a saia e pode-se ver o que está por baixo”; “Contam a meu respeito que um dia, antes de pronunciar a sentença, eu saí para respirar o cheiro de uma roseira”; “Me traga aquele livro grosso, que eu sempre faço de almofada para sentar! (Schauva apanha em cima da cadeira de juiz um grande livro, que Azdak se põe a folhear.) Isto aqui é o Código das Leis, e você é testemunha de que eu sempre fiz uso dele”, sentando-se sobre o livro.
Em síntese: Azdak decide como quer. Por vezes, dá ganho de causa aos pobres; por vezes, contradiz-se ao infinito. Não deve explicações a ninguém. E tampouco explica as suas decisões.
Pois bem. Em Alice Através do Espelho, Lewis Caroll nos apresenta um personagem muito parecido com o juiz Azdak. Trata-se de Humpty Dumpty, cujo papel é nitidamente o de um nominalista, corrente filosófica que se forma a partir de Guilherme Ockham, pela qual não há coisas universais, apenas “particulares”. É a primeira grande contrariedade ao essencialismo aristotélico. Entretanto, o nominalismo é também sinônimo de positivismo, convencionalismo e pragmatismo, problemática que analiso emHermenêutica Jurídica e(m) Crise, para onde, respeitosamente, remeto o leitor.
Vejamos, então. Discutindo sobre o papel do “desaniversário”, pelo qual haveria 364 dias destinados ao recebimento de presentes em geral e somente um de aniversário, Humpty Dumpty diz para Alice: é a glória para você. Poderás receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: não sei o que quer dizer com glória, ao que ele, desdenhosamente, diz: “Claro que não sabe... até que eu lhe diga. Quero dizer ‘é um belo e demolidor argumento para você’”, acrescenta Humpty Dumpty. Mas, diz Alice, “glória não significa ‘um belo e demolidor argumento’”. E Humpty Dumpty aduz: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Observe-se bem essa frase final do personagem nominalista de Lewis Carroll: a palavra “glória” significa o que ele, Humpty Dumpty, quer que ela signifique. É o fim “demolidor” de uma discussão.
O que essas duas estórias têm em comum? O autoritarismo, o decisionismo e o pragmatismo (ou, se quisermos, pragmaticismo). Os dois livros tratam de personagens que têm o poder de dizer algo — no caso, decidir — e o fazem sem qualquer critério e sem accountability. Apenas decidem ao seu bel prazer (lembremos da vontade do poder — a Wille zur Macht). Resultado: um caos.
Assim, mutatis, mutandis, é terrae brasilis. O pan-principiologismo e a falta de uma teoria da decisão, aliados ao incentivo de ativismos dos mais variados, forjou um sistema jurídico absolutamente fragmentário, em que os processos se multiplicam aos milhares (ou milhões). Veja-se que, “darwinianamente”, o próprio “sistema” fez uma “correção de rumo” (ou seria uma adaptação?), criando as súmulas vinculantes e a repercussão geral.
E parece que isso não serviu para diminuir as demandas. Ao contrário: do que se pode perceber, vivemos a era das “efetividades quantitativas”. Estatísticas! Números! Vivemos preocupados com o rápido despacho de processos, mesmo que milhares deles sejam embargos declaratórios provocados pela pressa, para dizer o mínimo.
Trata-se de um círculo vicioso, pois. A questão é: não estaria na hora de nos preocuparmos com efetividades qualitativas? Ao invés de fazer uma sentença rápida — correndo o risco desta ser omissa, obscura ou contraditória — não seria melhor fazer uma boa sentença, que não demandasse embargos de declaração, seguidos de outros embargos e agravos de agravos etc?
É de se pensar, pois não? Se eu tivesse que escolher um instituto que represente simbolicamente esse “estado de natureza hermenêutico” (homenagem a Hobbes), escolheria os embargos declaratórios e sua derivação: os embargos declaratórios com efeitos infringentes.
Trata-se de uma virose epistêmica que assola o direito, produto da invencionice dos juristas. Isso vem de longe. Desde já lanço a pergunta: como é possível que um Código de Processo Civil (também o de processo penal) admita que um juiz ou tribunal, agentes políticos do Estado, produzam decisões (sentenças e acórdãos) omissas, obscuras ou contraditórias?
Ora, se a fundamentação é um dever fundamental do juiz e um direito igualmente fundamental do utente, de que modo se pode admitir que sejam lançadas/promulgadas sentenças com esses vícios? Só para registrar: a Corte Europeia dos Direitos Humanos declarou, de há muito, que a fundamentação, antes de um dever dos juízes e tribunais, é um direito fundamental do cidadão. Fundamentação frágil gera nulidade. Pois é. Lá não tem embargos.

Parece evidente que a previsão da possibilidade de um juiz ou tribunal produzir decisões omissas, contraditórias ou obscuras fere frontalmente o artigo 93, inciso IX, da Constituição, além do dispositivo que trata do devido processo legal (também, a do contraditório). Absolutamente inconstitucional.
Sempre pensei que uma decisão omissa (vejam no dicionário o significa a palavra “omissão”) seria nula, írrita, nenhuma.
Igualmente parece evidente que uma sentença contraditória (portanto, que fere o raciocínio lógico) deveria ser nula, írrita, nenhuma.
Finalmente, uma decisão obscura parece demonstrar uma obscuridade de raciocínio, longe, portanto, daquilo que o próprio CPC estipula como requisito da sentença.
Por certo — e não me tomem por ingênuo — a incorporação dos embargos no sistema processual brasileiro acabou por gerar um subproduto que, no contexto atual, confere certa importância (pragmática) para o instituto. Isso é óbvio. Até mesmo não se nega que, em casos limitados, uma decisão poderia demandar um esclarecimento. Mas não do modo como hoje se age. O que quero dizer com isso? Refiro-me ao fato de que a morosidade da Justiça, a dificuldade de tramitação de inúmeros recursos que seriam aplicáveis às hipóteses de sentenças nulas (por ausência ou insuficiência de fundamentação, vale dizer que, sentenças omissas, obscuras ou contraditórias são, ao final, sentenças com fundamentação insuficiente, portanto, nulas), faz com que os Embargos sejam instrumentos úteis para sanar erros materiais cometidos pelo juízo a partir de uma intervenção "cirurgicamente" mais precisa no desenrolar processual.
Só que isso acaba por gerar um círculo vicioso progressivo: na medida em que temos embargos, temos mais recursos no Judiciário; se temos mais recursos, temos mais trabalho; se temos mais trabalho e não aumentamos a estrutura humana/funcional que opera com tudo isso temos mais morosidade. Enfim, no fundo, os embargos, no lugar de remédios, acabam por se constituir como parte da causa da doença".
Quero dizer que além de a própria existência dos embargos de declaração ser algo, digamos assim, estupefaciente e bizarro, também a sua operacionalidade em terrae brasilis deixa muito a desejar. Acaba dando ao processo contornos, para dizer o menos, de um jogo (não raro, de cartas marcadas). Entra, aqui, o fator “Azdak” e o efeito “Humpty Dumpty”. Explico-me.
Pensemos no caso de um cidadão que faça um pedido qualquer em juízo. Sei lá, imaginem aí um pedido de realização de uma cirurgia modificadora extrema do próprio corpo (extreme body modification, já ouviram falar? Lembrem-se da coluna da semana passada sobre “O sorriso do lagarto”) ajuizado por alguém que queira — sejamos criativos — tornar seu rosto parecido com o de um lagarto (afinal, em tempos de caos hermenêutico, por que não?) Uma ação cominatória contra o Poder Público, pois. Afinal — e aqui vai mais uma pitada de sarcasmo — mais uma ação contra o poder público não fará tanta diferença assim.
Pois bem. O argumento central da “causa” é o de que o sujeito tem direito a perseguir a sua felicidade (he has the right to pursuehis own happiness), e que o Estado, por estar comprometido com a promoção da saúde (sic) e da dignidade (sic) da pessoa humana, teria o dever de realização do procedimento de forma gratuita ao cidadão hipossuficiente. Lembrem-se sempre da questão de número 10 do Concurso da Defensoria Pública do RJ (2010), em que o hipossuficiente queria fazer cirurgia para ficar com as feições de um lagarto e que, ao que consta, o gabarito apontou para o direito fundamental à felicidade do hipossuficiente-pretendente-a-ter-feições-de-um-lagarto. E por conta da “viúva”.
Na sequência, imaginemos que o Estado (no auge da sua cupidez, por certo — sejamos de novo um pouco irônicos e/ou sarcásticos) conteste a demanda invocando um princípio que ninguém mais respeita, o princípio da legalidade (não haveria previsão legal que o obrigasse a cobrir os custos da operação pretendida), além da falta de provas e garantias de que a realização do procedimento cirúrgico (lagarteal) perseguido fosse necessário ou suficiente para garantir a felicidade do autor.
Suponhamos que depois de uma profunda instrução (ao longo da qual se teria colhido o depoimento de pessoas, todas muito felizes, que conseguiram deixar seus rostos azulados e afilados, muito parecidos com aqueles dos Na´vi — personagens, quem não sabe, do filme Avatar), e de acaloradas razões finais (nas quais o advogado — aquele defensor público da questão objeto do concurso tratado no artigo O Sorriso do Lagarto —do autor teria sido particularmente convincente em demonstrar que a felicidade é o objetivo de “toda a vida boa”, citando o Aristóteles de Ética a Nicômaco como insuspeitoargumento de autoridade), o juiz tenha chegado a uma decisão. Julgou improcedente o pedido, só que com a seguinte fundamentação:
“Não encontrei no texto constitucional ou na legislação infraconstitucional a positivação do ‘direito fundamental a ficar parecido com um lagarto’. O Estado deve agir de acordo com a legalidade. E pronto. Interne-se o pretendente a lagarto em um hospital psiquiátrico”. E seguiu-se o dispositivo.
Percebam que o juiz nada falou sobre os argumentos nodais do autor: de que a dignidade humana, como vetor interpretativo, implica tornar a pessoa humana como um fim em si mesmo; de que, no exercício de sua autonomia, a pessoa humana tem o direito de dispor de seu próprio corpo da maneira como desejar; de que o Estado, já que comprometido com a promoção da dignidade e saúde humanas, teria de tornar acessíveis ao cidadão os meios necessários para que fosse atingido aquele fim; de que ofim da vida humana é a conquista da felicidade. Risíveis ou não, são estes os argumentos do autor.
O julgamento, assim, até poderia estar correto por seu resultado, mas sua fundamentação seria espetacularmente simplista. No plano do devido processo legal, do princípio do contraditório e do que exige o artigo 93, inciso IX, da CF, as partes (e o público) seguem sem saber, depois da decisão, se há ou não um compromisso público com a promoção da dignidade humana. E se esse compromisso implica, ou não, um dever de promover a felicidade dos cidadãos. Teria o magistrado negado a existência de um direito à felicidade? Mais: será que nas decisões anteriores deste mesmo juiz não encontraríamos algumas reconhecendo o caráter normativo da Constituição mesmo na ausência de lei (será que ele nunca “aplicou” o também “não positivado” “princípio da proporcionalidade”, por exemplo?)? O cidadão quer saber! A sentença, pois, foi omissa, no mínimo.
“Não há problemas”, pensa o autor. “Existem, justamente para suprir omissões, contradições e obscuridades, os embargos de declaração”. Suspiros de alívio e de fé nas instituições preenchem o coração do utente. Opõem-se os embargos.
Eis, contudo, a resposta:
“O juiz, na linha de precedentes do STF, não está obrigado a responder a todas as questões articuladas pelas partes. As razões de meu convencimento são suficientemente claras. Rejeito os embargos.”
O autor não desanima. Afinal, ainda resta o recurso de apelação. Apela. Eis o acórdão, unânime:
“Peço vênia para reproduzir os suficientes argumentos esposados pelo Colega de primeiro grau que, como de hábito, resolveu a contenda com síntese e suficiência.” E seguiu-se o “recorta-e-cola” da decisão de primeiro grau.
“Novos embargos?”, questiona o autor a seu advogado, já um tanto sestroso. Novos embargos. E a velha resposta:
“O juiz não está obrigado a responder a todas as questões levantadas pelas partes. O Tribunal não é um órgão de consulta”.
“Ao Supremo Tribunal! A questão é constitucional!”, exasperam-se o autor-aspirante-a-lagarto e seu advogado. No entanto, batem na trave:
“A matéria não foi objeto do devido prequestionamento. Não se pode, pena de ferir odue process of law, suprimir instâncias, enfrentando, em caráter original, matérias não apreciadas pelas Cortes inferiores. Nego conhecimento”.

E vai agravo... E, depois, outro agravo. E embargos declaratórios para esclarecer a decisão do agravo...
Paro por aqui. Os que militam no foro sabem do que falo. Já viram essa história se repetir dezenas de vezes. Os mais argutos até já tomaram notas. A culpa foi do autor: “ele deveria ter oposto embargos com efeito expressamente prequestionador” ou “deveria ter interposto um recurso especial alegando violação ao art. 535 do CPC”. Viram como funciona nossa mente? É a prova de que esta defecção já não causa estranhamento.
O problema é que, ao contrário do que se usa dizer, o juiz tem, sim, o dever de responder a todas as alegações juridicamente relevantes articuladas pelas partes. Nem que seja para dizer que elas não são... juridicamente relevantes! E isso por uma questão de democracia. Para que serve, enfim, a garantia do contraditório?
Para finalizar, trago à colação (colação é ótimo, não?) o RE 222.752, só para mostrar que, embora o exemplo acima seja absolutamente fictício, tem tudo a ver com a realidade. Vamos ao exemplo do mundo real:
RE 222.752 - RECURSO EXTRAORDINÁRIO (Processo físico) Recurso. Data de Julgamento.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
1.EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
2.EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
3.EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
4.EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
5.AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
6.AG.REG. NO AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
7.AG.REG. NO AG.REG. NO AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
8.EMB.DECL. NO AG.REG. NO AG.REG. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NOS EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO (ipsis literis; pontuação do original do respectivo site; apenas coloquei a numeração de 1 a 8.).
O que acham? Tudo isto em um mesmo “feito” (ou desfeito). Eis o “fator Azdak” e o efeito “Humpty Dumpty”. No Brasil, juízes e tribunais podem “dar às palavras os sentidos que querem”. E parece que as partes, rapidamente, estão se adaptando darwinianamente. Depois… bem, depois, tem sempre os embargos declaratórios.
E assim vamos levando. Mas não se preocupem. Olhei o projeto do novo CPC, com a esperança de que de lá fossem extirpados os embargos declaratórios. Ledo engano. Lá estão. Nada como sustentar a velha tradição, que todos já conhecemos. Essa anemia significativa vai continuar, assim como a algaravia aplicacional.
Ora, o mínimo que se espera do Estado-juiz (para valer-me de um jargão relativamente influente no meio acadêmico) é que lhe diga, depois de produzidas as provas e feitas todas as alegações, ao final do processo, se ele tinha ou não razão (ou seja, se o pedido procede ou improcede) e, claro, as razões para que se tenha chegado a uma tal conclusão (a motivação da decisão).
Aliás, todos deveriam ler o voto do ministro Gilmar Mendes no MS 24.268/2004, em que ele promove, com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão — que reproduzo em meu Verdade e Consenso (Saraiva, 2011) —, uma autêntica homenagem ao direito-dever fundamental de as decisões serem fundamentadas. Penso que com essa decisão já poderíamos derrubar essa virose epistêmica representada pelos embargos declaratórios. O cidadão que entra em juízo tem:
(a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;
(b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;
(c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas. O mesmo voto do min. Gilmar Mendes incorpora, ainda, a doutrina de Dürig/Assmann, ao sustentar que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a obrigação de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht).
Numa palavra: parece humilhante que os embargos de declaração sejam o mecanismo (quase) recursal pela qual o cidadão implora ao decisor que este “valide” a sua decisão ou, no mais das vezes, que o esclareça a respeito das razões pelas quais perdeu ou ganhou a causa.
Por meio do instituto dos Embargos Declaratórios, absurdamente admite-se que uma decisão judicial não fundamentada possa ser “consertada”, em cristalina manifestação do “instituto” do “jeito” no direito brasileiro (tão bem criticado, desde 1955, por Dante Moreira Leite). Pior: não se considera isto inconstitucional!
Muitos dizem que apenas se trata de uma válvula de escape do próprio sistema, afinal imagine-se a “confusão” que seria gerada pela declaração de nulidade de todas as sentenças “defeituosas”, mas passíveis de serem “consertadas”. A confusão aí já está! Admitido o nefasto instituto dos “EDs”, criam-se inúmeros outros desvios que ajudam a promover o caos quase que completo no sistema processual, impedindo decisivamente o “acontecer” da Constituição.
Voltando ao “jeito”, vale lembrar como Keith Rosen, autor estadunidense que produziu estudo denominado “O Jeito na cultura Jurídica Brasileira”, iniciou tal obra, especialmente quando mencionou anedota onde um recém-formado médico francês é aconselhado por um cônsul brasileiro, quando de sua tentativa de imigração, a “alterar” sua profissão, o que facilitaria a concessão do visto. O Autor continua fazendo referência ao fato de que a flexibilização da aplicação das leis também ocorre em outros países, mas no Brasil adquiriu um status privilegiado, em “um genuíno processo brasileiro de resolver dificuldades, a despeito do conteúdo das normas, códigos e leis”.
No fundo, os embargos de declaração são um “autêntico legado” da chamada Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, que deixada aos brasileiros pelos portugueses, estabeleceu que as regras do direito romano somente seriam aplicáveis em uma análise, da “boa razão”, um conceito flexível que permitia amplas interpretações, o que incentivava juízes e advogados a observarem o senso comum, o espírito da lei e os costumes com base das decisões, precursor do “jeito”. Materializa-se a “boa razão” processual pátria por meio dos “EDs”, com isso, mais um subterfúgio, um “jeito”, novamente pensamos que estamos salvos, quando apenas nos afundamos cada vez mais no lodo jurídico que nos afogamos cada dia mais!
Atuando como “válvula de escape”, os “EDs” impedem os necessários desgastes advindos da acumulação da pressão decorrente das nulas decisões judiciais não fundamentadas, as quais deveriam servir de estopim para ocorrência de indispensáveis reformas jurídicas e administrativas, acabam por instituir a corrupção interna do próprio sistema processual, tornando-o completamente autofágico. And I rest my case. (desta frase, podem caber embargos declaratórios...).

[1] No Programa Direito e Literatura – do Fato á Ficção (TV Justiça, domingos 12h30min e sextas-feiras, as 7 da manhã, há dois programas disponíveis sobre o assunto, tanto no site da TV Justiça como no site www.unisinos.br/direitoeliteratura. Também o CONJUR passou a divulgar, semanalmente, a partir de 2012, este Projeto do IHJ, dirigido por André Karan Trindade e apresentado por mim. Coincidentemente, a presente coluna trata de dois livros (Brecht e Carroll) que foram discutidos por Francisco Borges Motta, Doutorando em Direito - UNISINOS e Promotor de Justiça-RS. Participaram também dos programas os Professores Draiton Gonzaga de Souza (PUC-RS) e Rejane Pivetta de Oliveira (UNIRITTER-RS).
LENIO LUIZ STRECK é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

Notas sobre o controle de convencionalidade

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Peso da vontade popular no centro do debate no STF

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O STF e a supremacia dos princípios

O STF e a supremacia dos princípios

Para Lulubel

Valsa para uma menininha

Vinicius de Moraes

Composição: Vinicius de Moraes / Toquinho
Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha, não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão
Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim
E você vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão
Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
E também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei

Estou perfeitamente seguro de que tenho razão; mas posso enganar-me e podes ter razão tu. Em qualquer dos casos, vamos conversar racionalmente, pois assim nos aproximaremos mais da verdade, do que se cada um persistir no seu ponto de vista. Ver-se-á perfeitamente que a atitude que designo como sensata ou racional pressupõe um certo grau de modéstia intelectual. É uma atitude de que só são capazes aqueles que reconhecem não ter por vezes razão e que geralmente não esquecem os seus erros.” (POPPER, Karl Raymund. O Racionalismo Crítico na Política. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 4).

segunda-feira, 26 de março de 2012

DANO MORAL. PLANO. SAÚDE. COBERTURA PARCIAL. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL: Trata-se de recurso especial contra acórdão que, ao manter a sentença, afastou o dever de indenizar por danos morais decorrentes da cobertura apenas parcial de procedimento cirúrgico com colocação de stents. Aquele aresto considerou que o inadimplemento contratual caracteriza mero dissabor não sujeito à indenização por danos morais. A Turma negou provimento ao recurso sob o entendimento de que o inadimplemento do contrato, por si só, pode acarretar danos materiais e indenização por perdas e danos, mas, em regra, não dá margem ao dano moral, que pressupõe ofensa anormal à personalidade. Assim, o inadimplemento motivado pela discussão razoável do descumprimento de obrigação contratual não enseja tal dano, salvo a existência de circunstâncias particulares que o configurem. (...). REsp 1.244.781-RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 24/5/2011.
AG. REG. NO RE N. 614.246-SP: A Corte adota entendimento no sentido da inconstitucionalidade da cobrança da Taxa de Licença de Localização e de Funcionamento pelos municípios quando utilizado como base de cálculo o número de empregados.

AG. REG. NO ARE N. 663.552-MG: I - A imunidade do art. 150, VI, a, da Constituição somente se aplica ao imposto incidente sobre serviço, patrimônio ou renda do próprio ente beneficiado, na qualidade de contribuinte de direito. II - Como o Município não é contribuinte de direito do ICMS relativo a serviços de energia elétrica, não tem o benefício da imunidade em questão, uma vez que esta não alcança o contribuinte de fato. Precedentes.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Deu no Migalhas

Comerciante condenado por ruídos noturnos que atrapalham sono alheio


A 2ª câmara de Direito Civil do TJ/SC confirmou sentença que condenou comerciante a indenizar uma família em R$ 1 mil por ruídos produzidos por câmara frigorífica.


A família afirmou que os ruídos e trepidações provocados pelo equipamento instalado no mercado próximo à sua casa perturbavam o sono e afetavam a saúde física e mental dos moradores.

Na apelação, o comerciante disse que a perícia realizada pela Fatma - Fundação de Amparo ao Meio Ambiente, em ação criminal concomitante, constatou que o ruído da câmara não ultrapassou 60 decibéis durante o período noturno.


O desembargador Luiz Carlos Freyesleben, relator, observou que as perícias da Fatma, em dois pontos diferentes, comprovaram que o ruído de fundo noturno ultrapassava 30 decibéis, índice superior aos 10 decibéis permitidos pela lei em vigor para o horário das 19h às 7h.


"Observo que há inteira possibilidade de condenar por danos morais aqueles que ofendem o direito de vizinhança, perturbando-lhes o sono e a saúde com a produção de ruídos excessivos, marcantemente no horário noturno, quando as pessoas repousam para retomada, no dia seguinte, de seus afazeres, com toda a disposição possível", avaliou Freyesleben.

Processo : 2012.006128-7
________

Apelação Cível n. 2012.006128-7, de Tubarão

Relator: Des. Luiz Carlos Freyesleben

CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DIREITO DE VIZINHANÇA. RUÍDO EXCESSIVO PROVOCADO POR CÂMARA FRIGORÍFICA. PROVA PERICIAL CONCLUSIVA. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO CONFIGURADA. MAU USO DA PROPRIEDADE (CC, 1.277). DEVER DE INDENIZAR CARACTERIZADO. RECURSO DESPROVIDO.

"Lesados o sossego e a qualidade de vida pelo ruído e vibração contínuos produzidos pelo equipamento instalado, exsurge o dano moral pelo comprometimento da integridade física e psíquica do vizinho" (Desembargador Fernando Carioni).

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2012.006128-7, da comarca de Tubarão (3ª Vara Cível), em que é apelante L.M., e apelada M.H.G.B.e outros:

A Segunda Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento. Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Des. Nelson Schaefer Martins (Presidente) e Gilberto Gomes de Oliveira.

Florianópolis, 8 de março de 2012.

Luiz Carlos Freyesleben

RELATOR

RELATÓRIO

M.H.G.B., E.B., M.L.B. e A.I.G.F. ajuizaram ação de indenização por danos morais cumulada com obrigação de fazer contra L.M., narrando que os ruídos e as trepidações produzidos por uma câmara frigorífica instalada no mercado de propriedade do réu, localizado nas cercanias da residência dos autores, vem-lhes perturbando o sono e afetando-lhes a saúde física e mental. Assim, requereram antecipação da tutela, visando a obrigar o réu a desativar ou remover a câmara frigorífica do local, sob pena de multa. Ademais, requereram a confirmação da multa por sentença, bem como a condenação do réu ao pagamento de indenização por danos morais, custas processuais e honorários advocatícios.

O doutor Juiz de Direito da 3ª Vara Cível da comarca de Tubarão julgou parcialmente procedentes os pedidos, condenando o réu ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 1.000,00, acrescidos de juros de mora e de correção monetária, a contar da data da sentença, mais as custas processuais e os honorários advocatícios fixados em 15% do valor da condenação.

L.M. apelou, esclarecendo que o mercado de sua propriedade situa-se em região urbana, sendo de grande importância para a comunidade. Além disso, asseverou que a perícia realizada pela FATMA, requisitada pelo Juiz criminal, constatou que o ruído provocado pela câmara frigorífica "não ultrapassou o limite de som permitido pela legislação vigente, que é de 60 decibéis - dB(A), durante o período noturno", equivocando-se o Magistrado sentenciante ao condená-lo por danos morais.

Ressaltou que o ponto de medição de ruído identificado pela FATMA como "esquina do posto de saúde" não serve de parâmetro para apurar a variação dos níveis de ruído, mormente porque a fonte geradora do alegado barulho localiza-se nas margens da Rodovia SC Tubarão-Pedras Grandes, onde o tráfego de veículos é intenso, assim como o nível de barulho. Ademais, a "pequena extrapolação dos 10 dB(A) citada pelo administrador da FATMA induziu o Magistrado a erro", pois os pontos de medição de ruídos localizam-se nas proximidades de uma rodovia estadual, de sorte que o limite máximo de ruído deve ser o constante do inciso II do parágrafo único do artigo 23 do Decreto Estadual n. 14.250/1981, que é de 60dB(A) para o período noturno, valor esse jamais ultrapassado nas medições. Assim, requereu a reforma da sentença para a improcedência do pedido.

Houve contrarrazões.

Este é o relatório.

VOTO

Trata-se de recurso de apelação cível interposto por L.M. contra sentença de procedência parcial dos pedidos deduzidos em ação indenizatória por danos morais cumulada com obrigação de fazer, aforada contra ele por M.H.G.B, E.B., M.L.B. e A.I.G.F..

Antes do ingresso na análise dos fatos e das provas, observo que há inteira possibilidade de condenar-se por danos morais aqueles que ofendem o direito de vizinhança, perturbando-lhes o sono e a saúde, com a produção de ruídos excessivos, marcantemente no horário noturno, quando as pessoas repousam para retomada, no dia seguinte, de seus afazeres, com toda a disposição possível. Este posicionar já foi acatado neste Tribunal de Justiça, em situações semelhantes.

Vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CONDENATÓRIA. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ABUSO DO USO DA PROPRIEDADE. IMPROCEDÊNCIA NA ORIGEM (...). EVENTOS REALIZADOS NO IMÓVEL VIZINHO. PERTURBAÇÃO DOS MORADORES. BARULHO EM DEMASIA. PROVA ROBUSTA. ILÍCITO CONFIGURADO. DANO MORAL. EXCESSO. PREJUÍZO DA TRANQUILIDADE E SOSSEGO DOS MORADORES. DEVER DE INDENIZAR (...). RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

(...).

A exploração de eventos noturnos, notadamente com a utilização de equipamentos de som para apresentações artísticas, pressupõe o respeito às normas regulamentadoras da matéria, com a emissão controlada de ruído, a fim de evitar a perturbação dos moradores dos arredores do estabelecimento. A inobservância de tais preceitos constitui ato ilícito.

Cediço que a vida em coletividade exige o convívio com determinadas situações inconvenientes. Todavia, o abuso e a reiteração de tais incômodos caracteriza transtornos que ultrapassam os dissabores cotidianos, notadamente quando o estabelecimento da ora ré exerce sua atividade por pelo menos dois anos em desrespeito aos padrões de emissão de ruídos. Não há dúvidas de que em hipóteses desse quilate o dano moral à moradora vizinha é presumido, já que a perturbação do seu descanso noturno certamente alterou substancialmente sua rotina e trouxe prejuízos até mesmo a sua saúde (Ap. Cív. n. 2010.039853-5, de Brusque, rel. Des. Henry Petry Junior, j. 4-5-2011).

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ATIVIDADE DE DEPÓSITO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO E DE FABRICAÇÃO DE ARGAMASSA EXERCIDA PELA EMPRESA RÉ AO LADO DA CASA DA AUTORA. ALEGADOS DANOS SOFRIDOS NA ESTRUTURA DE SEU PRÉDIO E COM PERTURBAÇÃO DE SEU SOSSEGO E SAÚDE. ESTUDO DA PERÍCIA JUDICIAL QUE APONTA A POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DE TAL TRABALHO NA ÁREA, DESDE QUE COM ALVARÁ ESPECÍFICO. LICENÇA CONCEDIDA TÃO-SOMENTE PARA COMERCIALIZAÇÃO E DEPÓSITO. CESSAÇÃO DA ATIVIDADE DE ARGAMASSA DETERMINADA CORRETAMENTE PELO JUÍZO A QUO. DANOS MORAIS EVIDENTES ORIUNDOS DA POLUIÇÃO SONORA E ATMOSFÉRICA QUE TAIS OPERAÇÕES GERAVAM. TRANSTORNOS E INCÔMODOS QUE NÃO CONFIGURAM MERO DISSABOR. PREJUÍZOS MATERIAIS IGUALMENTE APURADOS PELO EXPERT. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR CONFIGURADA (...) (Ap. Cív. n. 2006.012058-2, de São José, rel. Des. Ronaldo Moritz Martins da Silva, j. 9-7-2010).

Verificada a presença de precedentes nesta Corte, destaco que o apelante alegou que a perícia realizada pela FATMA constatou que o ruído provocado pela câmara frigorífica "não ultrapassou o limite de som permitido pela legislação vigente, que é de 60 decibéis - dB(A), durante o período noturno", limite este imposto pelo inciso II do parágrafo único do artigo 23 do Decreto Estadual n. 14.250/1981.

Além disso, ressaltou que a norma constante do inciso I do artigo supracitado não se aplica à espécie, à vista do fato de que o aparelho gerador dos ruídos localiza-se nas cercanias de uma rodovia estadual, em que é grande o impacto sonoro dimanado do intenso tráfego de automotores. Entretanto, louvado o esforço do réu para desvencilhar-se da obrigação de indenizar, o apelo não tem por que ser provido, pois não há dúvida de que o réu agiu ao arrepio da lei, o que foi captado, acertadamente, pelo culto Magistrado sentenciante, ao analisar os fatos e aplicar o direito. E tanto assim considero que me valho de excerto da sentença para ilustrar este modesto voto.

Disse Sua Excelência:

Os autores pretendem a condenação do réu em pagamento de indenização a título de danos morais pela perturbação de seu sossego pelos ruídos e vibração da câmara frigorífica do réu, que alegam ter afetado de tal forma seu estado de espírito que cogitam a possibilidade de se mudar do local em que residem desde o nascimento. Afirmam que um dos autores não suportou a situação e efetivamente se mudou do local. Ressaltam que entre os moradores a idade dos mesmos já é avançada e que há um grande contraste causado pela máquina, pois habitam em ambiente calmo e interiorano.

Há de se averiguar a possibilidade de imputação de responsabilidade civil ao réu, analisando-se os requisitos da mesma (...).

Pois bem, o réu cometeu ato ilícito- Para responder analisar-se-á a questão sob a ótica da legislação ambiental vigente, qual seja, o Decreto Estadual n. 14.250/1981, que se refere à proteção e à melhoria da qualidade ambiental, mais especificamente o artigo 33, parágrafo único e incisos I e II:

"Art. 33 - A emissão de sons e ruídos, em decorrência de atividades industriais, comerciais e de prestação de serviços, obedecerá, no interesse da saúde, da segurança e do sossego público, aos padrões, critérios e diretrizes estabelecidos neste Regulamento.

Parágrafo único - Consideram-se prejudiciais à saúde, à segurança e ao sossego público os sons e os ruídos que:

I - atinjam, no ambiente exterior do recinto em que dão origem, nível de som de mais de 10(dez) decibéis - dB (A), acima do ruído de fundo existente no local, sem tráfego.

II - independentemente do ruído de fundo, atinjam no ambiente exterior do recinto em que têm origem de mais de 70 (setenta) decibéis -dB (A), no período diurno das 7 às 19 horas, e 60(sessenta) decibéis -dB (A), no período noturno das 19 às 7 horas do dia seguinte (...)"

Com base no inciso I do dispositivo supra, a FATMA realizou medições por determinação do magistrado do Juizado Especial Criminal em que tramitava o processo-crime versando sobre o mesmo fato do presente processo cível.

A FATMA realizou duas vistorias em dois momentos temporais distintos: a primeira averiguação deu-se nos dias 23-5-2006, 31-5-2005 e 5-6-2006 (fls. 86-114) e a última perícia, requisitada pelo MP e pelo Magistrado criminal, deu-se em 31-10-2007 (fl. 284).

A primeira vistoria, com base no inciso I da legislação estadual constatou "uma pequena extrapolação dos 10 decibéis permitidos" (fl. 86). Chegou-se a este resultado fazendo medições sonoras em pontos considerados padrão "considerando como ruído de fundo para aquele local" (fl. 86). Esses dois pontos foram denominados "esquina do posto de saúde" e "em frente à Igreja", detalhados nos croquis da área feitos nas vistorias (fls. 89, 93 e 108) em comparação aos pontos denominados "A" e "B", que estariam mais próximos da fonte geradora do ruído, qual seja, a câmara frigorífica.

Os resultados da medição do ponto na esquina do posto de saúde mostraram ruídos mínimos de 31,3 dB (fls. 102-105) e os resultados do ponto em frente à igreja registraram variação no mínimo de 32,0 dB. O ponto "A" registrou o mínimo de 42,3 dB e o máximo de 42,9 dB, e o ponto "B", mínimo de 42,6 dB e o máximo de 43,4 dB.

Assim, em comparação dos pontos de ruídos padrão com os pontos mais próximos da fonte geradora de ruído, concluiu a FATMA que ocorreu a extrapolação dos 10 dB prescritos pela legislação e deu parecer desfavorável ao réu. Este juízo não vê irregularidades nesta constatações, pelo contrário.

Assim, como a legislação estabelece critério objetivo de averiguar se o ruído atinge, no ambiente externo, variação de mais de 10,0 dB, e em caso negativo, passasse a verificar o segundo quesito, qual seja o dos 60,0 dB máximos, para que não se configure ambiente prejudicial, assim, no caso, em tese, o réu teria cometido ato ilícito.

(...).

Este Juízo entende que, no período entre as duas vistorias, ocorreu ruído acima dos níveis legais, isto com base nas provas documentais e periciais. Assim, entre 5-6-2006 (primeira vistoria) e 31-10-2007 (segunda vistoria) há provas nos autos de ilegalidade sonora perpetrada pelo réu.

(...).

É evidente que a poluição sonora atenta conta o direito da sociedade, ao descanso noturno, ao sossego, a saúde mental e a própria convivência social sadia da vizinhança. Ressalta-se que isso tudo é agravado pelo fato de que, entre as vítimas, existem pessoas idosas, que são naturalmente mais sensíveis a perturbações, ainda mais em uma localidade interiorana.

Esses acontecimentos, sob a ótima deste Juízo, extrapolam os meros dissabores, ou aborrecimentos advindos da convivência em área urbana. Há efetivo abalo no estado de espírito nesse período de um ano e quatro meses de perturbação sonora comprovada, que, sem dúvida nenhuma, gerou certa medida de sofrimento aos autores (fls. 321-322).

Vê-se, portanto, que as medições realizadas pela FATMA constataram que o ruído produzido pela câmara frigorífica ultrapassa o limite legal em "mais de 10 (dez) decibéis - dB (A), acima do ruído de fundo existente no local, sem tráfego", conforme determinação constante do inciso I do parágrafo único do artigo 23 do Decreto Estadual n. 14.250/1981.

A prova pericial esclareceu que os pontos de medição que serviram de referência para a medição do nível de poluição sonora, considerado o "ruído de fundo", atingiram entre 31,3 dB e 32,0 dB, enquanto os pontos "A" e "B", situados nas proximidades da residência dos autores, registraram mínimos de 42,3 dB e 42,6 dB e máximos de 42,9 dB e 43,4 dB, superando, assim, a diferença de 10,0 dB, tolerada pela lei. Destarte, a alegação do réu apelante de que a existência de tráfego intenso de veículos automotores nas proximidades da área geradora do ruído afasta a incidência da regra contida no inciso I do parágrafo único do artigo 23 do Decreto Estadual n. 14.250/1981, passando a vigorar o limite de 60 dB, de que trata o inciso II, não se coaduna com a melhor interpretação da norma, pela simples razão de que a expressão "sem tráfego" contida no inciso I refere-se à medição do "ruído de fundo" e não restringe a sua aplicação às situações em que não houver tráfego veicular.

Assim, não tem por que vingar a tese defendida no apelo de que o ruído da câmara frigorífica não ultrapassou o limite legal de ruído, fixado em 60,0 dB, sendo o quanto basta para manter a condenação do réu apelante ao pagamento de indenização por danos morais, no importe fixado pelo Juiz de Direito, mormente à vista dos requisitos da responsabilidade civil subjetiva.

É da jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. VIZINHANÇA. ESTABELECIMENTO COMERCIAL LOCALIZADO NA PARTE TÉRREA DE IMÓVEL RESIDENCIAL. UTILIZAÇÃO DE MAQUINÁRIO NO PERÍODO NOTURNO. PERTURBAÇÃO DA ORDEM. ABALO PSÍQUICO. ATO ILÍCITO CARACTERIZADO. DANO MORAL PRESUMIDO. DEVER DE COMPENSAR. QUANTUM INDENIZATÓRIO. ORIENTAÇÃO PELOS CRITÉRIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

Lesados o sossego e a qualidade de vida pelo ruído e vibração contínuos produzidos pelo equipamento instalado, exsurge o dano moral pelo comprometimento da integridade física e psíquica do vizinho (...) (Ap. Cív. n. 2009.050523-9, de Blumenau, rel. Des. Fernando Carioni, j. 21-1-2010).

sábado, 17 de março de 2012

RECURSO. TEMPESTIVIDADE. FERIADO LOCAL: jurisprudência dominante neste Superior Tribunal plasmada no AgRg nos EREsp 732.042/RS, DJ 26/3/2007, e no AgRg no Ag 708.460-SP, DJ 2/10/2006, ambos da Corte Especial, estabelece que, para fins de demonstração da tempestividade do recurso, incumbe à parte, no momento da interposição, comprovar a ocorrência de suspensão dos prazos processuais em decorrência de feriado local ou de portaria do presidente do Tribunal a quo. Determina, ademais, que não há de se admitir a juntada posterior do documento comprobatório. Precedentes citados: AgRg no Ag 612.373-RJ, DJ 28/3/2005; AgRg no Ag 545.806-GO, DJ 10/5/2004; AgRg no Ag 653.191-RJ, DJ 9/5/2005; AgRg nos EDcl no Ag 739.665-SP, DJ 15/3/2007; AgRg nos EDcl no Ag 646.975-MG, DJ 19/12/2005, e AgRg no Ag 574.272-RS, DJ 5/12/2005. EREsp 299.177-MG, Rel. Min. Eliana Calmon, julgados em 11/2/2008.
CORTE. ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLEMENTO. AGÊNCIAS. INSS: A Turma entendeu que o corte no fornecimento de energia elétrica, quando se trata de pessoa jurídica de direito público, é indevido apenas nas unidades cujo funcionamento não pode ser interrompido, como hospitais, prontos-socorros, centros de saúde, escolas e creches. No caso, trata-se de agências do INSS localizadas no Estado do Rio de Janeiro, que estão com atraso no pagamento das contas de energia elétrica. Assim, a Turma deu provimento ao recurso para que a recorrente tenha possibilidade de cortar o fornecimento de energia elétrica em caso de inadimplemento do usuário. REsp 848.784-RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 9/2/2008.
Concurso público: princípio de igualdade: ofensa inexistente. Não ofende o princípio da igualdade o regulamento de concurso público que, destinado a preencher cargos de vários órgãos da Justiça Federal, sediados em locais diversos, determina que a classificação se faça por unidade da Federação, ainda que daí resulte que um candidato se possa classificar, em uma delas, com nota inferior ao que, em outra, não alcance a classificação respectiva. (RE 146.585, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-4-1995, Primeira Turma, DJ de 15-9-1995.)

sexta-feira, 16 de março de 2012

Cotas para acesso à universidade ferem a CF/88?

Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: CF, 1967, art. 153, § 1º; CF, 1988, art. 5º, caput). A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. (RE 161.243, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 29-10-1996, Segunda Turma, DJ de 19-12-1997.)
"Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: CF, 1967, art. 153, § 1º; CF, 1988, art. 5º, caput). A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso." (RE 161.243, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 29-10-1996, Segunda Turma, DJ de 19-12-1997.)

sábado, 10 de março de 2012

Bicicletas

Impressionante. No mesmo dia em foi publicado, no blog do Noblat, que a adoção das bicicletas públicas, em
Paris, foi considerada a melhor ideia do ano, em Petrolina a imprensa detona. Aconselha a desistir. Diz para investir em transporte coletivo.
Não sei o que entendem de transporte, mas creio que devem se referir aos ônibus...
Esqueçam. O sistema de mototaxi não permite.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Deu no migalhas

Conhecido o recurso especial, STJ pode analisar argumento não abordado na decisão de segundo grau

Um fundamento de defesa alegado nas instâncias ordinárias e não abordado em decisão de segundo grau pode ser examinado pelo STJ após o conhecimento do recurso especial. A decisão é da Segunda Seção, por maioria de votos, no julgamento de embargos de divergência, recurso que aponta contradição entre decisões da Corte.

Os embargos foram opostos contra acórdão da Terceira Turma, que não admitiu o exame de fundamento apontado nas contrarrazões de recurso especial. Os ministros entenderam que faltava o requisito do prequestionamento por ausência de pronunciamento sobre o tema pelo tribunal de segunda instância.

O relator, ministro Massami Uyeda, não conheceu dos embargos de divergência por entender que não estava demonstrada a similitude fática entre as decisões comparadas. O voto foi acompanhado pelos ministros Luis Felipe Salomão e Nancy Andrighi.

A ministra Isabel Gallotti pediu vista e apresentou a tese que prevaleceu no julgamento. Ela considerou que o acórdão contestado da Terceira Turma e o paradigma da Seção chegaram a conclusões opostas ao examinar a possibilidade de um fundamento invocado pela parte vencedora na instância de origem, mas não examinado no acórdão recorrido, ser analisado pelo STJ após o conhecimento do recurso especial, na fase de exame de mérito.

Gallotti interpretou que, segundo a tese adotada pela Terceira Turma, havendo dois fundamentos autônomos de defesa e tendo o acórdão dado ganho de causa ao recorrido, analisando apenas um desses fundamentos e não se pronunciando quanto ao outro, no caso de o STJ não concordar com o fundamento adotado no tribunal de origem, o segundo fundamento não poderá ser analisado depois de ultrapassada a fase de conhecimento do recurso especial, ainda que ele seja reiterado nas contrarrazões.

Segundo a ministra, no julgamento do EResp 20.645, a Segunda Seção decidiu que, tendo o fundamento de defesa sido alegado na instância ordinária, mesmo que não abordado pelo tribunal de origem, caberia seu exame pelo STJ, se ultrapassada a barreira do conhecimento do recurso especial.

Preclusão

Os embargos de divergência julgados discutiam a preclusão (perda da oportunidade de exercício de um direito processual) sobre a definição dos valores de bens em processo de inventário. A Terceira Turma havia dado parcial provimento ao recurso especial para determinar que os bens fossem avaliados conforme o valor que possuíam na época da abertura do inventário. A alegação de preclusão não foi analisada por falta de prequestionamento, mesmo tendo sido apresentada nas contrarrazões do recurso especial.

A ministra Isabel Gallotti ressaltou que o caso julgado não trata da análise de regra técnica de admissibilidade de recurso especial em embargos de divergência, o que não é aceito pela jurisprudência do Tribunal. O recurso especial não foi interposto pelo embargante, que suscitou a preclusão nas contrarrazões ao recurso apresentado pela parte contrária.

Segundo Isabel Gallotti, caso a alegação de preclusão não tivesse sido feita pela embargante em nenhuma oportunidade nas instâncias ordinárias, como alega a embargada, não haveria divergência apta a motivar o conhecimento dos embargos.

No entanto, a ministra observou no processo que a preclusão havia sido alegada. A embargante foi vencedora nas instâncias ordinárias e o acórdão recorrido não se manifestou sobre a alegação de preclusão. Como a decisão lhe foi favorável, não havia interesse na interposição de recurso especial nem na oposição de embargos de declaração para preparar um recurso especial.

Uma vez que o recurso especial foi interposto pela parte vencida, vieram as contrarrazões com a reiteração do argumento de que a questão do critério da avaliação dos bens já estava preclusa, sem recurso contra isso.

“A questão da preclusão foi minuciosamente alegada em contraminuta ao agravo de instrumento na origem; em contrarrazões ao recurso especial e em embargos de declaração ao acórdão embargado”, ressaltou a ministra. “Mais não se lhe poderia ser exigido, senão mediante o atropelo do princípio processual segundo o qual não tem interesse em recorrer a parte plenamente vitoriosa”, concluiu.

Seguindo o voto divergente da ministra Isabel Gallotti, a Segunda Seção deu provimento aos embargos de divergência para determinar que a Terceira Turma examine como entender de direito a questão relativa à preclusão da definição dos valores de bens no processo de inventário.