sexta-feira, 24 de abril de 2015

"Direito não pode ser corrigido por valores morais"
Por Pedro Canário

Qual a validade, como prova, da menção a fatos de terceiros em telefonema grampeado? Levando em consideração a prerrogativa de foro de parlamentares, uma escuta pode ser perpetrada pela Polícia mesmo que o investigado esteja conversando com um senador da República? As questões vieram à tona com a investigação aberta pelo Supremo Tribunal Federal contra o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), depois que o Ministério Público Federal pediu inquérito para apurar sua ligação com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. 

Criminalistas ouvidos pela ConJur na semana passada foram unânimes: a menção a fatos em grampos de terceiro não tem qualquer validade como prova e não pode motivar a uma ação penal. No máximo, pode servir de indício para uma investigação posterior. Caso a Polícia Federal soubesse que o interlocutor das conversas era um senador, deveria encaminhar imediatamente a investigação ao tribunal competente -- senadores têm foro no STF.

A opinião é compartilhada inclusive por membros do Ministério Público. Lenio Streck, promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, corrobora a análise dos advogados e afirma que, em tese, deve ser aplicada ao caso a teoria dos frutos da árvore envenenada, ou seja, se os meios de colher provas foram ilegais, as provas também o são.

Streck respondeu a questionamento da ConJur sobre o tema durante o fim de semana. O promotor e professor de Direito Constitucional trouxe o debate para a Teoria do Direito e discutiu os rumos que a disciplina deve caminhar no Brasil.

Para ele, podem ser feitas duas interpretações em relação ao caso. A primeira é a de que os princípios do Direito são teleológicos, ou relacionados a valores morais, que evoluem conforme a sociedade. “Nessa perspectiva, os princípios seriam fatores de abertura da legalidade formal, para possibilitarem a busca por uma Justiça material”, explica.

Mas essa tese não o agrada, pois, diz, fragiliza a autonomia do Direito, já que ninguém seria capaz de definir o que são valores morais. “Essa palavra, ‘valores’, sofre de uma doença chamada ‘anemia significativa’. Qualquer jurista coloca um sentido que lhe convier. O Direito não pode ser ‘corrigido’ por argumentos políticos ou morais. Ou por argumentos ‘morais-políticos’”.

A tese que agrada a Streck é a de que os princípios jurídicos são deontológicos, ou seja, “um padrão decisório que se constroi historicamente e que gera um dever de obediência nos momentos posteriores”. Dessa forma, os princípios passam a ser determinações fixas, decorrentes do momento em que foram estabelecidas, mas nunca flexíveis conforme as transformações de valores morais de uma sociedade.

Leia abaixo a entrevista com o promotor Lenio Streck.

ConJur – As provas colhidas pela Polícia Federal contra o senador Demóstenes Torres têm validade jurídica?
Lenio Luiz Streck – Trata-se de um caso que, por enquanto, apenas podemos falar absolutamente em tese. De todo modo, antes de qualquer resposta ou opinião sobre assunto tão candente, penso ser necessário delimitar o que a comunidade jurídica de terrae brasilis quer. Mas, para isso, temos que fazer algumas reflexões mais aprofundadas. Explico: historicamente, questões ou casos como esses são "resolvidos" a partir do "clamor público". As provas vêm a publico e o público "julga" de forma antecipada. Desse modo, uma vez que a população pré-julga a causa, em um segundo momento não mais importam perguntas como: de que modo essas provas, com aspas ou sem aspas, vieram à lume? Isso era permitido? Podiam essas provas (ou indícios ou qualquer outro nome que se dê a essas informações) serem publicizadas? E, ratio final? As provas, com ou sem aspas, foram colhidas de acordo com a Constituição? O problema é que, por vezes, já nada importa. Por vezes, o veredicto está dado. Aliás – e até porque há sempre 50% de probabilidades - , em muitos casos, o "veredicto está correto".

ConJur – Correto?
Lenio Streck – Correto a partir daquilo que se pensa no plano de raciocínios finalísticos. Ou seja, suponha-se que se arranque uma informação de alguém à base de tortura. O meio é ilícito. Totalmente ilícito. Mas a informação “arrancada” pode estar “correta”. Só que os caminhos do Direito podem não ser assim. Na verdade, não devem ser assim. Eis o dilema. Explico: disse, há pouco, que historicamente os grandes casos têm sido conduzidos assim, midiaticamente. Não condeno a imprensa, porque ela ocupa um lugar legitimamente conquistado. Entretanto, o que queremos? Parece que todos queremos uma sociedade com menos "malfeitos", menos corrupção, menos impunidade. Mas, para isso, não devemos fazer raciocínios ou julgamentos "teleologicamente". Claro que essa é a minha opinião, que segue as teorias que eu trabalho em meus livros (Verdade e Consenso, por exemplo).

ConJur – A que se refere quando fala em “julgar teleologicamente”?
Lenio Streck – Vou tentar deixar isso mais claro. A partir da teoria da Constituição e da Teoria do Direito – e sem Teoria não há direito –, podemos dizer que há duas formas de tratar as e das garantias constitucionais. Todas as garantias, como sabemos, estão consubstanciadas em preceitos e princípios constitucionais, onde se encaixa, evidentemente, a garantia de que ninguém será prejudicado, processado etc. a partir de provas obtidas de forma não prevista em lei ou não permitidas pela Constituição. Ou seja, falo da proibição de provas ilícitas e do seu corolário adotado pelos experts, doutrina e Tribunais Superiores (lembremos da operação castelo de Areia). Podemos gostar ou não, mas a tradição aponta para esse caminho.

ConJur – E quais são essas formas?
Lenio Streck – Dizia que há dois modos. O primeiro está sustentado na tese de que os princípios são teleológicos. Ou seja, por essa tese, princípios seriam valores. Esses valores "guiariam" o órgão judicante no momento de prolatar a decisão. Nessa perspectiva, os princípios seriam fatores de abertura da legalidade formal, para possibilitarem a busca por uma justiça material. Não me agrada essa tese, porque ela torna a autonomia do direito um tanto quanto frágil e faz com que os princípios sejam o elemento principal dessa fragilização. Mais do que isto, ninguém sabe dizer o que são esses “valores”. Essa palavra “valores” sofre de uma doença chamada “anemia significativa”. Qualquer jurista coloca um sentido que lhe convier. Ora, se os princípios vieram para robustecer o Direito, sua transformação em “valores” provoca, exatamente, o enfraquecimento dessa autonomia. O Direito não pode ser “corrigido” por argumentos políticos ou morais. Ou por argumentos “morais-políticos”.

ConJur – Por quê a tese “valorativa” não lhe agrada?
Lenio Streck – Porque, por ela, os princípios constitucionais não são vistos de forma deontológica. Este é o ponto. Penso que a melhor forma de se encarar o problema dos princípios é conferindo a eles o caráter de “fiadores da autonomia do direito".

ConJur – E a deontologia seria o segundo modo de tratar as garantias constitucionais?
Lenio Streck – Para entender a primeira tese (de que os princípios são teleológicos), é necessário entender exatamente a segunda concepção, que é a de que os princípios são deontológicos. Essa tese é sustentada, entre outros, por Jürgen Habermas. Ele sabe – pois concorda expressamente com Dworkin nesse ponto – que os princípios recebem sua carga deontológica em razão de sua manifestação histórico-cultural no seio de uma comunidade política. Vale dizer: não é uma regra que oferece um “teste de pedigree” que confere validade jurídica a um princípio, mas, sim, um modo específico de a comunidade política se conduzir. Trata-se de um padrão decisório que se constroi historicamente e que gera um dever de obediência nos momentos posteriores. Isto é, os princípíos funcionam pelo código lícito-ilícito. Nessa perspectiva, princípios são normas stricto sensu. São um “dever ser”. Não são meramente conselhos ou mandados de otimização. Ou seja, princípios não são valores. Dizendo de outro modo: tratar princípios teleologicamente é submeter direitos e garantias a um cálculo de custo e benefício, dispensando a sua obrigatoriedade e condicionando-os a pontos de vista parciais. Consequentemente, se analisarmos o case [provas colhidas contra Demóstenes] em questão de forma "teleológica", corremos o risco de aceitar respostas finalísticas, onde "os fins buscados (acabar com a impunidade, eficácia no combate à corrupção)" podem justificar os meios. 

ConJur – É um risco ou uma certeza?
Lenio Streck – Veja, eu não estou dizendo que aqueles que defendem a tese de que os princípios são teleológicos aceitem esse tipo de resultado. Longe disso. Digo apenas que corremos sempre esse risco. Para mim, a melhor resposta, que se coaduna com o Estado Democrático de Direito e com as doutrinas mais sofisticadas, é a de que a aplicação do Direito sempre deve ser feita a partir de raciocínios deontológicos, naquilo, evidentemente, que se entende por aplicação principiológica. Essa mesma tese anteriormente explicitada, ou seja, de que há dois modos de entender os princípios, também pode ser explicada do seguinte modo: os tribunais devem decidir por políticas ou por princípios? Os tribunais devem decidir por raciocínios morais políticos ou por princípios?

ConJur – E qual a resposta?
Lenio Streck – Penso que a melhor resposta é dada por Ronald Dworkin, que sustenta que, não importa a causa, boa ou ruim, ou se o crime é grave ou não, a aplicação sempre deve ser por princípio. Na hermenêutica filosófica também pensamos desse modo. Logo, se a melhor resposta é a de que os princípios são deontológicos e que devemos julgar por princípios, devemos pagar (e cobrar) esse preço. Qual é o preço? O preço é o de, em sendo o caso, devemos contrariar a maioria. Aliás, a Constituição é um remédio contra maiorias. Ela só tem sentido sendo lida desse modo. Direitos fundamentais só adquirem sentido quando postos à prova, no seu limite. Talvez nas piores violações é que se mede o coeficiente democrático de um país.

ConJur – E como isso se aplica ao caso Demóstenes?
Lenio Streck – Resumindo tudo isso: se em um processo a prova for, efetivamente, ilícita na sua origem, aplica-se a tese dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree theory). Essa tese tem guarida no Supremo Tribunal Federal (por exemplo, a Ação penal 307, DF) e é, por assim dizer, antipática. Mas ela é autenticamente contramajoritária. E nisso reside a sua força. Tem também a própria Lei das Interceptações Telefônicas, que não deve ser deixada de lado. Quando falamos em contramajoritarismo, devemos nos lembrar da metáfora de Ulysses e as correntes, da Odisséia. A sobrevivência de Ulysses reside na relevante circunstância de que os marinheiros não devem obedecer outra ordem que não a primeira: “amarrem-me ao mastro”. Porque, se obedecerem a uma segunda ordem do tipo “desamarrem-me”, estarão quebrando o pacto e, consequentemente, jogando Ulysses nos braços da morte, porque ele não resistirá ao “canto das sereias”. Esse “canto” é o das maiorias. Esse “Canto” é um “canto teleológico”.

ConJur – Por qua a tese da proibição de provas ilícitas é antipática?
Lenio Streck – Porque, na ampla maioria dos casos, a sua aplicação beneficiará aqueles que, em um dado momento histórico, a população considera culpado. Pior: na verdade, pensando teleologicamente, são, sim, culpados. Entretanto, é preciso saber que o Direito tem especificidades. Foi assim que a tese nasceu e se fortaleceu nos Estados Unidos. Quantos casos graves, inclusive (ou principalmente) de assassinatos foram anulados pela Suprema Corte americana com base nessa tese principiológica?  A primeira vez que essa tese foi usada, com esse nome, foi no caso  Nardone vs. United States, em 1939, embora haja indicações de usos anteriores, sem esse epíteto.

ConJur – E o caso Demóstenes é um desses?
Lenio Streck – Como disse, falando em tese e sem maior preocupação em entrar na discussão de um caso do qual ainda pouco se conhece, é preciso refletir acerca dos caminhos que a Teoria do Direito nos fornece para examinar casos difíceis que envolvam, de um lado, "o produto tonitroante de indícios contra alguém" e o exame. Do outro lado, do modo pelo qual esse "produto" foi alcançado. Em vez de uma resposta, devolvo a pergunta: devemos pensar, em tais casos (ou, sempre, em Direito) de forma teleológica ou deontológica? De que forma cientistas como Dworkin, Habermas, Gadamer (esse já morreu), MacCormick (para falar apenas de alguns) responderiam a esse tipo de hard case? E como nossos tribunais respondem ou responderão? Teleologicamente ou deontologicamente?

Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.

Consultor Jurídico

LIMITE PENAL

Máxima do "quem cala consente" 
é o perigo do silêncio do acusado

24 de abril de 2015, 8h00

Por  e 

As máximas populares são lugares comuns reiterados no dia-a-dia e que formam, querendo ou não, o aparato cognitivo da população, dentre eles os metidos no processo penal.  Não se pode desprezar ainda o peso da culpa judaico-cristã e do questionamento bíblico “por que calas, se és inocente?”. Por mais que o acusado tenha o direito de permanecer em silêncio, não raro sublinha-se, no contexto da fundamentação das decisões judiciais, que o acusado não quis apresentar sua versão. Isso também é sintoma da ‘frustração de expectativas’, ou seja, o juiz, como ser-no-mundo, é alimentado pela ‘curiosidade’ e movido pelo ‘desejo’, portanto, o silêncio do acusado é um tapa no conjunto de expectativas criadas pelo julgador. O exercício de seu silêncio é tomado como uma confissão silenciosa da culpa. A Constituição da República garante o direito ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII), na linha do devido processo legal substancial, afinal ninguém seria obrigado a produzir prova contra si mesmo. Mas o exercício do direito é mais complexo.

Compreendendo o processo como jogo de informação, a atitude do acusado em permanecer em silêncio ainda encontra forte resistência dos agentes processuais que muitas vezes entendem o exercício do direito como uma forma de desrespeito. Muitos magistrados e membros do Ministério Público tomam o exercício do direito como uma forma de depreciação com suas funções, uma forma “indolente” ou “inatural” de comportamento, quando não invocam, ainda, o não recepcionado artigo 186 do Código de Processo Penal conforme se infere: “O juiz criminal não se pode permitir nenhuma ingenuidade no exercício de suas funções (...) O silêncio do réu não implica em confissão, mas é significativa a atitude de quem, preso e acusado injustamente de crime gravíssimo, prefere manter-se calado, pois a reação natural de qualquer pessoa inocente é proclamar veementemente a sua inocência, esteja onde estiver.” (TRF-4, Ap. Criminal 6.656, julgado em 12/11/2001).

Entre o dizer e o não dizer, aponta Eni Orlandi, existe um intrincando processo de atribuição de sentido, pelo qual as próprias palavras transpiram o sentido, como se do silêncio se deduzisse, imaginariamente, o sentido (que se quiser). O imaginário aqui preenche o sentido que não se deu a partir da tática silenciosa. Daí os riscos de não dizer. Não raro, se pôr em silêncio gera uma dimensão implícita do que se poderia dizer. Daí a importância de se estudar os efeitos do silêncio no processo penal. Eni Orlandi sustenta que “há um sentido no silêncio. O silêncio foi relegado a uma posição secundária, como excrescência, como o ‘resto’ da linguagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial como condição do significar.”[1] Por mais que a Análise do Discurso pontue uma leitura ideológica e histórica do imaginário, diferentemente da articulação de Lacan, mesmo assim, os efeitos da evidência cognitiva decorrentes do preenchimento subjetivo do silêncio deslizam para o contato entre as verdades sabidas, singelas e facilitadoras da decisão penal. Os cúmulos de sentido, as palavras vedetes, os mantras enunciados no ambiente forense, encontram solo fértil no silêncio do acusado. Opera-se na lógica da costura imaginária e ideológica do sentido ao silêncio. A ordem ao discurso possui como pano de fundo o ponto de vista ideológico, tomado de assalto pela postura inquisitória de descoberta da verdade real, ainda existente, não fosse a sua matreira ingenuidade, na postura do senso comum teórico (Warat) do Processo Penal.

O silêncio articula um convite ao vazio a ser preenchido. Ao mesmo tempo em que preenche a narrativa, autoriza seu preenchimento, dada a confusão entre o vazio e o nada. Daí o paradoxo e os riscos de seu exercício. Com o silêncio as coordenadas do sentido migram, sendo necessário compreender autenticamente a noção de sentido para que não se corra o risco de ser engolfado pela postura paranoica (Franco Cordero e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), de se saber o que o silêncio diz. Deixar que o silêncio opere no processo penal, especialmente no lugar do acusado, precisa, assim, ser problematizado. Não é uma simples tática processual. Pode gerar consequências avassaladoras. Isso porque no jogo da linguagem e das imagens que evocam, como metáfora, no contexto do processo penal, a alucinação probatória (Rui Cunha Martins), pode gerar consequências confirmatórias pela máxima não dita nos processos penais de que “quem cala consente.”

Helen Hartmann pontua que “entender o silêncio como uma opção indolente ou inatural por não apresentar uma versão dos fatos — ponderação que vem a lume quando do convencimento do magistrado — é valorá-lo tal qual a uma confissão. Quando o magistrado entende que todo o inocente necessariamente verbaliza sua versão, condena aquele que se cala a uma confissão velada. O silêncio não deve pesar ao convencimento porque nada é. Do contrário, trata-se de torturar racional e psiquicamente, por meio das implicações do exercício do direito ao silêncio.”[2] Daí a importância da jogada processual do interrogatório.

O processo penal é um complexo ritual de reconstituição de um fato passado, através do qual as partes buscam a ‘captura psíquica do julgador’. Na dinâmica do ‘procedere’, como explica James Goldschmidt, surgem expectativas, perspectivas, chances, cargas e liberação de cargas. O não aproveitamento dessas chances (especialmente na instrução) gera a perda de uma oportunidade de liberação da carga, gerando a perspectiva de um provimento final desfavorável. Portanto, quem melhor aproveitar as chances para se liberar das cargas probatórias, aumenta a expectativa de uma sentença favorável; em sentido inverso, a não liberação das cargas gera a perspectiva de uma sentença desfavorável. Essa dinâmica funciona perfeitamente no processo civil, contudo, no processo penal, precisa sofrer um importante ajuste: no processo penal a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não havendo distribuição de cargas (senão mera atribuição) porque o réu está protegido pela presunção de inocência. Portanto, o direito de silêncio não ingressa na dinâmica da necessidade de liberação de carga e tampouco da geração de prejuízo imediato. Esse é o ponto nevrálgico. Contudo, como recém explicado, a questão desloca-se para a dimensão da “assunção do risco” pela perda de uma chance de obter a captura psíquica do juiz.

A segurança, tranquilidade e coerência do interrogatório são fundamentais. É o gran finaledo palco probatório[3]. A possibilidade de articulação de uma narrativa coerente, a qual explique, com sentido, a conduta. Não pode ser extraordinária (droga caiu do céu, foi droga achada, etc.), pois deve abrir a possibilidade de ser crível. A postura do acusado quanto mais arrogante pior, suas vestes, a preparação, nervosismo (alguém muito calmo ou agitado não passa boa impressão). E o interrogatório é, sempre, muito arriscado. Sempre. Daí que diante da (in)capacidade do acusado, muitas vezes, com os riscos do silêncio (sempre diz, via imaginário), uma ação coordenada depois de finalizada a produção probatória pode indicar que se deve calar, a fim de minimizar os efeitos adversos. Anote-se que a religião ocupa um papel de destaque no interrogatório, dada a substituição do Padre pelo Juiz no imaginário coletivo, e muitas vezes o acusado precisa se confessar[4].

Como o silêncio pode deslizar em diferentes sentidos para o sujeito, especialmente no ambiente processual brasileiro, ficar em silêncio pode ser um risco a ser mensurado. Exercer direitos no Brasil pode ser uma tarefa clandestina e arriscada, principalmente quando se está movido por verdades absolutas e autoritárias. O risco está posto. A análise deve ser feita em cada processo penal, conforme seus personagens. A dinâmica do processo é única. O silêncio, todavia, pode ganhar sentidos inesperados, dado que os efeitos do silêncio são imprevisíveis. Afinal, quem cala, nem sempre consente. Certo?


[1] ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Editora Unicamp, 2007, p. 12.
[2] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168
[3] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015.

Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2015, 8h00

Consultor Jurídico

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Prisão civil do depositário infiel e o "controle de convencionalidade"

24 de abril de 2015, 8h02

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Embora, especialmente na última coluna já tenhamos traçado considerações gerais sobre a relação entre tratados de direitos humanos e a ordem jurídica interna, bem como tematizado, ainda que apertada síntese, os contornos do assim chamado controle de convencionalidade das leis e atos internos no Brasil, tendo como parâmetro precisamente as convenções (tratados) internacionais de direitos humanos, nada melhor, dada a relevância do tema, do que insistir no ponto e avançarmos um pouco mais, desta feita com o exame um pouco mais detalhado (considerados os limites da presente coluna) de alguns casos ilustrativos que foram objeto da pauta dos Tribunais Superiores brasileiros, com destaque aqui para o STF e para o que representou o leading case no que diz com a fixação, em caráter majoritário, da posição atualmente dominante naquela Corte, qual seja, a hipótese de prisão civil do depositário infiel, sobre a qual, aliás, já tivemos oportunidade de publicar artigo de doutrina, em coautoria com a Profa. Dra. Selma Petterle, escrito ao qual recorremos também em parte para a redação do presente texto, considerando a atualidade da discussão[1].

Vale recordar, nesse contexto, que a norma (regra) contida no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (doravante apenas CF) estabelece a proibição da prisão civil por dívida, ressalvadas duas hipóteses: a) a do responsável pelo inadimplemento, voluntário e inescusável, de obrigação alimentícia; b) do depositário infiel. No direito constitucional brasileiro anterior, as Constituições de 1824, 1891 e 1937 não dispuseram sobre o tema, mas a legislação vigente na época assegurava a possibilidade da prisão, acrescida, posteriormente, da prisão por dívida de natureza alimentar, como é o caso, por exemplo, do antigo Código Comercial de 1850 (artigos 20, 90 e 284) e do Código Civil de 1916 (artigo 1.287: prisão civil do depositário). Por sua vez, a proibição de prisão civil por dívida foi consagrada nas Constituições de 1934 (artigo 113, § 30, vedando a prisão por dívidas, multas ou custas), de 1946 (artigo 141, § 32, estabelecendo a vedação de prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel e o de inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei), dispositivo que foi reproduzido pela Constituição de 1967 (artigo 150, § 17), assim como pela Emenda Constitucional 1, de 1969 (artigo 153, § 17), e que corresponde em geral ao texto da vigente CF, já referido.

Quanto ao direito constitucional estrangeiro, embora frequente a proibição da prisão por dívidas, também existem sistemas nos quais as constituições não vedam em si a prisão na esfera cível, condicionando-a, contudo, à previsão em lei, como se verifica no caso, por exemplo, das Constituições da Espanha (artigo 17, 1), da Constituição Portuguesa (artigo 27, 2), da Constituição da Alemanha (artigo 2.2) e da Constituição italiana (artigo 13).

Por sua vez, no plano do direito internacional dos direitos humanos, que aqui nos é tão caro, notadamente em virtude do enfoque pautado pelo controle de convencionalidade e restringindo-nos aos principais tratados sobre o tema ratificados pelo Brasil e incorporados ao direito interno, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no seu artigo 11, estabelece que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”, ao passo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), no artigo 7, nº 7, consagra que “ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

No quadro da doutrina e da jurisprudência brasileiras a questão sempre foi relativamente polêmica, mas a controvérsia se tornou particularmente aguda depois da promulgação da atual CF, pelo fato de os tratados de direitos humanos terem sido expressamente incluídos (artigo 5º, § 2º) no rol dos direitos fundamentais, mas também pelo fato de os tratados acima referidos terem sido aprovados pelo Congresso Nacional e incorporados ao direito interno alguns anos depois. Se quanto à prisão civil na hipótese de dívida alimentar a celeuma em geral diz respeito a outras questões (rito processual, exceções, hipóteses de cabimento, prazos, regime prisional, entre outros), mas em geral não se questiona a sua constitucionalidade e nem a sua incompatibilidade com os tratados de direitos humanos, que expressamente excepcionam tal situação, no caso da prisão civil de depositário infiel a própria possibilidade da sanção passou a ser cada vez mais questionada.

De qualquer sorte, antes de avançar, é importante recordar que a prisão civil, no sistema jurídico brasileiro, não é considerada pena, mas meio processual de cunho coercitivo e de caráter excepcional, cabível nas duas hipóteses estabelecidas na CF, já referidas.

Focando-nos agora na prisão civil do depositário infiel, que abarcava diversas possibilidades, desde o problema da configuração do depósito na alienação fiduciária em garantia até o depositário judicial, a jurisprudência dominante, tanto no STJ, quanto no TST, vinha, até por volta dos anos 2008-2009, mas ao longo do tempo com crescentes divergências e aumento do número de exceções tidas como justificadas (o que não será possível rastrear aqui e agora), chancelando a possibilidade da prisão civil nos casos de configurada a condição de depositário infiel.

A situação acabou sofrendo um câmbio radical quando da edição, pelo STF, da Súmula vinculante n. 25, dispondo que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, seja qual for a modalidade do depósito”, por ocasião da Sessão Plenária de 16.12.2009, DOU de 23.12.2009, decorrente de uma série de julgados, com destaque para o RE nº 466.343/ SP, Relator Ministro Cezar Peluso, julgado pelo Pleno do STF em 03.12.2008. No STJ, embora, como adiantado, a existência de julgados contrários à prisão civil do depositário infiel, especialmente nos casos de contrato de alienação fiduciária (destaque-se o paradigmático REsp. nº 149.518/GO, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 28.02.2000), a situação também acabou por se ajustar na esteira da Súmula do STF, quando então o STJ editou a Súmula n. 419, dispondo sobre o descabimento da prisão do depositário judicial infiel (Corte Especial em 03.03.2010, DJe 11.03.2010).

Mas o que nos move aqui não é apresentar um inventário das discussões nos Tribunais Superiores, ainda mais dadas as peculiaridades de algumas situações apresentadas por algumas das hipóteses de prisão civil de depositário infiel reguladas na legislação infraconstitucional e mesmo admitidas por força de decisões judiciais, como, por exemplo, a configuração, ou não, de depósito típico, de modo a afastar, a depender do caso e sem necessidade de adentrar outro terreno argumentativo, a possibilidade de decreto prisional.

Assim, o que se pretende enfatizar são os aspectos vinculados à força jurídica interna dos tratados de direitos humanos, até mesmo pelo fato de se cuidar de linha argumentativa cada vez mais privilegiada na discussão doutrinária e jurisprudencial. Nesse contexto, é preciso recordar que, de acordo com a jurisprudência consagrada pelo STF e em que pese alguns votos dissidentes, o Decreto-Lei n. 911/1969 e de modo geral a legislação permissiva da prisão teria sido recepcionado pela nova ordem constitucional e a equiparação do devedor fiduciário ao depositário infiel não afrontaria a Constituição, autorizando a expedição de decreto de prisão civil no caso da alienação fiduciária em garantia, tendo o Supremo Tribunal Federal inclusive cassado decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça que consideravam descabida a prisão. Além disso, aos tratados de direitos humanos era atribuída hierarquia de lei ordinária, a exemplo dos demais tratados internacionais, chegando-se ao ponto de (sempre vencida uma minoria) a argumentar que mesmo o tratado tendo sido aprovado posteriormente pelo Congresso Nacional haveria de prevalecer a lei anterior permissiva da prisão pelo fato de se tratar de lei especial e que não poderia ser revogada pelo tratado, lei geral.

Mas, como já anunciado, em 2008 (vinte anos após a promulgação da CF!!) tal orientação acabou por ser revista, destacando-se, entre os julgados proferidos e que balizaram a alteração do entendimento do STF, o já citado Recursos Extraordinário 466.343/SP.  No julgado, especialmente a partir do voto do Ministro Gilmar Mendes (que acabou formando a maioria), foi reconhecida a inconstitucionalidade da prisão civil do devedor e depositário em contratos de alienação fiduciária e similares por violação das exigências da proporcionalidade, mas também, embora refutada a tese da paridade entre a CF e os tratados de direitos humanos, afirmada a tese da hierarquia supralegal de tais tratados, de modo a cederem em face da CF, mas prevalecerem sobre os demais atos normativos internos.

O que chama a atenção, contudo, é que de acordo com os julgados a autorização constitucional para a prisão civil do depositário infiel não foi revogada, deixando, contudo, de ser aplicável, pois os tratados de direitos humanos teriam, em virtude de sua hierarquia supralegal, um efeito paralisante sobre toda a legislação infraconstitucional que disponha ou venha a dispor em sentido oposto, deixando de existir base legal para a prisão nesses casos.

Contudo, por mais que se queira e possa aplaudir a nova orientação do STF, especialmente em se tratado das evidentemente ilegítimas situações da alienação fiduciária e similares, algumas questões permanecem em aberto e desafiam a reflexão crítica.

Uma reflexão possível é a de que o STF acabou, de certo modo, caindo em contradição. Com efeito,  ao refutar a tese da paridade entre a CF e os tratados, hipótese na qual poderia, mediante um juízo de ponderação e na esteira da lógica do in favor persona (já comentada na coluna de 10.04.15), ter afastado, pelo menos como regra, a prisão civil do depositário, o STF afirmou a hierarquia supralegal (mas infraconstitucional) dos tratados. Com isso, em que pese o artifício argumentativo de que a CF não teria sido revogada, o que houve foi sim uma derrogação informal do permissivo constitucional expresso. Ora, se os tratados situam-se abaixo da CF e o STF afirmou a competência para declarar sua inconstitucionalidade, não parece que a tese da supralegalidade possa, aplicada coerentemente, afastar por completo e mesmo para toda e qualquer hipótese futura, possibilidade expressamente afirmada pela CF que lhe seque superior. A situação se revela ainda mais complexa e carente de melhor equacionamento quando a comparamos com outros casos, como, por exemplo, o do reconhecimento do duplo grau de jurisdição, ao menos em matéria criminal, mas que aqui não será desenvolvido. De todo modo, reiteramos aqui nosso entendimento no sentido de que a tese da supralegalidade, a despeito do significativo avanço que representou, não soa como a melhor alternativa.

Mas há outros pontos a invocar e que também atraem algum contraponto.

O primeiro – e aqui frisamos que estamos a nos referir apenas à prisão civil de depositário judicial – é a de que resulta no mínimo discutível o conflito direto entre os tratados e a ordem jurídica nacional, pois, como já visto quando das breves notas sobre o direito estrangeiro, a vedação da prisão civil nos tratados não é absoluta. Note-se que os tratados vedam apenas a prisão por dívida, sabendo-se que a prisão por dívida é apenas uma modalidade do gênero prisão civil, de tal sorte que a existência de um conflito entre os tratados e a CF, que permite a prisão do depositário infiel, é resultado de uma interpretação, mas não algo em si evidente e incontroverso. Aliás, é preciso recordar que a própria jurisprudência dos Tribunais Superiores (STJ, TST e mesmo o STF), antes da viragem de 2009-10, vinha sustentando que a obrigação do depositário judicial não decorre de uma relação contratual, como no depósito voluntário, mas sim, do exercício de um encargo público.

Outro ponto a ser resgatado é o de que na hipótese de depositário judicial, verifica-se manifesto conflito entre a liberdade pessoal do depositário judicial infiel (sujeita à restrição pela prisão civil) e a garantia de efetividade do processo, assim como com o próprio Direito deduzido judicialmente, que encontra, na constrição e depósito de determinado bem, muitas vezes a única garantia de que, após longos anos de disputa judicial, seja satisfeita a obrigação reclamada. De outra parte, resulta pelo menos questionável o entendimento de que aqui se trate (consoante já adiantado) de típica prisão por dívida, visto que o que se busca coibir é uma forma de fraude à efetividade do processo, ainda mais ausentes outras formas de execução e, evidentemente, preservado o contraditório e a possibilidade de demonstração da ausência de responsabilidade pelo perecimento do bem depositado.

Embora não seja possível avançar com a análise, cuida-se de discussão a ser aprofundada à luz das diversas variáveis a serem consideradas. Apenas para ilustrar, há que enfrentar o problema de, em sendo completamente banida a prisão civil, ser criado algum tipo de garantia para que as pessoas que ainda buscam solver na esfera judicial os seus conflitos tenham o direito efetivado, pois do contrário, o dever de proteção do estado poderá estar pendendo em favor apenas de um dos interesses em causa. Além disso, o argumento corrente que se trata da contraposição entre meros interesses patrimoniais (da parte credora) e da dignidade (do devedor/depositário) igualmente merece ser melhor debatido. Com efeito, a integral convergência entre o direito de liberdade e a dignidade da pessoa humana faria com que qualquer restrição da liberdade (mesmo de cunho penal) sempre representasse uma violação da dignidade da pessoa humana, quando, em verdade, apenas a prisão perpétua e a execução da restrição da liberdade em condições indignas (este sim, fenômeno comum entre nós) costumam ser consideradas ofensivas à dignidade ou mesmo ao núcleo essencial do direito de liberdade.

Da mesma forma, não é apenas o interesse, nem sempre “meramente” patrimonial do credor que está em causa (basta apontar para o exemplo de dívidas de cunho alimentar ou existencial, não enquadradas nas hipóteses legais que admitem a prisão civil, mas que resultaram em penhora e depósito judicial!), mas, como já referido, a dimensão objetiva da garantia (fundamental) do direito a ter direitos efetivos, que, se não puder ser, em caráter excepcional, assegurada mediante a aplicação da prisão civil, deveria pelo menos encontrar outra forma de satisfação por parte do Estado, questão que desafia maior investimento e se situa na esfera do problema mais amplo do acesso efetivo à Justiça. Se de fato a prisão, ainda mais se não asseguradas condições efetivamente dignas de sua execução (o que, aliás, vale da mesma forma para a prisão penal), não parece a melhor alternativa, o dever estatal de proteção dos direitos fundamentais de quem cumpre as regras do Estado de Direito há de ser tornado efetivo de outro modo. Mas isso já não cabe mais na presente coluna, que já anda longa demais! O que importa, ao fim e ao cabo, é que o caso da prisão civil nos permite acompanhar a evolução da discussão sobre a força jurídica dos tratados de direitos humanos no Brasil e propiciar uma leitura crítica de como foi, nessa hipótese, levado a efeito o controle de convencionalidade. 


[1] SARLET, Ingo Wolfgang; PETTERLE, Selma Rodrigues. “A prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro: evolução e perspectivas em face da recente orientação adotada pelo STF”, in: Revista da Ajuris, n. 116, dezembro 2009, bem como, dos mesmos autores, o verbete sobre o tema inserido na obra Comentários à Constituição do Brasil, Coordenação de J.J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo W. Sarlet e Lenio Luiz Streck, São Paulo: Saraiva, 2014. 

Ingo Wolfang Sarlet é professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS e Professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).

Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2015, 8h02

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O PERDÃO CUSTA CARO

Fabrício Carpinejar

Qualquer criança confessa. Ou pela pressão da verdade ou pela ameaça das informações desencontradas.

A confissão não expressa maturidade. Tem que ser adulto mesmo para arcar com as consequências de seus atos e pagar a pena (que leva em conta a mentira e também o tempo que manteve a mentira).

Diante da quebra de lealdade no relacionamento, a sinceridade do arrependimento depende da contundência da mudança e rápida e emocionada disponibilidade para a retratação. Não pode haver vacilação e dúvida. Rompe-se radicalmente com o que trazia dor e duplicidade, recusam-se barganha e atenuantes, é deixar uma vida para trás e nascer de novo. Exige uma combinação enérgica de resistência emocional e determinação, para provar que nada se repetirá.

Pois se mostrar arrependido é diferente de cumprir o arrependimento.

O primeiro é um estado provisório, que pode ser da boca para fora, provocado pelo medo de perder alguém. Uma promessa, simplesmente, acalmando os ânimos acirrados.

O segundo é um processo de resiliência, definitivo, para resgatar a igualdade e cicatrizar a confiança daquele que se magoou. É quando transformamos a dívida em responsabilidade, quando transformamos o castigo em justiça, quando aceitamos repor as perdas e recuperar o direito de falar. Alinha-se a consciência novamente ao discurso.

Amadurecimento é corrigir o que foi feito de errado pela dedicação, pelo trabalho, dar o exemplo de integridade em sequência, sem jamais desistir. Com humildade, aguentar a desconfiança e a suspeita de quem feriu. Não desfrutará de meias-palavras, nem de um silêncio agradável: é o caso de se apresentar transparente na intenção e didático nos pensamentos.

Por um longo período, você que errou passará a ser o único a confiar em si, e não conhecerá dias leves. Estará em desvantagem nas conversas, precisará prestar satisfações e confirmar horários. A reincidência estará sorrindo à sua frente quando chora e se contorce de culpa. Terá vontade de retornar ao que era, onde mentia, fazia o que queria e não devia nada a ninguém.

Pedir desculpa é fácil e indolor, diria que é um suspiro letrado, mas carregar “eu errei” todo o dia nas costas que é árduo e tarefa para fortes.

Tudo pode ser consertado. Tudo. Desde que se entenda que desculpa é para crianças, e reabilitação é para adultos. Será obrigado a crescer.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS), 29/03/2015 Edição N°18116