terça-feira, 28 de abril de 2015
sexta-feira, 24 de abril de 2015
LIMITE PENAL
Máxima do "quem cala consente"
é o perigo do silêncio do acusado
24 de abril de 2015, 8h00
Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa
As máximas populares são lugares comuns reiterados no dia-a-dia e que formam, querendo ou não, o aparato cognitivo da população, dentre eles os metidos no processo penal. Não se pode desprezar ainda o peso da culpa judaico-cristã e do questionamento bíblico “por que calas, se és inocente?”. Por mais que o acusado tenha o direito de permanecer em silêncio, não raro sublinha-se, no contexto da fundamentação das decisões judiciais, que o acusado não quis apresentar sua versão. Isso também é sintoma da ‘frustração de expectativas’, ou seja, o juiz, como ser-no-mundo, é alimentado pela ‘curiosidade’ e movido pelo ‘desejo’, portanto, o silêncio do acusado é um tapa no conjunto de expectativas criadas pelo julgador. O exercício de seu silêncio é tomado como uma confissão silenciosa da culpa. A Constituição da República garante o direito ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII), na linha do devido processo legal substancial, afinal ninguém seria obrigado a produzir prova contra si mesmo. Mas o exercício do direito é mais complexo.
Compreendendo o processo como jogo de informação, a atitude do acusado em permanecer em silêncio ainda encontra forte resistência dos agentes processuais que muitas vezes entendem o exercício do direito como uma forma de desrespeito. Muitos magistrados e membros do Ministério Público tomam o exercício do direito como uma forma de depreciação com suas funções, uma forma “indolente” ou “inatural” de comportamento, quando não invocam, ainda, o não recepcionado artigo 186 do Código de Processo Penal conforme se infere: “O juiz criminal não se pode permitir nenhuma ingenuidade no exercício de suas funções (...) O silêncio do réu não implica em confissão, mas é significativa a atitude de quem, preso e acusado injustamente de crime gravíssimo, prefere manter-se calado, pois a reação natural de qualquer pessoa inocente é proclamar veementemente a sua inocência, esteja onde estiver.” (TRF-4, Ap. Criminal 6.656, julgado em 12/11/2001).
Entre o dizer e o não dizer, aponta Eni Orlandi, existe um intrincando processo de atribuição de sentido, pelo qual as próprias palavras transpiram o sentido, como se do silêncio se deduzisse, imaginariamente, o sentido (que se quiser). O imaginário aqui preenche o sentido que não se deu a partir da tática silenciosa. Daí os riscos de não dizer. Não raro, se pôr em silêncio gera uma dimensão implícita do que se poderia dizer. Daí a importância de se estudar os efeitos do silêncio no processo penal. Eni Orlandi sustenta que “há um sentido no silêncio. O silêncio foi relegado a uma posição secundária, como excrescência, como o ‘resto’ da linguagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial como condição do significar.”[1] Por mais que a Análise do Discurso pontue uma leitura ideológica e histórica do imaginário, diferentemente da articulação de Lacan, mesmo assim, os efeitos da evidência cognitiva decorrentes do preenchimento subjetivo do silêncio deslizam para o contato entre as verdades sabidas, singelas e facilitadoras da decisão penal. Os cúmulos de sentido, as palavras vedetes, os mantras enunciados no ambiente forense, encontram solo fértil no silêncio do acusado. Opera-se na lógica da costura imaginária e ideológica do sentido ao silêncio. A ordem ao discurso possui como pano de fundo o ponto de vista ideológico, tomado de assalto pela postura inquisitória de descoberta da verdade real, ainda existente, não fosse a sua matreira ingenuidade, na postura do senso comum teórico (Warat) do Processo Penal.
O silêncio articula um convite ao vazio a ser preenchido. Ao mesmo tempo em que preenche a narrativa, autoriza seu preenchimento, dada a confusão entre o vazio e o nada. Daí o paradoxo e os riscos de seu exercício. Com o silêncio as coordenadas do sentido migram, sendo necessário compreender autenticamente a noção de sentido para que não se corra o risco de ser engolfado pela postura paranoica (Franco Cordero e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), de se saber o que o silêncio diz. Deixar que o silêncio opere no processo penal, especialmente no lugar do acusado, precisa, assim, ser problematizado. Não é uma simples tática processual. Pode gerar consequências avassaladoras. Isso porque no jogo da linguagem e das imagens que evocam, como metáfora, no contexto do processo penal, a alucinação probatória (Rui Cunha Martins), pode gerar consequências confirmatórias pela máxima não dita nos processos penais de que “quem cala consente.”
Helen Hartmann pontua que “entender o silêncio como uma opção indolente ou inatural por não apresentar uma versão dos fatos — ponderação que vem a lume quando do convencimento do magistrado — é valorá-lo tal qual a uma confissão. Quando o magistrado entende que todo o inocente necessariamente verbaliza sua versão, condena aquele que se cala a uma confissão velada. O silêncio não deve pesar ao convencimento porque nada é. Do contrário, trata-se de torturar racional e psiquicamente, por meio das implicações do exercício do direito ao silêncio.”[2] Daí a importância da jogada processual do interrogatório.
O processo penal é um complexo ritual de reconstituição de um fato passado, através do qual as partes buscam a ‘captura psíquica do julgador’. Na dinâmica do ‘procedere’, como explica James Goldschmidt, surgem expectativas, perspectivas, chances, cargas e liberação de cargas. O não aproveitamento dessas chances (especialmente na instrução) gera a perda de uma oportunidade de liberação da carga, gerando a perspectiva de um provimento final desfavorável. Portanto, quem melhor aproveitar as chances para se liberar das cargas probatórias, aumenta a expectativa de uma sentença favorável; em sentido inverso, a não liberação das cargas gera a perspectiva de uma sentença desfavorável. Essa dinâmica funciona perfeitamente no processo civil, contudo, no processo penal, precisa sofrer um importante ajuste: no processo penal a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não havendo distribuição de cargas (senão mera atribuição) porque o réu está protegido pela presunção de inocência. Portanto, o direito de silêncio não ingressa na dinâmica da necessidade de liberação de carga e tampouco da geração de prejuízo imediato. Esse é o ponto nevrálgico. Contudo, como recém explicado, a questão desloca-se para a dimensão da “assunção do risco” pela perda de uma chance de obter a captura psíquica do juiz.
A segurança, tranquilidade e coerência do interrogatório são fundamentais. É o gran finaledo palco probatório[3]. A possibilidade de articulação de uma narrativa coerente, a qual explique, com sentido, a conduta. Não pode ser extraordinária (droga caiu do céu, foi droga achada, etc.), pois deve abrir a possibilidade de ser crível. A postura do acusado quanto mais arrogante pior, suas vestes, a preparação, nervosismo (alguém muito calmo ou agitado não passa boa impressão). E o interrogatório é, sempre, muito arriscado. Sempre. Daí que diante da (in)capacidade do acusado, muitas vezes, com os riscos do silêncio (sempre diz, via imaginário), uma ação coordenada depois de finalizada a produção probatória pode indicar que se deve calar, a fim de minimizar os efeitos adversos. Anote-se que a religião ocupa um papel de destaque no interrogatório, dada a substituição do Padre pelo Juiz no imaginário coletivo, e muitas vezes o acusado precisa se confessar[4].
Como o silêncio pode deslizar em diferentes sentidos para o sujeito, especialmente no ambiente processual brasileiro, ficar em silêncio pode ser um risco a ser mensurado. Exercer direitos no Brasil pode ser uma tarefa clandestina e arriscada, principalmente quando se está movido por verdades absolutas e autoritárias. O risco está posto. A análise deve ser feita em cada processo penal, conforme seus personagens. A dinâmica do processo é única. O silêncio, todavia, pode ganhar sentidos inesperados, dado que os efeitos do silêncio são imprevisíveis. Afinal, quem cala, nem sempre consente. Certo?
[1] ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Editora Unicamp, 2007, p. 12.
[2] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168
[3] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2015, 8h00
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Prisão civil do depositário infiel e o "controle de convencionalidade"
24 de abril de 2015, 8h02
Por Ingo Wolfang Sarlet
Embora, especialmente na última coluna já tenhamos traçado considerações gerais sobre a relação entre tratados de direitos humanos e a ordem jurídica interna, bem como tematizado, ainda que apertada síntese, os contornos do assim chamado controle de convencionalidade das leis e atos internos no Brasil, tendo como parâmetro precisamente as convenções (tratados) internacionais de direitos humanos, nada melhor, dada a relevância do tema, do que insistir no ponto e avançarmos um pouco mais, desta feita com o exame um pouco mais detalhado (considerados os limites da presente coluna) de alguns casos ilustrativos que foram objeto da pauta dos Tribunais Superiores brasileiros, com destaque aqui para o STF e para o que representou o leading case no que diz com a fixação, em caráter majoritário, da posição atualmente dominante naquela Corte, qual seja, a hipótese de prisão civil do depositário infiel, sobre a qual, aliás, já tivemos oportunidade de publicar artigo de doutrina, em coautoria com a Profa. Dra. Selma Petterle, escrito ao qual recorremos também em parte para a redação do presente texto, considerando a atualidade da discussão[1].
Vale recordar, nesse contexto, que a norma (regra) contida no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (doravante apenas CF) estabelece a proibição da prisão civil por dívida, ressalvadas duas hipóteses: a) a do responsável pelo inadimplemento, voluntário e inescusável, de obrigação alimentícia; b) do depositário infiel. No direito constitucional brasileiro anterior, as Constituições de 1824, 1891 e 1937 não dispuseram sobre o tema, mas a legislação vigente na época assegurava a possibilidade da prisão, acrescida, posteriormente, da prisão por dívida de natureza alimentar, como é o caso, por exemplo, do antigo Código Comercial de 1850 (artigos 20, 90 e 284) e do Código Civil de 1916 (artigo 1.287: prisão civil do depositário). Por sua vez, a proibição de prisão civil por dívida foi consagrada nas Constituições de 1934 (artigo 113, § 30, vedando a prisão por dívidas, multas ou custas), de 1946 (artigo 141, § 32, estabelecendo a vedação de prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel e o de inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei), dispositivo que foi reproduzido pela Constituição de 1967 (artigo 150, § 17), assim como pela Emenda Constitucional 1, de 1969 (artigo 153, § 17), e que corresponde em geral ao texto da vigente CF, já referido.
Quanto ao direito constitucional estrangeiro, embora frequente a proibição da prisão por dívidas, também existem sistemas nos quais as constituições não vedam em si a prisão na esfera cível, condicionando-a, contudo, à previsão em lei, como se verifica no caso, por exemplo, das Constituições da Espanha (artigo 17, 1), da Constituição Portuguesa (artigo 27, 2), da Constituição da Alemanha (artigo 2.2) e da Constituição italiana (artigo 13).
Por sua vez, no plano do direito internacional dos direitos humanos, que aqui nos é tão caro, notadamente em virtude do enfoque pautado pelo controle de convencionalidade e restringindo-nos aos principais tratados sobre o tema ratificados pelo Brasil e incorporados ao direito interno, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no seu artigo 11, estabelece que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”, ao passo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), no artigo 7, nº 7, consagra que “ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.
No quadro da doutrina e da jurisprudência brasileiras a questão sempre foi relativamente polêmica, mas a controvérsia se tornou particularmente aguda depois da promulgação da atual CF, pelo fato de os tratados de direitos humanos terem sido expressamente incluídos (artigo 5º, § 2º) no rol dos direitos fundamentais, mas também pelo fato de os tratados acima referidos terem sido aprovados pelo Congresso Nacional e incorporados ao direito interno alguns anos depois. Se quanto à prisão civil na hipótese de dívida alimentar a celeuma em geral diz respeito a outras questões (rito processual, exceções, hipóteses de cabimento, prazos, regime prisional, entre outros), mas em geral não se questiona a sua constitucionalidade e nem a sua incompatibilidade com os tratados de direitos humanos, que expressamente excepcionam tal situação, no caso da prisão civil de depositário infiel a própria possibilidade da sanção passou a ser cada vez mais questionada.
De qualquer sorte, antes de avançar, é importante recordar que a prisão civil, no sistema jurídico brasileiro, não é considerada pena, mas meio processual de cunho coercitivo e de caráter excepcional, cabível nas duas hipóteses estabelecidas na CF, já referidas.
Focando-nos agora na prisão civil do depositário infiel, que abarcava diversas possibilidades, desde o problema da configuração do depósito na alienação fiduciária em garantia até o depositário judicial, a jurisprudência dominante, tanto no STJ, quanto no TST, vinha, até por volta dos anos 2008-2009, mas ao longo do tempo com crescentes divergências e aumento do número de exceções tidas como justificadas (o que não será possível rastrear aqui e agora), chancelando a possibilidade da prisão civil nos casos de configurada a condição de depositário infiel.
A situação acabou sofrendo um câmbio radical quando da edição, pelo STF, da Súmula vinculante n. 25, dispondo que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, seja qual for a modalidade do depósito”, por ocasião da Sessão Plenária de 16.12.2009, DOU de 23.12.2009, decorrente de uma série de julgados, com destaque para o RE nº 466.343/ SP, Relator Ministro Cezar Peluso, julgado pelo Pleno do STF em 03.12.2008. No STJ, embora, como adiantado, a existência de julgados contrários à prisão civil do depositário infiel, especialmente nos casos de contrato de alienação fiduciária (destaque-se o paradigmático REsp. nº 149.518/GO, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 28.02.2000), a situação também acabou por se ajustar na esteira da Súmula do STF, quando então o STJ editou a Súmula n. 419, dispondo sobre o descabimento da prisão do depositário judicial infiel (Corte Especial em 03.03.2010, DJe 11.03.2010).
Mas o que nos move aqui não é apresentar um inventário das discussões nos Tribunais Superiores, ainda mais dadas as peculiaridades de algumas situações apresentadas por algumas das hipóteses de prisão civil de depositário infiel reguladas na legislação infraconstitucional e mesmo admitidas por força de decisões judiciais, como, por exemplo, a configuração, ou não, de depósito típico, de modo a afastar, a depender do caso e sem necessidade de adentrar outro terreno argumentativo, a possibilidade de decreto prisional.
Assim, o que se pretende enfatizar são os aspectos vinculados à força jurídica interna dos tratados de direitos humanos, até mesmo pelo fato de se cuidar de linha argumentativa cada vez mais privilegiada na discussão doutrinária e jurisprudencial. Nesse contexto, é preciso recordar que, de acordo com a jurisprudência consagrada pelo STF e em que pese alguns votos dissidentes, o Decreto-Lei n. 911/1969 e de modo geral a legislação permissiva da prisão teria sido recepcionado pela nova ordem constitucional e a equiparação do devedor fiduciário ao depositário infiel não afrontaria a Constituição, autorizando a expedição de decreto de prisão civil no caso da alienação fiduciária em garantia, tendo o Supremo Tribunal Federal inclusive cassado decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça que consideravam descabida a prisão. Além disso, aos tratados de direitos humanos era atribuída hierarquia de lei ordinária, a exemplo dos demais tratados internacionais, chegando-se ao ponto de (sempre vencida uma minoria) a argumentar que mesmo o tratado tendo sido aprovado posteriormente pelo Congresso Nacional haveria de prevalecer a lei anterior permissiva da prisão pelo fato de se tratar de lei especial e que não poderia ser revogada pelo tratado, lei geral.
Mas, como já anunciado, em 2008 (vinte anos após a promulgação da CF!!) tal orientação acabou por ser revista, destacando-se, entre os julgados proferidos e que balizaram a alteração do entendimento do STF, o já citado Recursos Extraordinário 466.343/SP. No julgado, especialmente a partir do voto do Ministro Gilmar Mendes (que acabou formando a maioria), foi reconhecida a inconstitucionalidade da prisão civil do devedor e depositário em contratos de alienação fiduciária e similares por violação das exigências da proporcionalidade, mas também, embora refutada a tese da paridade entre a CF e os tratados de direitos humanos, afirmada a tese da hierarquia supralegal de tais tratados, de modo a cederem em face da CF, mas prevalecerem sobre os demais atos normativos internos.
O que chama a atenção, contudo, é que de acordo com os julgados a autorização constitucional para a prisão civil do depositário infiel não foi revogada, deixando, contudo, de ser aplicável, pois os tratados de direitos humanos teriam, em virtude de sua hierarquia supralegal, um efeito paralisante sobre toda a legislação infraconstitucional que disponha ou venha a dispor em sentido oposto, deixando de existir base legal para a prisão nesses casos.
Contudo, por mais que se queira e possa aplaudir a nova orientação do STF, especialmente em se tratado das evidentemente ilegítimas situações da alienação fiduciária e similares, algumas questões permanecem em aberto e desafiam a reflexão crítica.
Uma reflexão possível é a de que o STF acabou, de certo modo, caindo em contradição. Com efeito, ao refutar a tese da paridade entre a CF e os tratados, hipótese na qual poderia, mediante um juízo de ponderação e na esteira da lógica do in favor persona (já comentada na coluna de 10.04.15), ter afastado, pelo menos como regra, a prisão civil do depositário, o STF afirmou a hierarquia supralegal (mas infraconstitucional) dos tratados. Com isso, em que pese o artifício argumentativo de que a CF não teria sido revogada, o que houve foi sim uma derrogação informal do permissivo constitucional expresso. Ora, se os tratados situam-se abaixo da CF e o STF afirmou a competência para declarar sua inconstitucionalidade, não parece que a tese da supralegalidade possa, aplicada coerentemente, afastar por completo e mesmo para toda e qualquer hipótese futura, possibilidade expressamente afirmada pela CF que lhe seque superior. A situação se revela ainda mais complexa e carente de melhor equacionamento quando a comparamos com outros casos, como, por exemplo, o do reconhecimento do duplo grau de jurisdição, ao menos em matéria criminal, mas que aqui não será desenvolvido. De todo modo, reiteramos aqui nosso entendimento no sentido de que a tese da supralegalidade, a despeito do significativo avanço que representou, não soa como a melhor alternativa.
Mas há outros pontos a invocar e que também atraem algum contraponto.
O primeiro – e aqui frisamos que estamos a nos referir apenas à prisão civil de depositário judicial – é a de que resulta no mínimo discutível o conflito direto entre os tratados e a ordem jurídica nacional, pois, como já visto quando das breves notas sobre o direito estrangeiro, a vedação da prisão civil nos tratados não é absoluta. Note-se que os tratados vedam apenas a prisão por dívida, sabendo-se que a prisão por dívida é apenas uma modalidade do gênero prisão civil, de tal sorte que a existência de um conflito entre os tratados e a CF, que permite a prisão do depositário infiel, é resultado de uma interpretação, mas não algo em si evidente e incontroverso. Aliás, é preciso recordar que a própria jurisprudência dos Tribunais Superiores (STJ, TST e mesmo o STF), antes da viragem de 2009-10, vinha sustentando que a obrigação do depositário judicial não decorre de uma relação contratual, como no depósito voluntário, mas sim, do exercício de um encargo público.
Outro ponto a ser resgatado é o de que na hipótese de depositário judicial, verifica-se manifesto conflito entre a liberdade pessoal do depositário judicial infiel (sujeita à restrição pela prisão civil) e a garantia de efetividade do processo, assim como com o próprio Direito deduzido judicialmente, que encontra, na constrição e depósito de determinado bem, muitas vezes a única garantia de que, após longos anos de disputa judicial, seja satisfeita a obrigação reclamada. De outra parte, resulta pelo menos questionável o entendimento de que aqui se trate (consoante já adiantado) de típica prisão por dívida, visto que o que se busca coibir é uma forma de fraude à efetividade do processo, ainda mais ausentes outras formas de execução e, evidentemente, preservado o contraditório e a possibilidade de demonstração da ausência de responsabilidade pelo perecimento do bem depositado.
Embora não seja possível avançar com a análise, cuida-se de discussão a ser aprofundada à luz das diversas variáveis a serem consideradas. Apenas para ilustrar, há que enfrentar o problema de, em sendo completamente banida a prisão civil, ser criado algum tipo de garantia para que as pessoas que ainda buscam solver na esfera judicial os seus conflitos tenham o direito efetivado, pois do contrário, o dever de proteção do estado poderá estar pendendo em favor apenas de um dos interesses em causa. Além disso, o argumento corrente que se trata da contraposição entre meros interesses patrimoniais (da parte credora) e da dignidade (do devedor/depositário) igualmente merece ser melhor debatido. Com efeito, a integral convergência entre o direito de liberdade e a dignidade da pessoa humana faria com que qualquer restrição da liberdade (mesmo de cunho penal) sempre representasse uma violação da dignidade da pessoa humana, quando, em verdade, apenas a prisão perpétua e a execução da restrição da liberdade em condições indignas (este sim, fenômeno comum entre nós) costumam ser consideradas ofensivas à dignidade ou mesmo ao núcleo essencial do direito de liberdade.
Da mesma forma, não é apenas o interesse, nem sempre “meramente” patrimonial do credor que está em causa (basta apontar para o exemplo de dívidas de cunho alimentar ou existencial, não enquadradas nas hipóteses legais que admitem a prisão civil, mas que resultaram em penhora e depósito judicial!), mas, como já referido, a dimensão objetiva da garantia (fundamental) do direito a ter direitos efetivos, que, se não puder ser, em caráter excepcional, assegurada mediante a aplicação da prisão civil, deveria pelo menos encontrar outra forma de satisfação por parte do Estado, questão que desafia maior investimento e se situa na esfera do problema mais amplo do acesso efetivo à Justiça. Se de fato a prisão, ainda mais se não asseguradas condições efetivamente dignas de sua execução (o que, aliás, vale da mesma forma para a prisão penal), não parece a melhor alternativa, o dever estatal de proteção dos direitos fundamentais de quem cumpre as regras do Estado de Direito há de ser tornado efetivo de outro modo. Mas isso já não cabe mais na presente coluna, que já anda longa demais! O que importa, ao fim e ao cabo, é que o caso da prisão civil nos permite acompanhar a evolução da discussão sobre a força jurídica dos tratados de direitos humanos no Brasil e propiciar uma leitura crítica de como foi, nessa hipótese, levado a efeito o controle de convencionalidade.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang; PETTERLE, Selma Rodrigues. “A prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro: evolução e perspectivas em face da recente orientação adotada pelo STF”, in: Revista da Ajuris, n. 116, dezembro 2009, bem como, dos mesmos autores, o verbete sobre o tema inserido na obra Comentários à Constituição do Brasil, Coordenação de J.J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo W. Sarlet e Lenio Luiz Streck, São Paulo: Saraiva, 2014.
Ingo Wolfang Sarlet é professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS e Professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).
Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2015, 8h02
segunda-feira, 13 de abril de 2015
Fabrício Carpinejar
Qualquer criança confessa. Ou pela pressão da verdade ou pela ameaça das informações desencontradas.
A confissão não expressa maturidade. Tem que ser adulto mesmo para arcar com as consequências de seus atos e pagar a pena (que leva em conta a mentira e também o tempo que manteve a mentira).
Diante da quebra de lealdade no relacionamento,
Pois se mostrar arrependido é diferente de cumprir o arrependimento.
O primeiro é um estado provisório, que pode ser da boca para fora, provocado pelo medo de perder alguém. Uma promessa, simplesmente, acalmando os ânimos acirrados.
O segundo é um processo de resiliência, definitivo, para resgatar a igualdade e cicatrizar a confiança daquele que se magoou. É quando transformamos a dívida em responsabilidad
Amadurecimento é corrigir o que foi feito de errado pela dedicação, pelo trabalho, dar o exemplo de integridade em sequência, sem jamais desistir. Com humildade, aguentar a desconfiança e a suspeita de quem feriu. Não desfrutará de meias-palavras,
Por um longo período, você que errou passará a ser o único a confiar em si, e não conhecerá dias leves. Estará em desvantagem nas conversas, precisará prestar satisfações e confirmar horários. A reincidência estará sorrindo à sua frente quando chora e se contorce de culpa. Terá vontade de retornar ao que era, onde mentia, fazia o que queria e não devia nada a ninguém.
Pedir desculpa é fácil e indolor, diria que é um suspiro letrado, mas carregar “eu errei” todo o dia nas costas que é árduo e tarefa para fortes.
Tudo pode ser consertado. Tudo. Desde que se entenda que desculpa é para crianças, e reabilitação é para adultos. Será obrigado a crescer.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS), 29/03/2015 Edição N°18116