domingo, 17 de maio de 2015


Sócio responde por execução trabalhista se bens da empresa não quitarem dívida

17 de maio de 2015, 9h00
Por Valquíria Rocha Batista

A responsabilidade dos sócios na execução trabalhista somente recai a pessoa física, digo “sócio” após esgotados todos os meios de execução da pessoa jurídica. Isso quer dizer que a falta de bens em nome da pessoa jurídica, não pode eximir os sócios quanto à liquidação dos créditos devidos ao trabalhador, que na maioria das vezes é considerado hipossuficiente.

Observamos que a justiça do trabalho vem aplicando a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, instrumento este utilizado no direito civil e do consumidor, para que, em casos de fraude ou abuso da personalidade jurídica, possa o devedor ou consumidor não somente alcançar os bens da empresa, mas também os bens daqueles que a utilizaram de modo fraudulento.

Todavia, vale ressaltar que a desconsideração somente pode ser realizada mediante decisão judicial, e possui previsão legal no artigo 50, do Código Civil, que assim dispõe:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Dessa forma, fica evidente que a falta de bens em nome da pessoa jurídica não impede o direito do trabalhador em receber seus direitos trabalhistas, ficando nítido, que o sócio responde com os seus bens pessoais para liquidação dos débitos trabalhistas.

Importante esclarecer ainda que a Justiça do Trabalho vem aplicando essa regra para liquidação dos processos existentes, responsabilizando os sócios, devido à natureza alimentar. Porém existem requisitos essenciais para aplicação da regra quanto à desconsideração da personalidade jurídica.

Os requisitos para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica são:

a ausência ou a insuficiência de bens da pessoa jurídica;
existência de débitos trabalhistas.
Com relação a ausência ou insuficiência de bens da pessoa jurídica, podemos dizer que o sócio irá responder com os seus bens pessoais desde que a pessoa jurídica não possua bens para honrar os débitos trabalhistas.

No tocante a existência de débitos trabalhistas, trata-se de verbas devidas ao empregado que prestou serviços, e não recebeu valores referente a contraprestação (salário, verbas rescisórias, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).

Com relação aos requisitos acima mencionados, os nossos Tribunais vêm decidindo no sentido de que os sócios são responsáveis quanto aos débitos trabalhistas devidos ao empregado, vejamos:

EMENTA: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE. EVOLUÇÃO DO INSTITUTO. Evoluiu-se a visão que se tinha sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade. Se antes, para sua caracterização, era indispensável a prova da ocorrência da fraude ou do abuso de direito, e só assim restava ela aplicável (Lei 3.708/19), hoje, com o surgimento de novos institutos jurídicos (CTN, LEF, CDC), mais dilargadas passaram a ser as hipóteses de seu cabimento, inclusive com a atribuição do ônus da prova da sua inaplicabilidade transferindo-se da pessoa do credor, para a do devedor. Questões que envolvam créditos de natureza trabalhista, os seguintes fatores dão a nova visão do instituto: o caráter alimentar destes créditos, que por todos os ângulos recebem tratamento diferenciado e de supremacia frente aos demais(1); o princípio da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, seja em sua concepção prevista no art. 10, da Lei 3.708/19, seja também pela regra do art. 28, caput, e seu parágrafo 5o., da Lei 8.078/90(2); o art. 135, do CTN(3); e o princípio da imputação exclusiva do risco da atividade econômica ao empregador(4), todos de aplicação subsidiária às execuções trabalhistas, segundo art. 889/CLT c/c art. 4o, inc. V, parágrafos 2o. e 3o., da Lei 6.830/80.

(TRT-3ª Região – Agravo de Petição 723/00 – Data de Publicação: 19/07/2000 – Relator: Des. Emerson José Alves Lage)

RECURSO DE REVISTA. PROCESSO DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA. PENHORA SOBRE BEM DE SÓCIO. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Partindo da premissa de que os créditos trabalhistas, ante a natureza alimentar de que são revestidos, são privilegiados e devem ser assegurados, a moderna doutrina e a jurisprudência estão excepcionando o princípio da responsabilidade limitada do sócio, com fulcro na teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma que o empregado possa, verificada a insuficiência do patrimônio societário, sujeitar à execução os bens dos sócios individualmente considerados. Incorrida afronta à norma constitucional.

(TST – Recurso de Revista – 02549-2000-012-05-00 – Data de Publicação: 19/02/2002 – Relator: Helena Sobral Albuquerque)

Outro aspecto importante é quanto da retirada do sócio “antigo sócio”, que também responderá pelas obrigações trabalhistas no limite de dois anos após averbação no contrato social de sua saída nos órgãos competentes.

Para não pairar dúvidas transcrevemos alguns julgados:

EMENTA: RESPONSABILIDADE DO SÓCIO RETIRANTE. Demonstrado que integrava a sociedade à época do contrato de trabalho do exequente, o ex-sócio da executada deve responder pelos créditos devidos ao trabalhador. Agravo de petição provido.

(TRT-12ª Região – Agravo de Petição 0034400-24.2002.5.04.0102 – Data de Publicação: 03/08/2011 – Relator: Des. José Felipe Ledur)

EMENTA: RESPONSABILIDADE DE EX-SÓCIOS. Não havendo prova da existência de bens da empresa executada suficientes para o pagamento do débito trabalhista, é cabível a penhora de bem de sócio integrante da sociedade executada, ao tempo de vigência do contrato de trabalho. Diante de situações como essa, o princípio da autonomia da pessoa jurídica, que não é absoluto, relativiza-se e pode ser derrogado, tanto para imputar responsabilidade da sociedade a sócio ou ex-sócio, como no caso sub judice, quanto para conferir à sociedade qualidade humana do sócio. Limitação da responsabilidade que se impõe, frente ao disposto no artigo 1.032 do Código Civil.

(TRT-12ª Região – Agravo de Petição 0034400-24.2002.5.04.0102 – Data de Publicação: 20/10/2010 – Relator: Des. Ione Salin Gonçalves)

Note-se que os nossos Tribunais vêm beneficiando os empregados demitidos que não receberam suas verbas oriundas ao contrato de trabalho. A responsabilidade dos sócios, desde que a pessoa jurídica não apresente patrimônio suficiente para cumprimento de suas obrigações, será sempre subsidiária, isto é, apenas no caso em que o cumprimento da obrigação pelo responsável principal “pessoa jurídica” se torne sem êxito.


Valquíria Rocha Batista Especialista em Direito Trabalhista pela Escola Superior de Advocacia do Estado de São Paulo (2004 -2005); Pós-graduada em Direito Processual do Trabalho pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2003 – 2004); Bacharel em Direito pela Universidade da Cidade de São Paulo (1999 - 2002).

Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2015, 9h00

segunda-feira, 11 de maio de 2015


Amor - O Fim

Tudo acaba um dia. Geralmente, 7 anos depois que começou. Veja por que podemos abandonar (e até odiar) quem amamos um dia.

por Jeanne Callegari

Amor - O Início

Amor - O Meio

Vocês trocaram mensagens bobas pelo celular, dividiram brigadeiros de panela, assistiram TV juntos largados na poltrona e dormiram de conchinha. Foram, enfim, o centro da vida um do outro. Mas agora é cada um para o seu lado. E sempre fica um enorme ponto de interrogação: se era tão bom, por que acabou? Para entender, é preciso voltar no tempo e fazer um passeio pelas savanas africanas, 3 milhões de anos atrás. O homem caçava e protegia a família. A mulher cuidava dos filhotes. Mas, em determinado momento, os casais se separavam. O objetivo da família nuclear - nome técnico que os antropólogos dão ao conjunto de pai, mãe e filhos - era garantir que o homem ficasse por perto tempo suficiente para criar o filhote. Somente isso. Quando o filhote já estava crescidinho e não exigia atenção integral da mãe (que por isso podia voltar a se virar sozinha), o pai estava livre para ir embora e procurar outras fêmeas para procriar.

É daí que vem a chamada crise dos 7 anos. Esse é o período necessário para que uma criança se torne minimamente independente. Um estudo da ONU revelou que o número de separações vai aumentando a partir do 3o ano dos relacionamentos e atinge o pico no 7o ano - quando começa a declinar. Ou seja: o 7o ano realmente é a hora da verdade da relação. No filme O Pecado Mora ao Lado, de 1955, Marilyn Monroe faz o papel de uma mulher que se relaciona com um homem casado. Sabe qual é o nome original do filme, em inglês? The Seven Year Itch, ou "A Coceira dos 7 Anos". Porque é justamente nesse momento que a relação está mais ameaçada - pela comichão de trair. 

As estatísticas variam, mas entre 50 e 60% dos homens têm sexo fora do casamento, contra 45 a 55% das mulheres. O aumento da infidelidade tem a ver com a independência delas, que já são quase metade da força de trabalho e estão diminuindo rapidamente a distância financeira para os homens (nos EUA, 22% das esposas já ganham mais do que os maridos). Mas as raízes disso estão dentro do cérebro. Lembra-se de quando dissemos, na primeira reportagem desta série, que os sistemas cerebrais (luxúria, paixão/amor e ligação) eram independentes? Isso tem um motivo - e não é complicar os relacionamentos. Pelo contrário: surgiu para que nossos ancestrais pudessem buscar estratégias reprodutivas diferentes. A mulher poderia ter um parceiro para protegê-la enquanto gerava os filhos de outro, enquanto o homem poderia espalhar seus genes alegremente por aí, com outras mulheres. A natureza não queria o ideal romântico de amor eterno. Ela queria que tivéssemos um backup reprodutivo, um plano B genético, e nos meteu nessa confusão. 

E as circunstâncias também influem: na hora de decidir trair ou não, a relação do casal, a insatisfação com o parceiro, a oportunidade, tudo isso pesa. 

Mas muita gente tem os genes, os hormônios, todas as oportunidades do mundo, e não trai. Nós não somos robôs biológicos. É possível resistir ao desejo de trair. Mas é muito mais difícil resistir a outro fenômeno, igualmente destrutivo para os relacionamentos: o ciúme. O mais engraçado é que esse monstro de olhos verdes, como chamou Shakespeare, surgiu com o objetivo oposto - preservar a relação monogâmica. Ao primeiro sinal de infidelidade, soa o alarme e a pessoa fica atenta. E, como homens e mulheres desenvolveram estratégias distintas de reprodução, também sentem ciúmes de coisas diferentes. 

Como para o homem é muito dispendioso criar o filho de outro homem, ele sente mais ciúmes da infidelidade sexual. Já para a mulher, não faria tanta diferença se o homem distribuísse apenas esperma para as moças por aí; a grande ameaça é o envolvimento emocional, que coloca em risco a proteção e o cuidado que o homem dá a ela e aos filhos. 

Em 2006, o neurologista japonês Hidehiko Takahashi fez exames de ressonância magnética no cérebro de homens e mulheres que comprovaram essas diferenças. Quando sente ciúmes, o homem usa partes do cérebro ligadas a comportamentos agressivos e sexuais, como a amígdala e o hipotálamo. Já nas mulheres, a área mais ativada durante as crises de ciúme é o sulco temporal posterior superior, associado à percepção de emoções nas outras pessoas.

E a internet está piorando o ciúme. Uma pesquisa feita por psicólogos canadenses com 308 voluntários descobriu que as redes sociais, como Orkut e Facebook, alimentam o ciúme. Sabe por quê? Nada menos do que 74,6% das pessoas adicionam ex-namorados ou rolos como amigos nessas redes - que depois o cônjuge atual vai fuçar atrás de indícios. 

Com ou sem ciúme, a verdade é que boa parte dos relacionamentos está destinada a acabar. E esse momento pode ser muito difícil. "A natureza realmente exagerou no que diz respeito ao fim dos relaciomentos", diz Helen Fisher. Quando uma pessoa é abandonada, sua reação se divide em duas fases. A 1a é o protesto. É quando a a pessoa fica fazendo promessas, doida para reatar. Isso pode ser muito inconveniente. Mas ela não tem culpa. É o corpo agindo. "O cérebro estava acostumado com aquela recompensa [a pessoa amada], então faz você insistir mais e mais para tentar consegui-la de novo", explica a neurologista Suzana Herculano-Houzel. O pânico de ver que não está dando certo pode acionar o sistema de estresse do organismo, que por sua vez estimula novamente a produção de dopamina - ironicamente, fazendo a pessoa se sentir ainda mais apaixonada. 

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Depois vem a 2a fase: aceitação. Depois de ver que o amado não irá mesmo voltar, muita coisa pode passar pela cabeça da pessoa - depressão, confusão, frustração. Até mesmo ódio. Mas por que sentir algo tão ruim por alguém que se amou? É que o ódio e o amor passam pelas mesmas partes do cérebro - a ínsula e o putâmen. "A diferença entre os dois é que, no ódio, existe mais capacidade de planejar as ações. No amor, o julgamento está prejudicado", diz o neurologista Semir Zeki, da University College London. Então o ódio é mais racional que o amor? Não necessariamente. Mas ele tem sua função: é uma defesa do organismo para nos fazer seguir em frente. Em vez de ficarmos remoendo eternamente as dores, passamos a não querer mais ver a pessoa. "Assim como o cérebro associava coisas positivas a uma pessoa, ele pode passar a associar só sentimentos ruins, negativos", diz Suzana Herculano-Houzel. Todos nós sofremos e fazemos sofrer. E, se isso servir de consolo, as celebridades também se separam e sofrem, talvez até mais do que as pessoas comuns. Já ficou famosa a chamada "maldição do Oscar", que atingiria as vencedoras do Oscar de melhor atriz. Nos últimos 12 anos, apenas duas atrizes não se divorciaram após ganhar o Oscar. E logo após o prêmio deste ano, o marido da vencedora, Sandra Bullock, foi pego tendo um caso extraconjugal. 

Tem gente que mata (e se mata) por amor. Mas a maioria das pessoas supera as dores emocionais da separação. Um estudo feito pela Universidade Northwestern mostrou que terminar uma relação não é tão ruim quanto pensamos que vai ser - geralmente leva metade do tempo que achamos. Isso acontece porque a mente tende a voltar a seu estado inicial: cientistas da Universidade de Massachusetts provaram que, após um ano, as pessoas que ganham na loteria apresentam os mesmos níveis de felicidade que as que se tornam tetraplégicas. Ambas voltam aos níveis de felicidade que tinham antes do fato extraordinário. E a melhor coisa para curar um coração partido é começar outro relacionamento. Disso você já sabe. Releia a primeira reportagem desta série, levante a cabeça, sacuda a poeira, vá à luta. Se não há bem que não se acabe, também não há mal que sempre dure. Força na peruca! 

CERCADOS POR DARWIN
O adultério ajudou na evolução da espécie: é um plano B da natureza para que homens e mulheres possam buscar estratégias evolutivas diferentes. 

DE SOLA
Após estudar 144 homens e mulheres recém-separados, a Universidade do Colorado comprovou: quem leva o pé na bunda sofre mais. O curioso é que a pessoa sofre mesmo se já estivesse infeliz na relação - e pode até se reapaixonar por quem a chutou. 

A VIDA CONTINUA
Num estudo da North-Western, que acompanhou a vida amorosa de 70 universitários, a recuperação pós-rompimento levou em média 10 semanas - metade do tempo que os recém-separados esperavam.


Para saber mais 

Por Que Amamos
Helen Fisher, Editora Record, 2004.

A Paixão Perigosa
David M. Buss, Objetiva, 2000.

Splendors and Miseries of the Brain
Semir Zeki, Wiley-Blackwell 2008.

domingo, 10 de maio de 2015

Consultor Jurídico

DIÁRIO DE CLASSE

Kill the lawyers: para que contraditório
se já formei o convencimento mesmo?

9 de maio de 2015, 8h00

Por  e 

No final do mês de fevereiro, logo após o Carnaval, discutimos neste Diário de Classe o caso da juíza de São José do Rio Preto que presidiu duas audiências ao mesmo tempo, utilizando-se do dom da ubiquidade tão praticado no estado de São Paulo. Rememorando: na ocasião, interpelada pela defesa em face de seu comportamento, a juíza consignou ao final de sua decisão:

Após serem colhidos todos os depoimentos proferi a sentença, em meu computador, enquanto o promotor de Justiça e o defensor apresentavam suas alegações finais e para o bom andamento dos trabalhos, fui até a sala de audiências da 1ª Vara Criminal presidir outras audiências, retornando. Não havendo nenhum prejuízo para as partes, nada a ser acrescentado, mormente porque está fundamentada a decisão judicial como determina a Constituição Federal (processo 0025236-84.2014.8.26.0576).

Como já havíamos relatado, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, cuja liminar foi indeferida pelo relator, desembargador Borges Pereira, sob o argumento-padrão de que tal providência “somente é cabível quando a coação é manifesta e detectada de imediato através do exame sumário da inicial” (HC nº 2020697-86.2015.8.26.0000).

Solicitadas informações, a magistrada confirmou que, encerrada a instrução, formou seu convencimento e, imediatamente, redigiu a sentença. Assim, antes do final dos debates orais, “enquanto acusação e defesa ditavam suas alegações finais à escrevente”, saiu da sala para presidir outra audiência em outra vara. Ao retornar, não havendo razão para modificar seu convencimento, manteve a sentença previamente elaborada. Bingo!

Em seu parecer, o representante do Ministério Público, Vilson Baumgärtner, opinou pela denegação da ordem, baseado no brocardo pas des nullités sans grief.

O fato de a magistrada ter-se ausentado eventualmente da audiência durante os debates orais, como aliás por ela mesma admitido em suas informações, não trouxe qualquer prejuízo ao paciente. Aliás, tal proceder é comum no dia a dias das audiências. Atuando por 27 anos como promotor de justiça em diversas comarcas, sempre testemunhei saídas ocasionais das salas de audiências feitas por advogados, promotores e magistrados. E no caso dos autos tal é perfeitamente compreensível na medida em que as alegações foram todas registradas nos autos, podendo a qualquer momento serem apreciadas e reapreciadas, como de praxe. É o que aconteceu aqui.

Ainda bem que o Ministério Público é o fiscal da lei! A sociedade sente-se aliviada!

Sigamos. O habeas corpus foi julgado, no final de abril, pela 16ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP, sob a presidência do desembargador Guilherme de Souza Nucci, um dos doutrinadores mais festejados no campo do direito processual penal e, provavelmente, o jurista que mais vende livros no país. A ordem foi parcialmente concedida (e, ainda, de ofício), porém apenas para reconhecer o direito do paciente de apelar em liberdade. A questão da nulidade — objeto central do writ e que sequer consta na ementa do julgado – foi rejeitada de plano no voto-condutor do acórdão, in verbis:

No que tange ao pedido do combativo impetrante, visando a declaração da nulidade da r. sentença, a ordem não comporta concessão. Mas, é o caso de se conceder, de ofício, a ordem, para que o paciente recorra em liberdade, com imposição de medidas cautelares.

A D. Autoridade apontada como coatora, quando das informações deixou assentado que, após a oitiva das testemunhas e já tendo formado seu convencimento, elaborou a sentença enquanto a acusação e a defesa ditavam sua alegais finais para a escrevente, saindo da sala antes do término dos debates orais, para presidir outra audiência, retornando logo após. E, depois de ler as teses da acusação e da defesa, que não induziram à modificação do convencimento anteriormente formado, manteve a sentença já elaborada (cf. fls. 109).

O fato de a D. Magistrada “a quo” ter se ausentado temporariamente da sala de audiências não impediu que ela apreciasse as teses arguidas pela defesa.

O que ocorreu é que a Magistrada já havia formado seu convencimento e, mesmo após leitura dos memoriais das partes, os argumentos ali constantes não tiveram o condão de alterar seu convencimento, razão pela qual manteve a sentença, que já havia elaborado.

De se ressaltar ainda, que a r. decisão monocrática encontra-se fundamentada a contento.

O combativo impetrante pode até discordar do quanto ali decidido. No entanto, não se verificando qualquer ilegalidade e estando a r. decisão fundamentada a contento, inexiste a nulidade arguida (HC nº 2020697-86.2015.8.26.0000)

Então, quer dizer que a formação do convencimento dispensa o contraditório? Alegações finais são apenas um ornamento? Algo do tipo “já decidi e, portanto, nada mais preciso ouvir”? Ensinam isso nas Faculdades de Direito por aí? A magistratura brasileira compactua com esse procedimento de vilipêndio à profissão de advogado? Que o Promotor de Justiça aceite isso — mesmo sendo o fiscal da lei — pouco impressiona, a julgar o parecer lançado em segundo grau. De há muito o Ministério Público perde espaço no Brasil por estar regredindo à velha figura do “Promotor Público”.

É isso mesmo? Como funciona, afinal, o processo penal que trata do contraditório? A juíza é o próprio Código de Processo Penal? O magistrado (no caso, a magistrada) imagina o que poderá ser alegado pelas partes, formula ficcionalmente as teses e as analisa na sentença previamente elaborada? É isso? Trata-se de uma espécie de Minority Report do processo penal? É possível “adivinhar” o que as alegações finais vão tratar? Ou é possível separar as questões de fato das questões de direito? Tudo isso em busca da “verdade real”?

E o artigo 403 do CPP? Vale ou não vale? Se os debates não tem relevância para fins de formação do convencimento, por que o legislador previu que a acusação e a defesa terão, cada uma, a palavra por vinte minutos, havendo ainda a possibilidade de prorrogação de mais dez minutos? Quando foi que as alegações finais deixaram de ser a peça mais importante do processo, especialmente para a defesa?

Bate-nos uma profunda tristeza. Advogar neste país tem se transformado em um exercício de humilhação cotidiana. Querem mais humilhação do que ficar ditando as alegações para a secretária enquanto o juiz se ausenta e depois volta com a sentença pronta? Let’s kill all the lawyers, afirma Dick, na peça Henrique VI (Parte II), de Shakespeare!

Admitir que a sentença possa ser elaborada antes dos debates e simplesmente ratificada após o conhecimento do resumo das teses sustentadas pelas partes significa reconhecer que a decisão é um ato solipsista, produzida por um sujeito onisciente e onipotente. Ou melhor: significa assumir que a decisão é um ato solitário (e, portanto, autoritário), cujo único limite é determinado pela consciência do juiz. Se isso é verdade, professor Guilherme de Souza Nucci, gostaríamos de saber qual a diferença entre o procedimento adotado pela Magistrada — e referendado pelo TJ-SP — e aquele praticado pelos tribunais da inquisição? E, mais: temos a certeza de que nos livros do professor Nucci está escrito exatamente o contrário do que foi decidido nesse habeas corpus. Não encontramos nos livros do professor — por acaso presidente da Câmara Criminal que julgou o caso — nada que pudesse indicar a dispensabilidade das alegações ou que autorize a juíza a presidir duas audiências ao mesmo ou... bem, o resto já falamos.

Antes que surjam os mais afoitos a justificar o agir da magistrada, afirmando, quem sabe, que, afinal, ela tomou conhecimento das teses esgrimidas pelas partes antes de tornar sua sentença definitiva (e que ela tem boa memória etc.), é importante esclarecer que o resumo das teses não equivale, de maneira nenhuma, aos debates. Do mesmo modo que a tira dos julgamentos não substitui a fundamentação dos acórdãos. Simples assim. Vamos levar o Direito a sério? Ou poderemos dispensar a presença dos advogados (já que o Ministério Público parece não se importar muito com isso).

Os debates são imprescindíveis porque são neles que as teses vêm aplicadas ao caso concreto. Os debates são, precisamente, o momento em que se possibilita que o Direito abandone o plano da generalidade e da abstração. É por isso que à acusação e à defesa são assegurados os debates, e não a mera consignação do resumo de suas teses.

Como se sabe, o argumento de que a magistrada não precisa responder a todos os argumentos das partes é retrógado. Isso já foi superado pelo Supremo Tribunal Federal e, mais recentemente, pelo próprio legislador no novo Código de Processo Civil. A decisão judicial é um ato de responsabilidade política do juiz. É por isso que, para ser democrática, ela deve ser construída intersubjetivamente. Todavia, para tanto, é preciso compreender, na esteira de Marcelo Cattoni, que o processo é um procedimento que se desenvolve em contraditório. É ele — o contraditório — que permite conferir legitimidade ao provimento jurisdicional.

Numa palavra: em uma democracia, o processo — antes de ser obstáculo — é condição de possibilidade. E, tratando-se de processo penal, em que está em jogo o bem fundamental chamado liberdade, não é possível imaginar que um magistrado possa dispensar a argumentação das partes. E a soma é zero. Se a juíza faz duas audiências ao mesmo tempo e, com isso, faz tudo o que fez, ela cometeu uma flagrante inconstitucionalidade. Uma, não. Várias. Se o tribunal, em sede de habeas corpus, convalida o ato da juíza, então ele comete igualmente uma série de inconstitucionalidades, como a violação do devido processo legal, do contraditório, da fundamentação da decisão e da presunção da inocência (afinal, como resultado, sobrou para o réu, que foi condenado!).

Mas o mais duro de tudo isso é a dignidade da profissão de advogado. Imaginemos a cena. Uma audiência em que o trabalho do causídico é reduzido a algo absolutamente dispensável. A questão é saber se existe OAB em terrae brasilis. Para desagravar o advogado. Mas o mais grave, talvez, seja saber quem desagravará o réu? De fato, a República não vai nada bem. 

André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da IMED e advogado.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2015, 8h00

segunda-feira, 4 de maio de 2015

domingo, 3 de maio de 2015

Fabrício Carpinejar
SOFRIMENTO NÃO É CHARME

Em minha escola, havia a Maria do Suspiro. Um nome que funcionava como apelido amoroso.

Ela desmaiava semana sim, semana não.

Produzia um acontecimento importante na turma, com descrições de como foi a queda, os passos para reanimá-la, quem a socorreu.

Destacava-se como uma santa na lista de chamada. Se o tombo ocorria antes do recreio, dominava o assunto das rodas no intervalo. Se ocorria depois, não se falava de outra coisa na saída.

Assim que acordava da pane, Maria Suspiro recebia biscoitos, bolo e chá, recebia cuidado e atenção especial dos professores, recebia uma hora exclusiva na sala da direção, e recebia – pasmem – a chance de sair mais cedo.

Passei a minha infância inteira treinando desmaiar. Mas não consegui.

Eu me sobrecarregava de roupas no verão. Botava uniforme com gola rolê. Só que minha pressão não baixava. Eu apenas ficava com a fama de excêntrico.

Sobrevivia um dia jantando ninharias e renunciando o café. Só que a fome apenas produzia barulhos no estômago.

Sofria de amores platônicos, me distraía e jamais me esgotava emocionalmente.

Gostaria mesmo de desmaiar. Ensaiava tonturas na cama. Mas logo me despertava mais animado ainda.

Idealizava o copo inesperado de água com açúcar e os colegas ao meu redor, perguntando se estava bem e se havia recuperado a consciência.

Ansiava por aquela vertigem de amolecer os ombros e se dobrar como água de cachoeira.

Busquei desmaiar na igreja e somente cochilei. Busquei desmaiar na aula de matemática e somente ronquei. Além de não desfalecer, ganhava advertências e ocorrências que sujavam o histórico escolar. Minha saúde perfeita não ajudava a alma romântica. Ganhei a fama de malandro e espertinho, preguiçoso e inconveniente.

Já Maria do Suspiro tinha uma performance impressionante, inimitável. Não compreendia como ela sempre caía bonito, nunca batia com a cabeça ou se esborrachava no chão. Não se machucava, não criava cicatrizes. Ela virava os olhos, empurrava o rosto para trás, e se escorava em alguém ao seu lado, que amparava imediatamente sua frouxidão. Não a vi caindo uma vez desacompanhada. Tinha um senso infalível de momento. Não descia a escada da respiração sem um corrimão ou desprovida do apoio de um braço generoso.

Seus desmaios eram educados, gentis, sedutores. Nem demorados para gerar pânico. Nem rápidos demais para não provocar dúvidas.

Por muito tempo, fui apaixonado pela minha carência. Forçava adoecer para chamar atenção. Enquanto Maria do Suspiro sonhava com a paz de minha vida, com a normalidade discreta dos colegas.

Ninguém é doente por charme. Entendo talvez um pouco tarde. Hoje respeito mais a fraqueza dela do que o meu egoísmo.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 7/1/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 17666