Delimitação do objeto da ciência do direito, de John Austin
- tradução
http://jus.com.br/artigos/23953
Publicado em 08/2013
Este
trabalho consiste na tradução de parte da principal obra de John Austin,
“Delimitação do objeto da Ciência do Direito”, na qual foram lançadas as bases
do positivismo jurídico moderno.
Palavras-chave: John Austin. Positivismo Jurídico.
Teoria Geral do Direito. Filosofia do Direito.
Sumário: 1. Apresentação. 2. Delimitação do
objeto da Ciência do Direito, de John Austin – Palestra I – Parte Inicial.
Referências.
1
APRESENTAÇÃO
O
inglês John Austin (1790 - 1859), segundo Norberto Bobbio, é “considerado o
fundador do positivismo jurídico propriamente dito”,[1] a mais forte
ou uma das mais fortes correntes da Teoria Geral do Direito. Herbert Lionel
Adolphus Hart, em 1955, reconheceu Austin como o mais influente jurista de
todos os tempos em seu país.[2]
A
obra principal obra de Austin, The province of jurisprudence determined, cujo
título aqui foi traduzido como “Delimitação do Objeto da Ciência do Direito”,
se divide em seis palestras, destinadas originalmente às faculdades de direito.
A
parte inicial da primeira delas, nunca antes vertida para o português, contém
um resumo notavelmente claro da doutrina de Austin, constituindo texto básico,
de grande proveito para profissionais e estudantes da área jurídica.
2
DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA CIÊNCIA DO DIREITO, DE JOHN AUSTIN – PALESTRA I
– PARTE INICIAL
O
propósito da tentativa que se segue de delimitar o objeto da Ciência do
Direito, indicado ou proposto.
O
assunto da Ciência do Direito[3] é o direito[4] positivo:
direito, simples e estritamente assim chamado: ou o direito posto por
superiores políticos para inferiores políticos. Mas o direito positivo (ou
direito, simples e estritamente assim chamado) é muitas vezes confundido com
objetos aos quais ele está relacionado por semelhança, e com objetos aos quais
ele está relacionado pela via da analogia: com objetos os quais também são
também representados, propriamente e impropriamente, pela ampla e vaga
expressão direito. Para afastar as dificuldades nascidas dessa confusão, eu
começo meu planejado Curso[5] delimitando o objeto da Ciência do
Direito, ou distinguindo o assunto da Ciência do Direito daqueles vários
objetos correlatos: tentando definir o tema do qual eu pretendo tratar, antes
que me empenhe em analisar suas numerosas e complicadas partes.
Tomando-a
no mais amplo de seus significados que não são meramente metafóricos, o termo
lei[6] abrange os seguintes objetos: leis impostas por Deus para
suas criaturas humanas, e leis impostas pelo homem para o homem.
O
todo ou uma parte das leis impostas por Deus para os homens, é frequentemente
denominado a lei da natureza, ou lei natural: sendo, na verdade, a única lei
natural da qual é possível falar sem uma metáfora, ou sem uma mistura de
objetos que devem ser amplamente distinguidos. Mas, rejeitando a ambígua expressão
direito natural, eu nomeio aquelas leis ou regras, consideradas coletivamente
ou em massa, a lei Divina, ou a lei de Deus.
As
leis ou regras postas pelos homens para os homens são de duas classes
dominantes ou principais: classes essas que são muitas vezes misturadas, embora
elas difiram extremamente; e que, por essa razão, devem ser separadas com
precisão, e opostas clara e conspicuamente.
Das
leis ou regras postas pelos homens para os homens, algumas são estabelecidas
por superiores políticos, soberanos e subordinados: por pessoas que exercem o
governo supremo e subordinado, em nações independentes ou sociedades políticas
independentes. O agregado das regras assim estabelecidas, ou algum agregado
formando uma porção desse agregado, é o assunto próprio da Ciência do Direito,
geral ou particular. Ao agregado de regras assim estabelecido, ou a algum
agregado formando uma porção desse agregado, o termo direito, usado simples e
estritamente, é aplicado unicamente. Mas, como contradistinto do direito natural,
ou da lei da natureza (significando, por essas expressões, a lei de Deus), o
agregado de regras, estabelecidas por superiores políticos, é frequentemente
denominado direito positivo, ou direito existente por posição[7].
Como contradistinto das regras que eu denomino moralidade positiva, as quais
imediatamente abordarei, o conjunto de regras, estabelecidas por superiores
políticos, pode ser convenientemente designado com o nome de direito positivo.
Para o fim, então, de se obter um nome ao mesmo tempo breve e distintivo, e
conformemente ao uso frequente, eu denomino esse agregado de regras, ou
qualquer porção desse agregado direito positivo: embora regras, que não são
estabelecidas por superiores políticos, sejam também positivas, ou existam por
posição, se é que elas são regras ou leis, no sentido próprio do termo.
Embora
algumas das leis ou regras, que são postas pelos homens para os homens, sejam
estabelecidas por superiores políticos, outras não são estabelecidas por
superiores políticos, ou não são estabelecidas por superiores políticos, nessa
qualidade ou papel.
Das
leis humanas que pertencem a esta segunda classe, algumas são leis,
propriamente assim chamadas. Mas outras são denominadas leis por uma aplicação
imprópria do termo, embora essa aplicação imprópria se baseie em uma estreita
analogia.
Para
aquelas das leis humanas que pertencem a esta segunda classe, como sendo leis,
propriamente chamadas, a linguagem corrente ou estabelecida não tem um nome
coletivo.
Mas
o agregado das leis humanas, que são impropriamente chamadas leis, não é
infrequentemente denotado por uma das seguintes expressões: “regras morais”, a
“lei moral”, “a lei posta ou prescrita pela opinião pública ou geral”. Certas
parcelas do agregado denotado por essas expressões, são geralmente denominados
“a lei ou as regras de honra”, e “a lei posta pela moda”.
Em
oposição às leis que são estabelecidas por Deus aos homens, e às leis que são
estabelecidas por superiores políticos, o agregado das leis humanas, que são
impropriamente denominadas leis, pode ser convenientemente nomeado moralidade
positiva. O nome moralidade as separa do direito positivo: enquanto o epíteto
positiva as aparta da lei de Deus. E, para o fim de evitar confusão, é
necessário ou conveniente que elas devam ser separadas desta última por esse
epíteto distintivo. Porque o nome moralidade (ou moral), quando utilizado sem
qualificações ou desacompanhado, denota indiferentemente qualquer dos seguintes
objetos: a saber, a moralidade positiva como ela é, ou sem levar em conta seus
méritos; e moralidade positiva como ela deveria ser, se estivesse conforme à
lei de Deus, e fosse, portanto, merecedora de aprovação.
Leis
postas por Deus para os homens, leis estabelecidas por superiores políticos e
leis postas pelos homens para os homens (embora não por superiores políticos),
distinguem-se por numerosas e importantes diferenças, mas concordam no
seguinte: que todas elas são postas por seres inteligentes e racionais para
seres inteligentes e racionais. Toda lei de qualquer desses tipos, ou é uma lei
(propriamente dita), ou está relacionada a uma lei (propriamente dita) por uma
estreita e próxima analogia.
Mas
em numerosos casos em que é aplicada impropriamente, as aplicações do termo lei
se baseiam em uma fraca analogia, e são meramente metafóricas ou figurativas.
Tal é o caso quando falamos de leis observadas pelos animais inferiores; das
leis que regulam o crescimento ou a deterioração dos vegetais; de leis que
determinam os movimentos dos corpos ou massas inanimadas. Porque onde não há
inteligência, ou onde ela é muito limitada para levar o nome da razão, e,
portanto, é muito limitada para compreender a intenção de uma lei, aí não há
vontade na qual a lei possa operar, ou a qual o dever possa incitar ou conter.
Justamente por meio desses maus empregos de um nome, flagrantemente como a
metáfora é, tem o campo da Ciência do Direito e da moral sido inundado por
especulação enturvada.
Eu
tenho agora proposto o objetivo da minha tentativa de determinar a província da
Ciência do Direito: distinguir o direito positivo, o assunto apropriado da
Ciência do Direito, dos vários objetos com os quais ele se relaciona por
semelhança, e com os quais está associado, próxima ou remotamente, por uma
forte ou fraca analogia.
O
método da tentativa que se segue de delimitar o objeto da Ciência do Direito.
Tentando
determinar a província de Ciência do Direito, seguirei o seguinte método:
indicarei a essência de uma lei ou regra (tomada na mais ampla significação que
pode ser dada ao termo propriamente).
Tendo
indicado a essência de uma lei ou regra, distinguirei as leis estabelecidas por
superiores políticos, de leis estabelecidas pelos homens para os homens (mas
não por superiores políticos), e daquela lei Divina, que é a provação última do
ser humano.
Tendo
distinguido leis estabelecidas por superiores políticos, das leis (propriamente
assim chamadas), às quais elas estão relacionadas por semelhança, e das leis
(impropriamente assim chamadas), às quais elas são proximamente relacionadas
por uma forte analogia, eu advertirei sobre as aplicações impróprias do termo
lei, que são meramente metafóricas ou figurativas.
Leis ou
regras, propriamente assim chamadas, são uma espécie de comandos.
Toda
lei ou norma (tomada na mais ampla significação que pode ser dada propriamente
ao termo) é um comando. Ou, melhor dizendo, as leis ou regras, propriamente
assim chamadas, são uma espécie de comandos.
Uma
vez que o termo comando compreende o termo lei, o primeiro é o mais simples,
assim como o mais amplo dos dois. Mas, simples como é, admite explicação. E,
considerando que ele é a chave para as ciências do direito e da moral, o seu
significado deve ser analisado com precisão.
Assim,
devo me empenhar, em primeiro lugar, em analisar o significado de “comando”:
uma análise, que, temo, forçará a paciência dos meus ouvintes, mas que eles
suportarão alegremente, ou, ao menos, com resignação, se considerarem a
dificuldade de realizá-la. Os elementos de uma ciência são precisamente as
partes dela que são explicadas menos facilmente. Termos que são os mais amplos,
e, portanto, os mais simples de uma série, não têm expressões equivalentes nas
quais possamos decompô-los concisamente. E quando nós nos empenhamos em
defini-los ou traduzi-los em termos que supomos que são mais bem compreendidos,
somos forçados a desajeitados e tediosos circunlóquios.
O
significado do termo comando.
Se
você expressa ou me intima de uma vontade, de que eu deveria praticar ou me
abster de algum ato, e se você vai me punir com um mal no caso de eu não cumprir
a sua vontade, a expressão ou a intimação de sua vontade é um comando. Um
comando é distinto de outras significações do desejo, não pelo nome no qual o
desejo é anunciado, mas pelo poder e pela intenção da parte que comanda de
infligir um mal ou dor no caso de a vontade ser desconsiderada. Se você não
pode ou não vai me prejudicar no caso de eu não cumprir a sua vontade, a
expressão de sua vontade não é um comando, embora você pronuncie sua vontade em
uma frase imperativa. Se você é capaz de, e disposto a, me prejudicar no caso
de eu não cumprir a sua vontade, a expressão de sua vontade equivale a um
comando, mesmo que você seja levado, por um espírito de cortesia, a proferi-la
na forma de um pedido.
“Preces
erant, sed quibus contra dici non posset”.[8] Tal é a linguagem de
Tácito, quando falando de uma petição feita pela tropa a um filho e tenente[9]
de Vespasiano.
Um
comando, então, é um anúncio do desejo. Mas um comando se distingue de outros
anúncios do desejo por essa peculiaridade: a de que a parte a quem ele se
dirige é sujeita ao mal advinda da outra, no caso de não cumprir o desejo.
O
significado do termo dever.
Estando
sujeito ao mal vindo de você, se eu não cumprir uma vontade que você anuncia,
sou compelido ou obrigado por seu comando, ou estou sob o dever de obedecê-lo.
Se, apesar desse mal em perspectiva, eu não cumprir a vontade que você anuncia,
se diz que desobedeço a seu comando, ou violo o dever que ele impõe.
Os
termos comando e dever são correlativos.
Comando
e dever, são, portanto, termos correlativos: o significado indicado por cada um
estando implicado ou suposto no outro. Ou (mudando a expressão), sempre que há
um dever, um comando foi anunciado; e sempre que um comando é anunciado, um
dever é imposto.
Concisamente
expresso, o significado das expressões correlativas é este. Aquele que vai
infligir um mal no caso de seu desejo ser desconsiderado, profere um comando,
expressando, ou intimando de, seu desejo: Aquele que é sujeito ao mal no caso
de desconsiderar o desejo, é compelido ou obrigado pelo comando.
O
significado do termo sanção.
O
mal que provavelmente incidirá no caso de um comando ser desobedecido, ou (para
usar uma expressão equivalente) no caso de um dever ser inobservado, é
frequentemente chamado de uma sanção, ou um reforço impositivo de obediência[10].
Ou (variando a frase) se diz que o comando ou o dever é sancionado ou imposto
pela possibilidade de incorrer o mal.
Considerado
assim, abstraído a partir do comando e do dever que ele impõe, o mal que
incorre pela desobediência é frequentemente denominado uma punição. Mas como
punições, estritamente assim chamadas, são apenas uma classe de sanções, o
termo é demasiado estrito para expressar o significado de forma adequada.
Para a
existência de um comando, um dever e uma sanção, um motivo violento para o
cumprimento não é necessário.
Observo
que o Dr. Paley, em sua análise do termo obrigação, dá excessiva ênfase à
violência do motivo para o cumprimento.[11] Tanto quanto posso
extrair um significado de sua vaga e inconsistente afirmação, seu significado
parece ser este: que, a menos que o motivo para o seu cumprimento seja violento
ou intenso, a expressão ou a intimação de uma vontade não é um comando, nem a
parte a quem é dirigida tem o dever de considerá-la.
Se
ele quer dizer, por um motivo violento, um motivo que funcione com certeza, sua
proposição é manifestamente falsa. Quanto maior o mal a incorrer no caso de a
vontade ser ignorada, e quanto maior a chance de que incorra por conta desse
mesmo evento, maior, sem dúvida, é a chance que o desejo não será
desconsiderado. Mas nenhum motivo concebível irá certamente determinar o
cumprimento, ou nenhum motivo concebível irá produzir obediência inevitável. Se
a proposição de Paley é verdadeira, no sentido que agora lhe atribuí, comandos
e deveres são simplesmente impossíveis. Ou, reduzindo sua proposição ao absurdo
por uma consequência manifestamente falsa, os comandos e deveres são possíveis,
mas nunca são inobservados ou desobedecidos.
Se
ele quer dizer, por um motivo violento, um mal que inspira medo, seu
significado é simplesmente este: que a parte compelida por um comando é
compelida pela perspectiva de um mal. Porque o que não é temido não é
apreendido como um mal, ou (mudando a forma da expressão) não é um mal em
perspectiva.
A
verdade é que a magnitude do mal eventual, e a magnitude da possibilidade de
que ele incorra, são estranhas ao assunto em questão. Quanto maior o mal
eventual, e maior a possibilidade de que ele incorra, maior é a eficácia do
comando, e maior é a força da obrigação. Ou (substituindo expressões exatamente
equivalentes), maior é a chance de que o comando seja obedecido, e que o dever
não será inobservado. Mas onde há a menor das chances de que incorra o menor
dos males, a expressão de uma vontade equivale a um comando, e, portanto, impõe
um dever. A sanção, se se quiser, é fraca ou insuficiente; mas ainda assim
existe uma sanção, e, portanto, um dever e um comando.
Recompensas
não são sanções.
Por
alguns célebres autores (por Locke, Bentham, e, penso eu, Paley), o termo
sanção, ou reforço impositivo de obediência, é aplicado ao bem condicional,
assim como ao mal condicional: à recompensa, assim como à punição. Mas, com
toda a minha habitual veneração aos nomes de Locke e Bentham, eu acho que essa
dilatação do termo está repleta de confusão e perplexidade.
Recompensas
são indiscutivelmente motivos para cumprir os desejos dos outros. Mas falar de
comandos e deveres como sancionados ou impostos por recompensas, ou falar de
recompensas no sentido de obrigar ou constranger à obediência, é certamente um
largo desvio do significado estabelecido dos termos.
Se
você expressou o desejo de que eu deveria prestar um serviço, e se ofereceu uma
recompensa como motivação ou incentivo para prestá-lo, dificilmente se poderia
dizer que você comandou o serviço, nem estaria eu, em linguagem comum, obrigado
a prestá-lo. Em linguagem comum, você iria me prometer uma recompensa, o
condicionando à minha prestação do serviço, enquanto eu poderia ser incitado ou
persuadido a prestá-lo pela esperança de obter a recompensa.
Novamente:
se uma lei oferece uma recompensa como um incentivo para praticar algum ato, um
eventual direito é conferido, e não uma obrigação imposta, àquele que deve agir
em conformidade: a parte imperativa da lei é endereçada ou direcionada à parte
a quem ela requer que dê a recompensa.
Em
suma, estou determinado ou inclinado a cumprir a vontade de outrem, pelo medo
de desvantagem ou mal. Também estou determinado ou inclinado a cumprir a
vontade do outro, pela esperança de vantagem ou bem. Mas é somente pela
possibilidade de incorrer mal, que eu sou compelido ou obrigado ao cumprimento.
É só pelo mal condicional, que os deveres são sancionados ou impostos. É o
poder e o propósito de infligir mal eventual, e não o poder e o propósito de
transmitir bem eventual, o que dá à expressão de um desejo o nome de um
comando.
Se
colocamos recompensa dentro do sentido do termo sanção, devemos nos engajar em
uma cansativa luta contra a corrente da fala comum; e muitas vezes deslizaremos
inconscientemente, apesar de nossos esforços em contrário, para o sentido
estrito e costumeiro.
O
significado do termo comando, brevemente reformulado.
Parece,
então, do que foi postulado, que as idéias ou noções compreendidas pelo termo
comando são as seguintes: 1) uma vontade ou desejo concebido por um ser
racional, de que um outro ser racional deve fazer algo ou se abster de algo; 2)
um mal a decorrer do primeiro, e a incorrer sobre o segundo, no caso de este
não cumprir a vontade; 3) uma expressão ou intimação do desejo por palavras ou
outros sinais.
A
inseparável conexão dos três termos, comando, dever e sanção.
Também
parece, do que foi postulado, que, comando, dever e sanção são termos
inseparavelmente ligados: que cada um adota as mesmas idéias que os outros,
embora cada um denote essas idéias em uma peculiar ordem ou série.
“Uma
vontade concebida por um, e expressa ou intimada a outro, com um mal a ser
infligido e incorrido no caso de a vontade ser desconsiderada”, é anunciada,
direta e indiretamente por cada uma das três expressões. Cada uma nomeia a
mesma noção complexa.
A forma
dessa conexão.
Mas
quando eu estou falando diretamente da expressão ou intimação da vontade, eu
emprego o termo comando: a expressão ou intimação da vontade é apresentada com
destaque para o meu ouvinte; enquanto o mal a incorrer, bem como a
possibilidade de que incorra, são mantidos (se assim posso me exprimir) no
plano de fundo de minha tela.
Quando
eu estou falando diretamente da possibilidade de incorrer o mal, ou (mudando a
expressão) da sujeição ou submissão ao mal, eu emprego o termo dever ou o termo
obrigação: a sujeição ou submissão ao mal é colocada em primeiro lugar, e o
resto da noção complexa é comunicado implicitamente.
Quando
estou falando imediatamente do mal em si, eu emprego o termo sanção, ou um
termo com sentido equivalente: o mal a incorrer é anunciado diretamente,
enquanto a submissão a esse mal, bem como a expressão ou intimação da vontade,
são indicados indiretamente ou obliquamente.
Para
aqueles que estão familiarizados com a linguagem dos lógicos (linguagem
incomparável pela concisão, distinção e precisão), eu posso expressar o meu
significado precisamente, em um sopro: cada um dos três termos significa a
mesma noção, mas cada um denota uma parte diferente dessa noção e conota o
resíduo.
Distinção
entre leis ou regras e comandos que são ocasionais ou particulares.
Os
comandos são de duas espécies. Alguns são leis ou regras. Os outros não
adquiriram um nome apropriado, nem a língua proporciona uma expressão que possa
designá-los brevemente e com precisão. Devo, portanto, denotá-los, tanto como
posso, pelo ambíguo e inexpressivo nome “comandos ocasionais[12] ou
particulares.”
Como
o termo leis ou regras é frequentemente aplicado a comandos ocasionais ou
particulares, torna-se dificilmente possível traçar uma linha de separação que
corresponderá, em todos os aspectos, às formas estabelecidas da linguagem. Mas
a distinção entre leis e comandos específicos, pode, penso eu, ser indicada da
maneira que se segue.
Por
todo comando, a parte a quem ele é dirigido é obrigada a fazer algo ou a se
abster de algo.
Quando
obriga genericamente a atos ou abstenções de uma classe, um comando é uma lei
ou regra. Mas quando obriga a um ato ou uma abstenção específica, ou a atos ou
abstenções que ele determina especificamente ou individualmente, um comando é
ocasional ou particular. Em outras palavras, uma classe ou um tipo de atos é
estabelecido por uma lei ou regra, e atos dessa classe ou tipo são prescritos
ou proibidos genericamente. Mas quando um comando é ocasional ou particular, o
ato ou atos, que o comando impõe ou proíbe, são fixados ou determinados por sua
natureza específica ou individual, bem como pela classe ou tipo ao qual
pertencem.
A
afirmação que tenho agora dada em expressões abstratas, me empenharei a
ilustrar com exemplos apropriados.
Se
você ordena seu criado a cumprir uma dada missão, ou a não sair de sua casa em
uma dada noite, ou a levantar a uma certa hora em uma manhã, ou a levantar a
essa hora durante a próxima semana ou mês, o comando é ocasional ou particular.
Porque o ato ou atos impostos ou proibidos, são especificamente determinados ou
fixados.
Mas
se você comandá-lo simplesmente levantar àquela hora, ou levantar àquela hora
sempre, ou levantar àquela até novas ordens, pode-se dizer, com propriedade,
que você estabeleceu uma regra para a orientação da conduta de seu criado.
Porque nenhum ato específico é fixado pelo comando, mas o comando o obriga genericamente
a praticar atos de uma determinada classe.
Se
um regimento é ordenado a atacar ou defender um lugar, ou a reprimir um motim,
ou a marchar de seus atuais quartéis para outro ponto, o comando é ocasional ou
particular. Mas uma ordem para exercitar-se diariamente até que novas ordens
sejam dadas, seria chamada de uma ordem genérica, e poderia ser chamada de uma
regra.
Se o
Parlamento proibiu simplesmente a exportação de milho, seja por um dado período
ou indefinidamente, isso estabeleceria uma lei ou regra: uma espécie ou tipo de
atos são delimitados pelo comando, e atos dessa espécie ou tipo são
genericamente proibidos. Mas uma ordem emitida pelo Parlamento para fazer
frente a uma escassez iminente, e embargando a exportação do milho então
embarcado e em porto, não seria uma lei ou regra, embora emitida pela
legislatura soberana. A ordem relativa exclusivamente a uma quantidade
especificada de milho, os atos negativos ou abstenções, impostos pelo comando,
seriam especificamente ou individualmente determinados pela natureza
determinada de seu objeto.
Devido
a ser emitida por uma legislatura soberana, e devido a usar a forma de uma lei,
a ordem que agora imaginei provavelmente seria chamada de lei. E daí a
dificuldade de se traçar uma fronteira nítida entre leis e comandos ocasionais.
Novamente:
um ato que não é um delito, de acordo com a legislação em vigor, leva o
soberano ao desagrado e, embora os autores do ato sejam legalmente inocentes ou
não delituosos, o soberano determina que eles devem ser punidos. Por impor uma
punição específica, nesse caso específico, e por não impor genericamente atos
ou abstenções de uma classe, a ordem proferida pelo soberano não é uma lei ou
regra.
Se
tal ordem seria chamada de lei, parece depender de circunstâncias que são
puramente irrelevantes: irrelevantes, quero dizer, no que diz respeito ao
presente propósito, embora relevantes no que diz respeito a outros. Se for
feita por uma assembléia soberana, deliberadamente, e com as formas de
legislação, ela provavelmente seria chamada de lei. Se proferida por um monarca
absoluto, sem deliberação ou cerimônia, ela dificilmente seria confundida com
atos de legislação, e seria qualificada como um comando de arbítrio. No
entanto, em nenhum dessas hipóteses, a sua natureza seria a mesma. Ela não
seria uma lei ou regra, mas um comando ocasional ou particular do Soberano ou
do Grupo Soberano.[13]
Para
concluir com um exemplo que melhor ilustra a distinção, e que mostra a
importância da distinção mais conspicuamente, as ordens judiciais são comumente
ocasionais ou especiais, embora os comandos, os quais elas tencionam impor,
sejam comumente leis ou regras.
Por
exemplo, o legislador comanda que os ladrões devem ser enforcados. Sendo dados
um roubo específico e um ladrão especificado, o juiz ordena que o ladrão deve
ser enforcado, de acordo com o comando do legislador.
Ocorre
que o legislador determina uma classe ou tipo de atos; proíbe atos dessa
classe, genérica e indefinidamente; e comanda, com semelhante generalidade, que
a punição deve se seguir à transgressão. O comando do legislador é, portanto,
uma lei ou regra. Mas a ordem do juiz é ocasional ou particular. Porque ele
ordena uma punição específica, como consequência de um delito específico.
De
acordo com a linha de separação que tentei traçar, uma lei e um comando
particular são distintos desse modo: atos ou abstenções de uma classe, são
impostos genericamente pela primeira; atos determinados especificamente, são
impostos ou proibidos pelo segundo.
Uma
diferente linha de separação foi desenhada por Blackstone e outros. Segundo
eles, uma lei e um comando especial são distinguidos da seguinte maneira: a lei
obriga genericamente os membros da determinada comunidade, ou uma lei obriga
genericamente os indivíduos de uma determinada classe, enquanto um comando
especial obriga a uma única pessoa, ou pessoas a quem ele determinar
individualmente.
Um
momento de reflexão basta para mostrar que leis e comandos particulares não
devem ser distinguidos assim.
Primeiro,
comandos que obrigam geralmente os membros de dada comunidade, ou comandos que
obrigam geralmente pessoas de determinadas classes, nem sempre são leis ou
regras.
Por
exemplo, uma ordem de luto geral, ou uma ordem de jejum geral, é proferida por
um soberano, ou por uma assembleia soberana, na ocasião de uma calamidade
pública. Embora dirigida à comunidade em geral, a ordem dificilmente poderia
ser uma regra, na acepção comum do termo. Pois, embora obrigue genericamente os
membros de toda a comunidade, obriga a atos que determina
especificamente, ao invés de obrigar genericamente a atos ou abstenções de uma
classe. Se o soberano ordena que a roupa de seus súditos deve ser preta, seu
comando equivale a uma lei. Mas se ele lhes ordena que usem roupa preta em uma
ocasião específica, o seu comando é meramente particular.
E,
segundo, um comando que obriga exclusivamente pessoas individualmente
determinadas, pode equivaler, não obstante, a uma lei ou regra. Por exemplo, um
pai pode definir uma regra para o seu filho ou filhos; um tutor, para o seu
tutelado: um senhor, para seu escravo ou servo. E algumas das leis de Deus eram
obrigatórias para o primeiro homem, como são obrigatórias atualmente para os
milhões por ele gerados.
A
maioria, na verdade, das leis que são estabelecidas por superiores políticos,
ou a maioria das leis que são simples e estritamente assim chamadas, obrigam
genericamente os membros da comunidade política, ou obrigam genericamente as
pessoas de uma classe. Criar um sistema de direitos para cada indivíduo da
comunidade seria simplesmente impossível, e, se fosse possível, seria
inteiramente inútil. A maioria das leis estabelecidas por superiores políticos,
são, portanto, dotadas de generalidade de duas maneiras: ao impor ou proibir
genericamente atos de determinada espécies ou tipo; e ao obrigar toda a
comunidade, ou, pelo menos, classes inteiras de seus membros.
Mas
se supusermos que o Parlamento crie e conceda um mandato, obrigando o
mandatário a prestar serviços especificamente discriminados, imaginaremos uma
lei estabelecida por superiores políticos, mas obrigando exclusivamente uma
pessoa específica ou determinada.
Leis
estabelecidas por superiores políticos, e obrigando exclusivamente pessoas
específicas ou determinadas, são denominadas, na linguagem dos juristas
romanos, privilegia. Esse é, na verdade, um nome que dificilmente as designaria
com clareza, porque, como a maioria dos principais termos nos atuais sistemas
jurídicos, não é o nome de uma determinada classe de objetos, mas de um
amontoado de objetos heterogêneos.[14]
A
definição de uma lei ou regra, propriamente dita.
Depreende-se
das premissas anteriores que uma lei, propriamente dita, pode ser definida da
seguinte que se segue.
Uma
lei é um comando que obriga uma pessoa ou pessoas.
Mas,
contraposta ou em oposição a um comando determinado ou ocasional, a lei é um
comando que obriga pessoa ou pessoas, e obriga com generalidade a atos ou
abstenções de uma dada classe.
Em
linguagem mais popular, mas menos distinta e precisa, a lei é um comando que
obriga uma pessoa ou pessoas a um determinado curso de conduta.
REFERÊNCIAS
AUSTIN,
John. The province of jurisprudence determined. 2. ed. Londres: John
Murray, 1906. Disponível em: <http://www.archive.org/stream/austinianthe
oryo00austuoft#page/n5/mode/2u>. Acesso em: 30 jan. 2013.
BOBBIO,
Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. 1. ed. São
Paulo: Ícone, 1995.
HART,
Herbert L. A. Introdução a The province of jurisprudence determined, de John
Austin. 1. ed. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1954, p. VII-XXI, apud
ENCICLOPÉDIA Stanford de filosofia. Palo Alto: Universidade de Stanford, 2010,
tradução nossa. Disponível
em: <http://plato.stanford.edu/entries/austin-john/>. Acesso em: 29
jan. 2013.
PALEY,
William. The Works of William Paley. 1. ed. Edinburgh: Edinburgh University
Press, 1828.
TACITUS,
C. Cornelius. History. 1. ed. Hartford: O. D. Cook & Co., 1826.
Notas
[1] BOBBIO, Norberto. O positivismo
jurídico: lições de filosofia do direito. 1. ed. São Paulo: Ícone, 1995, p. 47.
[2] HART, Herbert L. A. Introdução a
The province of jurisprudence determined, de John Austin. 1. ed. Londres:
Weidenfeld & Nicolson, 1954, p. VII-XXI, apud ENCICLOPÉDIA Stanford de
filosofia. Palo Alto: Universidade de Stanford, 2010, tradução nossa.
Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/austin-john/>.
Acesso em: 29 jan. 2013.
[3] No original, Jurisprudence (N. do
T.).
[4] Originalmente, law, termo que
significa, ao mesmo tempo, “direito” e “lei” (N. do T.).
[5] Intitulado “Palestras de Ciência do
Direito”, ou “Filosofia do Direito Positivo”, do qual “Delimitação do Objeto da
Ciência do Direito” (The Province of Jurisprudence Determined) constitui a
primeira parte (N. do T.).
[6] Na fonte, law (N. do T.).
[7] Daí a expressão “direito positivo”,
alheia ao positivismo de Comte (N. do T.).
[8] “Pedidos eram, mas tais que
contradizê-los não era possível”. O trecho está em Histórias, Livro IV, XLVI
(N. do T.).
[9] Domiciano (N. do T.).
[10] Originalmente, “enforcement of
obedience” (N. do T.).
[11] William Paley (1743-1805), célebre
filósofo e teólogo britânico, acreditava que “Para uma obrigação ser perfeita
ou imperfeita, o que determina é apenas se a violência pode ou não pode ser
empregada para impô-la, e nada mais o determina” (Filosofia Moral e Política,
Livro II, Capítulo X, N. do T.).
[12] Ou seja, que dizem respeito a uma
ocasião específica (N. do T.).
[13] No original, “sovereign One or
Number” (N. do T.).
[14] Quando um privilegium meramente
impõe um dever, exclusivamente obriga uma determinada pessoa ou pessoas. Mas
quando um privilegium confere um direito, e o direito conferido vale contra
todos, a lei é um privilegium vista de um certo aspecto, mas também é uma lei
geral, vista de outro aspecto. Em relação ao direito conferido, a lei
exclusivamente considera uma pessoa determinada e, portanto, é privilegium. Em
relação ao dever imposto, correspondente ao direito conferido, a lei considera
genericamente os membros de toda a comunidade. Isto explicarei particularmente,
num ponto subsequente do meu Curso, ao abordar a natureza peculiar do assim
chamado privilegia, ou das assim chamadas leis privadas.
Abstract: This work consists of the
translation of a part of the main work of John Austin, “The Province of
Jurisprudence Determined” in which were laid the foundations of modern legal
positivism.
Keywords: John Austin. Legal Positivism.
General Theory of Law. Philosophy of Law.
Autor
Carlos Romeu
Salles CorrêaBacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2008), tendo
iniciado o curso na Universidade Federal de Alagoas e passado também pela
Universidade Federal da Bahia, por meio do Programa de Mobilidade Acadêmica.
Especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da
Bahia. Mestrando em Direito do Trabalho na Universidade Federal da Bahia. Atua
na assessoria de Gabinete de Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da
5ª Região. Tem experiência na área de Direito do Trabalho e Direito Processual
do Trabalho.
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