sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A vida real é melhor
As nossas relações não precisam se parecer com o que se vê nas telas

IVAN MARTINS

No último fim de semana, sem que eu tivesse planejado, assisti a dois filmes românticos. Estava na sala, liguei a televisão e apareceu um deles. Fiquei e vi. No dia seguinte, em outro horário, deparei com o segundo. Também fui fisgado. Ambos eram bonitos, sensíveis, envolventes. Ambos capazes de me deixar melancólico e intrigado. Pensei: que diabo nos acomete quando vemos esse tipo de filme? As pessoas se beijam, as pessoas se apaixonam, as pessoas se deixam e choram – e conosco, vendo aquilo tudo, acontece o quê?

Não sei. Ao menos não exatamente.

Descobri o sentimento sem nome provocado pelos filmes aos 11 anos de idade, vendo Melody – quando brota o amor. A história dos adolescentes que fogem da escola para se casar me pôs em transe. Saí do cinema apaixonado pela personagem – a Melody do título – e, pela primeira vez na vida, tomado por uma sensação de melancolia do qual não desejava me livrar. Talvez tenha sido minha primeira emoção romântica inteiramente consciente – a mesma que, passadas várias décadas, e em circunstâncias diferentes, ainda me aflige no escuro do cinema ou na frente da televisão. Sem que eu saiba o que ela significa.

Os dois filmes que eu vi no fim de semana nada têm de especial. Ao entardecer conta a história de um amor que se consuma numa noite e se estende na forma de lembrança pela vida inteira. Em busca do amor narra o encontro entre duas pessoas de mundos diferentes, que parecem destinadas uma a outra desde o primeiro momento. São dois mitos poderosos - o amor inesperado e o amor eterno – cujos efeitos transbordam da televisão, encharcam os nossos pés e, de forma insidiosa, entram na nossa vida.   

Eu me pergunto, essencialmente, se esses filmes adocicados ou arrebatadores descrevem as nossas verdadeiras emoções, (e por isso nos afetam tão profundamente), ou se eles nos contam, de maneira idealizada, como a nossa vida romântica deveria ser (e na vida real nunca é!) e por isso nos fazem sentir tão exaltados e tristes. Enquanto o garoto de 11 anos ainda reúne coragem para simplesmente falar com a menina de quem ele gosta, o filme diz a ele que é hora de amar, fugir e casar contra a vontade dos adultos. Não é à toa que a vida dele parece mesquinha e melancólica. Menor.  

O psiquiatra Jurandir Freire Costa escreveu, num livro maravilhoso e difícil chamado Sem fraude e sem favor – estudos sobre o amor romântico, que “o amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida”. Contra a ideia de um amor natural, eterno e universal, ele propõe um amor cultural. “O amor”, diz ele, “foi inventado como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o fabrico do pão, a arte erótica chinesa, o computador, o cuidado com o próximo, as heresias, a democracia, o nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo”.  

Seguindo a lógica do Jurandir, o que os filmes fazem é recontar, diante da sua audiência emocionada, as lendas correntes do amor romântico. Eles realimentam um mito que fomos ensinados a admirar e a desejar para as nossas próprias vidas, com consequências potencialmente destrutivas. Se o amor é aquele arrebatamento tempestuoso de um filme, ou o sentimento pétreo e permanente do outro, que nome dar (e, sobretudo, que valor dar) à sensação fugidia e cheia de dúvidas que me liga à Fulana ou ao Sicrano? O que eu sinto seria amor de verdade ou não passa de mera cópia pirata? Nos filmes, afinal, o amor é grandioso, pleno de certeza, permanente...

Este parece ser um dos casos em que a arte não nos prepara para lidar com a vida. Para entender o amor de verdade, na forma possível que ele toma na existência de cada um de nós, talvez seja preciso se livrar da grandiosidade. O romantismo pode ser uma prisão cheia de filmes e músicas, no interior da qual as pessoas adoecem –ou envelhecem - esperando por algo que não existe. Fujamos disso.

A vida real é melhor. Nela, apesar da precariedade da incerteza, tudo pode ser refeito, recomeçado. Os personagens dos filmes são prisioneiros de roteiros que não constrangem a nossa vida de verdade. Nós podemos nos mudar para o Rio, pintar os cabelos de vermelho, escrever um blog ou passear na chuva, com ou sem cachorro. Ao nosso redor, milhões de pessoas partilham as mesmas calçadas e os mesmos desejos por afeto, sexo, companheirismo. Tem aí material suficiente para bilhões de relações humanas. Eles podem não ser tão perfeitos quanto nos filmes. Podem não durar tanto e nem ter tantas estrelas no céu. Talvez nem sejam amor. Mas elas existem e isso faz toda a diferença.

Para encerrar, “Amor barato”, do Chico Buarque, que diz, melhor e mais claro, o que eu tentei dizer.   
Os parceiros dos exibidos
Por trás de quem pira nas redes sociais sempre tem alguém se sentindo idiota

IVAN MARTINS



Tem gente que pira nas redes sociais. Você abre o Instagram e a pessoa está lá, se exibindo da forma mais escandalosa. Ah, como eu sou linda. Ah, como eu sou foda. Ah, meu deus, como eu sou feliz. No Facebook, ele publica fotos que deveriam ter sido deletadas, revela detalhes sobre a sua vida privada, se gaba de tantas coisas, e com tanta frequência, que faz a gente pensar que, na verdade, anda profundamente deprimido.
Não estou falando – vejam bem – de quem perde a mão de vez em quando e exagera na exposição de si mesmo. Isso acontece. A esta altura da sociedade do espetáculo, o mau gosto eventual tornou-se quase obrigatório. O problema com quem pira nas redes é que age sem pudor sistematicamente. É como o sujeito que bebeu demais toda vez que você o encontra. Ele é bêbado, né?
Com isso tudo estamos acostumados, porém. Os excessos nas redes sociais não são novidade. O que me fez escrever esta coluna foi a súbita percepção de que os superexibidos têm parceiros.
Cada vez que eles fazem um espetáculo de si mesmo sobra para quem está ao lado. O sujeito sobe uma foto da baladas às 3 da manhã e a namorada leva uma porrada quando abre o telefone, seis horas depois. Ou ela posta um comentário indiscreto logo cedo e ele passa o dia ouvindo ironias dos “amigos” comuns.
Parece inevitável que onde existe alguém obcecado em exibir-se haverá outro alguém juntando os caquinhos emocionais. Ninguém passa imune a esse tipo de streap tease.
Para quem não frequenta as redes sociais, esta conversa talvez pareça mi-mi-mi, mas juro que não é. O balanço entre público e privado tornou-se uma questão real para os casais. O que se mostra e o que não se mostra? Qual é o nosso combinado? Quando uma das partes tem compulsão de aparecer, fica mais difícil. Aí cabe a um conviver passivamente com a consequência dos excessos do outro – o que frequentemente é intolerável.
Uma pesquisa da Universidade do Missouri divulgada na internet sugere que quanto mais os casais usam o Facebook mais eles brigam. Em geral por causa de ciúme. Eu entendo perfeitamente.
Pouca gente lida bem com a documentação da vida dos parceiros. Antes, quando entravam num relacionamento sério, as pessoas tiravam da estante as fotos dos ex-namorados e colocavam a troca de email com eles numa pastinha escondida no computador. Agora existem as redes. Nelas estão as fotos dos três últimos namoros, assim como promessas de amor e os grunhidos sensuais trocados em cada um deles. Para todo mundo ver e compartilhar. 
Se isso não fosse constrangimento suficiente, ainda vem uma torrente diária de novas imagens, novos amigos, renovados e ardorosos elogios – “que gato”, “que linda”, “cada vez melhor”... Haja desapego.
Relacionamentos, da forma como eu vejo, são construções para dois. Eles têm um forte componente social – dependem de amigos, família, colegas - mas, fundamentalmente, triunfam ou fracassam na intimidade. Quando uma das partes resolve viver em público, a relação fica enormemente vulnerável. Emoções que caberiam melhor na mesa da cozinha ou no banco da frente do carro acabam sendo exibidas diante de todos, como acontece com os artistas. Poucos aguentam esse tipo de exposição.
Ao final, quem procura atrair demais a aprovação de estranhos provoca insegurança no parceiro. Sugere que não bastam a atenção nem o aconchego que ele oferece. Se tudo tem de ser dividido com todos, o que há de especial e único nesta relação aqui? É algo a se pensar. E algo a se proteger. O ruído de aprovação das redes sociais, por mais intenso que seja, não preenche a nossa solidão. Ela se resolve apenas com relações reais. Amigos reais. Família real. Amor de verdade, com carne, ossos e defeitos, protegido por uma grossa camada de intimidade e de silêncio.