domingo, 21 de outubro de 2012

Sucesso requer trabalho, mas não acontece sem o acaso

Entrevista concedida pelo físico e escritor Leonard Mlodinow, ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.
Você já teve a sensação de estar sendo enganado pela sua própria mente? De ter certeza de lembrar de uma situação e depois descobrir que ela não aconteceu? A horrível descoberta de que você não tem controle sobre as suas escolhas mais pessoais, que muitas vezes vão contra o que você mais queria? Então bem-vindo à espécie humana. Quase tudo que consideramos certezas sobre nós mesmos e nossa sociedade é falso. O autoengano, que não é necessariamente mentir para nós mesmos, mas simplesmente ter ideias que não combinam muito com a realidade, o autoengano é inevitável. O físico e escritor Leonard Mlodinow lançou recentemente o livro Subliminar: Como o inconsciente governa nosso comportamento, onde ele reúne as principais descobertas de um novo campo da psicologia e da neurociência que estuda o inconsciente. Mlodinow tem uma carreira curiosa. Da Física ele passou para Hollywood, onde escreveu episódios das séries MacGyver e Star Trek, e ficou famoso com o livro O Andar do Bêbado, sobre a influência do acaso nas nossas vidas. De passagem por Nova York, Mlodinow encontrou o Milênio no seu bar preferido do bairro do Brooklin, onde morava quando aconteceram os ataques de 11 de Setembro, que o levaram a fugir para a Califórnia.
Jorge Pontual — Estamos aqui, no bar Five Spot. Este lugar lhe traz lembranças da época em que você morava no Brooklyn?
Leonard Mlodinow —
Traz. Eu morei no Brooklyn durante alguns anos, aqui perto, e eu costumava vir aqui para escrever e ler, além de beber cerveja.
Jorge Pontual — Foi onde teve inspiração para seus primeiros livros?
Leonard Mlodinow —
Foi.
Jorge Pontual — Você tem uma carreira interessante, porque começou como físico, e depois... O que aconteceu? Você se tornou roteirista.
Leonard Mlodinow —
Eu já fiz várias coisas. Na verdade, eu sempre gostei de escrever, desde os 8 ou 10 anos. Eu sempre achei que um dia tentaria escrever, e, em dado momento, eu decidi tornar a física um hobby e tentar escrever como profissão. Mas acabei escrevendo filmes, em vez de livros. Eu decidi partir para isso, pois adoro filmes, e acabei tendo bastante sucesso nessa área por 7 ou 8 anos, em seriado como Star Trek e MacGyver.
Jorge Pontual — É, eu disse a uns amigos que iria entrevistar Leonard Mlodinow. Eu disse que você era um físico famoso, que escreveu O Andar do Bêbado, Subliminar... E as pessoas disseram: “Ah, legal.” Eu disse: “Ele escrevia MacGyver.” “Nossa, ele escrevia MacGyver! Amamos MacGyver!” Ele é o personagem preferido de muitas pessoas.
Leonard Mlodinow —
Eu sabia que as pessoas conheciam Star Trek no mundo todo. Eu escrevia Star Trek: The Next Generation. Mas eu fiquei surpreso, quando viajei para lançar meus livros, com a reação das pessoas ao MacGyver. Eu não sabia que ele fazia tanto sucesso.
Jorge Pontual — Há alguma cena especial de MacGyver de que você se lembre? Algum truque?
Leonard Mlodinow —
Tem um muito bacana, com um detector de movimentos. Sabe aquele aparato no teto que, quando você se mexe, manda um sinal e abre uma porta. Mas, naquele caso, ele acionava uma bomba. Ele precisava entrar numa sala com esse detector de movimentos. Ele então entrou no armário do zelador... Quando criança, eu gostava muito de química. Então me lembrei desse truque. Ele pegou amônia e algo cuja base era ácido clorídrico, que são produtos de limpeza. Ele então abre... Ambos são muito voláteis. Ele abre as duas garrafas e, quando evaporam, as duas substâncias formam um pó branco, e esse pó branco bloqueou o sinal do detector de movimento, que não conseguiu captá-lo, e ele pôde entrar. Foi um truque bacana. Fazíamos isso no laboratório para irritar nosso professor.
Jorge Pontual — Você era meio MacGyver?
Leonard Mlodinow —
Era. Por isso eu gostava tanto do seriado! Eu gostava muito de química quando criança. Eu fazia bombas, foguetes, chamas...
Jorge Pontual — Seus pais deviam adorar.
Leonard Mlodinow —
É verdade. Eles eram muito compreensivos, mas eu botava fogo na casa. Já queimei meus dois braços até aqui e fiz muita coisa, sabe?
Jorge Pontual — Seu novo livro Subliminar é sobre o inconsciente, sobre nosso “eu inconsciente”. Conte-nos como na sua vida você viu que suas decisões, suas escolhas, não eram todas conscientes.
Leonard Mlodinow —
É. Bem, o objetivo do livro... Ele é uma espécie de complemento a O Andar do Bêbado, que diz que, se você não entende o aleatório, interpreta errado vários acontecimentos que ocorrem ao seu redor. Assim, o sucesso... O sucesso requer trabalho, requer habilidade, claro, mas também tem o elemento “acaso”. Quanto de acaso há nele? Se você compara duas pessoas igualmente bem-sucedidas, ou uma pessoa mais bem-sucedida que outra, a primeira não precisa ser mais talentosa, pode ter tido mais sorte. Então, é muito importante entender o papel do aleatório na vida, para não julgar as pessoas apenas pelos resultados, mas fazer uma análise mais a fundo e julgá-las pelo que são. Mas o que me interessou nesse assunto, ainda que pareça bem diferente de O Andar do Bêbado, é que a ideia é a mesma, só que, em vez de olhar o mundo exterior, eu olho para o mundo interior, para a vida interior de cada um. Assim, o mundo social que você vê não é o que você pensa que é se você não entende o inconsciente. Assim como o mundo exterior é diferente se não entende o aleatório. Quando você entende o aleatório, pode ter um insight. O que eu digo é que, quando vê a cena... Eu estou olhando para você agora, e você parece muito nítido e muito real. Você me parece ter três dimensões, por exemplo. Você tem profundidade, não é uma imagem plana. Mas os dados que vêm até minha retina não são esses dados. Em primeiro lugar, eles têm duas dimensões, então são planos. Além disso, são algo muito confuso. Se eu traduzir os dados que minha retina vê em uma imagem, será uma imagem muito confusa. Se você visse essa imagem na sua TV a cabo, ligaria para a empresa e diria que a TV está com problemas. O que acontece é que seu inconsciente pega esses dados limitados e os processa. Ele usa então vários truques, como o contexto, suas crenças, suas expectativas, seus desejos e todo tipo de coisa, e, instantaneamente e automaticamente, sem qualquer esforço seu, sem você sequer perceber, ele lhe apresenta uma imagem que você acha que é real. Tenho aqui uma imagem sua em 3D, e eu acho que ela é real. Não é o que está na retina, mas no cérebro. E a ideia de Subliminar é mostrar que nossa imagem no mundo social, das outras pessoas, das histórias que nos contamos sobre outras pessoas, seu caráter, sua personalidade, ou mesmos sobre empresas, como o tipo e o valor da empresa, ou coisas que ouvimos... Tudo no mundo é uma construção do nosso cérebro baseada em dados limitados e confusos como os da retina, mas que parece real. E nós fazemos muitas suposições injustificáveis sobre as coisas. Então, se não entendermos isso, interpretamos errado as imagens da nossa realidade social.
Jorge Pontual — Isso não tem nada a ver com o inconsciente freudiano, tem?
Leonard Mlodinow —
Não. Isso é novo. O novo inconsciente está escondido de você porque acontece em uma parte do cérebro que é inacessível. O inconsciente freudiano está escondido de você por razões emocionais ou motivacionais. Você consegue acessá-lo com técnicas de introspecção, pensando na sua vida, falando com um terapeuta... Mas não há muita comprovação do fenômeno que Freud descobriu além de o cérebro ser uma fábrica de comportamento. Mas o que a psicologia e a neurociência descobriram nos últimos 20 anos é um inconsciente muito diferente.
Jorge Pontual — Mas não é possível acessar esse inconsciente?
Leonard Mlodinow —
Vou lhe dar um exemplo ligado ao comportamento dos consumidores. Você entra numa loja e vê um vinho na prateleira. No estudo feito, havia vinho francês e vinho alemão. Estavam misturados, mas tinham preço e qualidade semelhantes. Você entra no corredor do mercado e absorve estes dados: o preço do vinho, a procedência, que tipo de vinho é, se é tinto, branco, Cabernet, o que for, o que vai ter para jantar. Você junta isso tudo e decide o que comprar. Mas seu inconsciente completa a imagem com outros dados, como emoções e humor. O estudo então colocou música para tocar na loja, música francesa e alemã em dias alternados. No dia da música francesa, 2/3 das pessoas compraram vinho francês, e, no dia da música alemã, 2/3 das pessoas compraram vinho alemão. O cérebro delas claramente usava outras coisas, mas, quando as entrevistamos depois da compra, eles não se lembravam da música, algumas nem perceberam aquela música suave de fundo e não acharam que aquilo as influenciaria. Então, você não sabe que essas coisas afetam suas decisões, mas, se estiver ciente delas, pode pensar: “Estou ouvindo música. Estou comprando o vinho alemão por causa da música, e vou me arrepender quando chegar em casa e vir que não gosto dele?”
Jorge Pontual — Essa é a ideia de subliminar: algo que está abaixo da percepção.
Leonard Mlodinow —
Exato.
Jorge Pontual — No seu livro, eu descobri que a política usa muito isso. As pessoas acham que escolhem um candidato porque concordam com as ideias dele ou porque fazem uma escolha mais racional e consciente, mas não.
Leonard Mlodinow —
Porque os humanos são criaturas muito sociáveis. Nós nos desenvolvemos para sermos sociais e nos relacionarmos, e captamos mensagens subliminares ou inconscientes das expressões faciais, da postura, e não percebemos que, quando julgamos os candidatos, essas coisas influenciam em nossas decisões. Um professor de Princeton fez um estudo com fotos de todos os candidatos em dezenas de eleições. Ele mostrou as fotos rapidamente às pessoas e perguntou quem parecia mais competente. Com base na estatística de quem parecia mais competente, ele previu o resultado de dezenas de outras eleições para governador, para senador... E ele teve 70% de acerto em suas previsões. Então, em 70% das vezes, ele acertou o vencedor usando apenas a aparência dos candidatos.
Jorge Pontual — É possível manipular as pessoas a ponto de plantar falsas lembranças? Como isso é feito?
Leonard Mlodinow —
Quando se lembra, você vê a imagem do que aconteceu e acha que foi aquilo que aconteceu, pois é como quando você reconstrói as imagens confusas da sua retina: uma imagem muito clara. Você se lembra de episódios diferentes da sua vida, e, quando chama a lembrança, sua mente reconstrói tudo com uma espécie de chute instruído. Mas a lembrança se baseia nesses aspectos gerais de que você se lembra, só que parece algo detalhado. E ela parece muito real e muito clara, mas não é. Ela se baseia nessas poucas coisas. É por isso que podemos ter uma falsa lembrança e ter certeza de que aquilo aconteceu. E os psicólogos que sabem como manipular isso podem levá-lo a ter falsas lembranças. Isso é um problema em processos judiciais, por exemplo, porque você pode ter uma lembrança errada de alguém. Você se lembra do aspecto geral do rosto, mas identifica alguém e se convence de que é aquela pessoa. Mas, geralmente, a memória funciona muito bem. Foi por isso que evoluímos e ganhamos essa capacidade. Isso é realmente um dom, pois não precisamos parar a cada 3 segundos e posicionar conscientemente os dados que recebemos. Nosso cérebro faz isso automaticamente e instantaneamente.
Jorge Pontual — Funciona assim com outros animais?
Leonard Mlodinow —
Nós temos a mesma mente inconsciente que a maioria dos outros mamíferos. Nossa mente consciente é especial para nós, e temos uma mente consciente muito mais elaborada, mas a estrutura e a função cerebrais do inconsciente são muito parecidas com as dos grandes mamíferos. E todos os animais precisam disso para sobreviver, mas o motivo de precisarmos do inconsciente acima disso ainda é um mistério. Os cientistas ainda não entendermos a razão disso do ponto de vista evolutivo.
Jorge Pontual — Há alguma maneira de estarmos mais atentos para os resultados dessas tendências inconscientes? Digo até mesmo para aquelas que são prejudiciais. Por exemplo, uma pessoa diz que não é racista, que trata todo mundo de maneira igual, mas, quando as testamos — os pesquisadores comprovam isso —, elas têm preconceitos inconscientes contra certos estereótipos.
Leonard Mlodinow —
Essa capacidade categorizar as coisas é um verdadeiro dom. Eu falo de um paciente com dano cerebral que não tem isso. Ele não conseguia nem pôr a mesa. Não conseguia distinguir um garfo de outro, estava tudo na mesma categoria: garfos da mesa de jantar. Então isso é um dom. Mas deixa de ser benéfico quando caracterizamos pessoas por causa de sua religião, de sua cor. E isso vem da mídia e da nossa cultura. Somo constantemente bombardeados com mensagens sobre diferentes etnias, diferentes religiões, e é muito difícil não assimilar isso em nível inconsciente, ainda que nosso inconsciente queira ser justo.
Jorge Pontual — Mas como chegar perto da objetividade? Isso é possível, não?
Leonard Mlodinow —
Identificando as influências, nosso consciente pode pensar: “Espera aí. Ao tomar essa decisão, eu vi os dados, mas deixe-me vê-los de novo para ver se algo a afetou, como o sol ou um briga com a minha mulher.”
Jorge Pontual — Motivos secundários.
Leonard Mlodinow —
É, motivos ocultos. Seu interesse. Você pode dizer: “Eu tomei essa decisão, mas sei que fui influenciado.” E você precisa tentar contextualizar isso aprendendo sobre si mesmo.
Jorge Pontual — Mas ninguém escreverá uma manchete como: “Este assunto é complicado demais, não consigo me decidir.” Nós precisamos montar alguns títulos em mente.
Leonard Mlodinow —
Os cientistas muitas vezes dizem isso e continuam trabalhando, mas em outras áreas, como nos negócios, geralmente é preciso tomar uma decisão. Não se pode dizer aos acionistas: “Não sabemos bem sobre a produção. Deem-nos 5 anos para estudar a questão.”
Jorge Pontual — Mas, se eu não tenho acesso ao inconsciente, como posso saber se eu tenho um preconceito ou não? Normalmente isso se reflete no meu comportamento, as outras pessoas me veem assim?
Leonard Mlodinow —
Isso. Outras pessoas talvez vejam melhor do que você, mas você pode testar seus preconceitos inconscientes. Há um site que aplica o teste de associação implícita, IAT (clique aqui para acessar). Ele é incrível. Pode-se testar os preconceitos sobre preferência sexual, raça, obesidade... Depois de fazer o teste, que dura uns 10 minutos, você vê como se saiu, e ele mostra como as pessoas se saíram de maneira geral.
Jorge Pontual — É interessante como os pesquisadores agora usam imagens rápidas, que aparecem na sua frente por 50 milissegundos, e você decide o que está vendo sem mesmo perceber.
Leonard Mlodinow —
É verdade. Isso é interessante. E há muitos experimentos baseados nessa tecnologia para fazer isso. Sua mente inconsciente lembra muito rápido. Então, a razão dessa habilidade é interagirmos sem parar para pensar. Às vezes, é claro que você para e pensa, mas imagine uma conversa em que você tem que parar para pensar de onde vem a outra pessoa... Enfim, pode ser difícil entender do que eu estou falando, mas imagine uma mulher correndo para pegar um ônibus que vai partir. Você entende automaticamente o que ela está pensando: ela quer pegar o ônibus para ir trabalhar, vai ficar chateada se não o pegar. Todas essas informações implícitas que sua mente entende sem parar para analisar, ela está ali. Se não tivéssemos isso, nossas interações seriam muito difíceis.
Jorge Pontual — Então, pessoas que têm dificuldade para interagir socialmente não tem isso?
Leonard Mlodinow —
Há muitos motivos para não ter interação social. Pessoas que não têm isso, como as autistas, têm problemas para interagir socialmente. Autistas tem problemas com a chamada “teoria da mente”, a capacidade de entender o que o outro pensa instantaneamente, sem analisar e estudar isso.
Jorge Pontual — Isso é inconsciente.
Leonard Mlodinow —
É. Você pode pensar nisso conscientemente, mas, apenas olhando para você e vendo a situação, eu entendo automaticamente muitas coisas sobre você, e isso é inconsciente.
Jorge Pontual — Uma coisa que eu entendi em seus dois livros — e nós acabamos aprendendo isso — é que não estamos no controle de tudo. Nós precisamos ser mais humildes. Mas também mais agradecidos.
Leonard Mlodinow —
Isso.
Jorge Pontual — Por quê? Fale um pouco sobre isso.
Leonard Mlodinow —
Como eu digo, tudo o que você faz — tentar abrir uma nova empresa, tentar escrever um livro, escrever um artigo sobre física — pode ter sucesso ou pode fracassar. Nós tendemos a pensar que cabe apenas a nós — e grande parte cabe mesmo, não digo que não —, porém é como uma equipe esportiva: podemos ter uma equipe ótima, e em alguns dias, a bola simplesmente não rola bem para ela. O que nós precisamos entender é que seu esforço lhe dá apenas uma probabilidade de ter sucesso, mas há também uma probabilidade de você fracassar. E, quando olhamos para trás e analisamos o fracasso ou o sucesso, sabemos que houve fracasso ou sucesso, mas achamos que dependeu 100% de nós, pois aquele foi o resultado, mas não dependeu. Então, acho que isso nos dá esperança e humildade, porque, se você tem sucesso, deveria entender que há pessoas por aí tão boas quanto você que não tiveram sucesso, então parte disso é sorte. Ou, se você não teve sucesso, se você escreve um livro, mas as pessoas não compram, não significa que você não tem capacidade de escrever um livro de sucesso. Significa apenas que você jogou a moeda, e ela caiu do lado errado, mas você deve continuar tentando. O poder de decisão da sua mente consciente, aquela que associamos a nós mesmos, é apenas parte do caminho. Outra parte são nossos instintos animais, nossas emoções e mente inconsciente, que todos nós, seres humanos, temos e que está presente em nossa mente inconsciente. Ela é a base a partir da qual nós agimos e afeta nossa personalidade e nosso comportamento de uma maneira que não entendemos. Nós apenas podemos controlar o que podemos controlar, que é nossa mente consciente.
Jorge Pontual — E devíamos agradecer por isso dar certo.
Leonard Mlodinow —
Exatamente, senão, nossa espécie estaria extinta.
Jorge Pontual — Há outra coisa que é inconsciente, como li no seu livro, que é a autoimagem que temos. Ela é uma ilusão... Não é uma ilusão, mas a autoconfiança é sempre um pouco otimista, não é? O que é bom!
Leonard Mlodinow —
É bom, claro! Tudo isso é bom, mas leva a uma percepção equivocada. Então, mais de 50% das pessoas tendem a se achar acima da média, mas é claro que apenas 50% delas pode estar acima da média. Mas a mente inconsciente nos ajuda a ver o mundo assim, porque nós encontramos várias barreiras na vida. Quando vivíamos na natureza, havia falta de comida, frio, predadores nos caçando... Se tivéssemos uma visão muito sóbria e objetiva da vida, em alguns momentos, provavelmente, nos encolheríamos e desistiríamos. Em nosso mundo civilizado, estamos protegidos desses problemas, mas isso ainda é válido. Podemos ter um grande problema de saúde, como câncer, e ter que fazer quimioterapia, ou podemos abrir uma nova empresa e ter que trabalhar 100 horas por semana, sem qualquer garantia de sucesso... Qualquer que seja seu campo de atuação, há desafios. Mas o bom é que nossa mente consciente nos ajuda a manter uma atitude positiva com relação a isso e a nós mesmos. Ela nos ajuda a derrubar barreiras e realizar coisas que não realizaríamos sem esse otimismo.
Jorge Pontual — E isso é inconsciente.
Leonard Mlodinow —
É criado inconscientemente. É até muito difícil contrariar isso. Adivinhe que pessoas têm uma visão mais realista delas próprias? São as pessoas depressivas, pessoas que sofrem de depressão. Isso é uma das coisas que nos ajudam a não ficar deprimido.
Jorge Pontual — Você sempre conta histórias sobre seus pais, não é? Histórias ótimas sobre eles. Há uma história que fecha o livro que tem a ver com isso, com esse otimismo, com essa confiança de que as coisas podem ser superadas.
Leonard Mlodinow —
Meus pais viveram o Holocausto e ficaram em campos de concentração na Polônia. Eles vieram para Nova York depois da guerra e eram muito pobres. Meu pai trabalhava em uma confecção. Ele era alfaiate na Europa. Minha mãe não trabalhava, e eles não conseguiam pagar nem o aluguel, passavam por momentos difíceis. Meu pai um dia chegou em casa e disse: “Adivinhe só! Precisamos de uma costureira, e eles disseram que o emprego é seu, para você ir comigo amanhã. Vamos ganhar o dobro e ficar juntos.” O único problema era que minha mãe não sabia costurar. Ela vinha de uma família rica e não precisara aprender a isso. Meu pai disse: “Não faz mal, eu te ensino esta noite.” Minha mãe não estava tão otimista quanto meu pai, estava muito preocupada com suas habilidades. Eles conversaram, e ele a encorajou, disse que ele a ajudaria... Às vezes, eu acho que nos unimos às pessoas não só pela maneira como as vemos, mas também por como elas nos veem. Ele achava que ela era capaz e passou a noite ensinando-a a costurar. Na manhã seguinte, ela foi à confecção e conseguiu o emprego.
Jorge Pontual — É uma bela história.
Leonard Mlodinow —
Obrigado.
Jorge Pontual — Eu que agradeço. Obrigado.
Leonard Mlodinow —
Muito obrigado.
Revista Consultor Jurídico, 19 de outubro de 2012

terça-feira, 2 de outubro de 2012


Mãe d’água e fundamentalismo religioso: o mal é o que saí da boca do homem!

Obscuras personalidades saíram do lamaçal em que suas convicções sociais repousam para destinar preconceito religioso contra uma obra de arte colocada em pedra no rio São Francisco...Ops, desculpem, São Francisco é um santo da igreja católica; portanto, devo queimar no mármore do inferno por manifestar um nome reativo a uma religião que não é daqueles que não a professam...
Deveriam se insurgem contra os terrenos que foram doados para construção de templos, ante a expressão vedação da Constituição Federal[1].
É condição de possibilidade de uma democracia a convivência entre os diferentes. Vemos todos os dias exemplos de sectarismo e fundamentalismo religioso no oriente médio, mas esqueçamos que, entre nós, ele graceja...
Naquilo que os homens decidiram como regras para um convívio em paz entre os diferentes, criou-se leis que protegem a honra e a dignidade das pessoas
Constituição Federal além do artigo 5o, inciso VI, que já protege a liberdade religiosa em sentido amplo, estabelece em seu artigo 3o, IV, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
No plano infraconstitucional, o Direito Penal criminaliza condutas preconceituosas, inclusive na religião, através do artigo 20 da lei 7.716/89.[2] Também o Código Penal tipifica a injúria por motivos religiosos, no artigo 140, § 3o[3], e estabelece vários outros artigos que de alguma forma evitam referidas manifestações de preconceitos.[4]
E mais: por se tratarem de grave violação aos direitos humanos, o crime é processado perante a Justiça Federal, vez que a  E.C. n° 45 acrescentou um novo parágrafo ao art. 109 da Constituição, com a seguinte redação: “§ 5° Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”.



[1] Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
[2] Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1o Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
[3] § 2o Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
[4] Arts. 208, 234, 235, 391, 392, 393, 394 e 395 do Código Penal.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Não foi com o mensalão que o STF mudou sua jurisprudência:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. DIREITO À LIBERDADE PROVISÓRIA. RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE. CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTE, ASSOCIAÇÃO PARA FINS DE TRÁFICO, POSSE DE OBJETOS DESTINADOS À PREPARAÇÃO, PRODUÇÃO OU TRANSFORMAÇÃO DE ENTORPECENTE. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. APLICAÇÃO DA LEI PENAL. JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. DENEGAÇÃO. 1. As questões de direito tratadas nos autos deste habeas corpus dizem respeito ao alegado excesso de prazo de prisão processual, à ausência de justa causa para a ação penal em face do paciente, à ausência de fundamento concreto para a prisão processual do paciente, à nulidade de sua prisão em flagrante e à presença dos requisitos para a concessão da liberdade provisória. 2. Esta Corte tem adotado orientação segundo a qual há proibição legal para a concessão da liberdade provisória em favor dos sujeitos ativos do crime de tráfico ilícito de drogas (art. 44, da Lei n 11.343/06). 3. A redação conferida ao art. 2 , II, da Lei n 8.072/90, pela Lei n 11.464/07, prepondera sobre o disposto no art. 44, da Lei n 11.343/06, eis que esta se refere explicitamente à proibição da concessão de liberdade provisória em se tratando de crime de tráfico ilícito de substância entorpecente (HC 92.723/GO, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 11.10.2007; HC 92.243/GO, rel., Min. Marco Aurélio, DJ 20.08.2007; HC 91.550/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 31.05.2007, entre outros). (...) 8. A maior complexidade das relações sociais, bem como a verificação da crescente sofisticação das práticas delituosas mais graves e complexas, inclusive com o desenvolvimento de atividades por organizações criminosas, fazem com que seja essencial o sopesamento dos vários interesses, direitos e valores envolvidos no contexto fático e social subjacente. 9. Os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-valorativa. (...) (HC 94661, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 30/09/2008, DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-03 PP-00536) [grifei]

sábado, 25 de agosto de 2012

ABUSO DE DIREITO E COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO

Luiz Antonio Costa de Santana


Dispõe o art. 187 do CC que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé, ou pelos bons costumes”.

Ao contrário do CC alemão, inspirador da regra no Brasil, o art. 187 do CC não exige intenção do sujeito de prejudicar, nem que o sujeito tenha o propósito de prejudicar; basta praticar, ou seja, sem análise da figura da culpa.

O que o art. 187 do CC exige para a configuração do abuso de direito é a ultrapassagem de limites, no exercício de um direito. Os limites são impostos em observância a: a) pelo seu fim econômico ou social; b) pela boa fé (objetiva); c) pelos bons costumes. O cidadão é detentor de um direito mas excede-se.

Neste aspecto, surge a importância de delimitar outro instituto jurídico de origem alemã que começa a ser aplicado no Brasil: venire contra factum proprium.

Chaïm Perelman define o que é o venire contra factum proprium:

“28 – Venire contra factum proprium: não se pode insurgir contra as conseqüências do feito próprio. Em direito administrativo, esta regra obriga a administração pública a se conformar com as regras que ela própria instituiu: patere legem quan ipse fecisti” (Lógica Jurídica. São Paulo. 2000. p. 21.)

O ministro do Superior Tribunal de Justiça RUI ROSADO de AGUIR JUNIOR nos ensina, com maestria, o alcance de tão importe teoria: “A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois
cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada.” (AGUIAR JÚNIOR, RUY ROSADO DE. A Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor. 1ª ed. Rio de Janeiro. Aide. 1991, p. 240.).

Consultor Jurídico

Modulação de efeitos da decisão e o ativismo judicial
POR HELENO TAVEIRA TORRES
Tencionam-se com frequência as relações entre certeza e justiça ou certeza e liberdades, na aplicação das normas constitucionais em matéria tributária. A solução destas tensões, entretanto, depende de uma firme compreensão da racionalidade operada sobre os critérios da segurança jurídica. Nesse aspecto, o controle de inconstitucionalidade tem função expressiva na afirmação da segurança jurídica.

Por muito tempo, constitucionalistas de escola asseveraram a nulidade da lei ou do ato normativo declarado inconstitucional como única e possível eficácia. E sempre sob a égide da segurança jurídica. O próprio Supremo Tribunal Federal esteve jungido à tradição de que o controle de inconstitucionalidade teria abrangência temporal de efeitos a partir do ingresso da lei ou do ato na ordem jurídica e, assim, com eficácia ex tunc da nulidade declarada no controle concentrado.[1] Viu-se, porém, que esse rigor de unitariedade dos efeitos poderia ensejar, a depender do caso, justamente o oposto, a quebra da segurança jurídica e perda de efetividade da justiça.

Não quer isso dizer, contudo, que o emprego do efeito ex nunc às decisões de controle concentrado de inconstitucionalidade não fosse objeto de exame e, em algum caso isolado, empregado expressamente. E diga-se o mesmo para sua possibilidade de aplicação ao controle difuso, em recursos extraordinários.[2]

Para mitigar essa fixidez da nulidade, o artigo 27 da Lei 9.868, e o artigo 11 da Lei 9.882, ambas de 1999, contemplam regra que veicula norma jurídica dispositiva para que o STF, nas declarações de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo ou no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, possa dispor sobre eficácia temporal das decisões que adotar, em superação aos limites da nulidade (eficácia ex tunc), que sempre foi a regra nessas hipóteses, a saber:
“Art. 27.Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

A regra foi sempre, e continua sendo, o efeito de nulidade nas declarações de inconstitucionalidade. Entretanto, declara, o referido artigo, que, por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, apurados no caso concreto ou no conjunto dos casos submetidos ao mesmo tratamento jurídico (quando reconhecida a repercussão geral), pode o Tribunal restringir os efeitos (i) ou decidir que ela só tenha eficácia (ii) a partir de seu trânsito em julgado (efeitos prospectivos) ou de outro momento que venha a ser fixado (modulação temporal), que pode ser para o passado (modulação retroativa) ou para o futuro (modulação pro futuro). E sempre com o procedimento de quórum especial, de dois terços dos votos.[3]

O artigo 27 da Lei 9.868/1999 trouxe, assim, para o controle concentrado de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, por maioria de dois terços de seus membros (pressuposto formal) e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social (pressuposto finalístico), a atribuição de poderes ao STF para: restringir os efeitos da declaração (i), decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado (ii) ou outro momento que venha a ser fixado (iii). Mitiga-se, com isso, o efeito ex tunc das decisões do STF, para conferir-lhes, no tempo, (a) eficácia ex nunc (efeitos prospectivos) ou (b) modulação temporal a certo período,[4] em alternativa à nulidade absoluta da lei ou ato declarado inconstitucional.[5]

As condições entabuladas no artigo 27 da Lei 9.868/1999, porém, não podem ser concebidas como uma “faculdade” ao Plenário. Quer dizer, quando comprovado que a situação fática será afetada por insegurança jurídica ou excepcional interesse social, deverá, o Plenário do Supremo unicamente deliberar sobre restringir os efeitos e atribuir eficácia ex nunc (efeitos prospectivos) ou empregar modulação temporal para as declarações de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos.

Quando o pedido compreender a modulação ou atribuição de efeitos prospectivos, a apuração dos pressupostos materiais, como assinalado acima, deve ser considerada como um direito da parte interessada e o julgamento acompanhado de motivação suficiente para: (i) determinar o regime temporal mais apropriado para o julgamento ou (ii) para alegar a ausência de insegurança jurídica ou de excepcional interesse social. Quando o Plenário omite-se na motivação para negar o pedido ou trata a modulação como uma questão ancilar, induvidosamente, cerceia o direito das partes à segurança jurídica e descumpre a exigência de ato vinculado do artigo 27 da Lei 9.868/1999.

O STF, em limitadas oportunidades, proferiu decisões com modulações de seus efeitos, tanto em declarações de inconstitucionalidade, com ou sem redução de texto, quanto nos casos de interpretação conforme a Constituição. Não há qualquer motivo para críticas sobre quão restritos foram os casos de sua adoção em matéria tributária. Porém, será sempre desejável que se tenha atendido o critério da coerência sobre os motivos determinantes e a garantia de proteção de direitos quando a decisão, comprovadamente, possa incorrer em quebras de estabilidade ou de confiabilidade.

Diversos autores demonstram não concordar com as limitações entabuladas pelo artigo 27 da Lei 9.868/1999, para decretar inconstitucionalidade com efeitos ex nunc (prospectivos) ou modulação temporal, ao entendimento de que, na ausência da lei, a competência estaria preservada e o rol discriminado no seu texto, para motivar a decisão, seria somente exemplificativo e não um numerus clausus.

Razões de segurança jurídica, certeza jurídica e de acessibilidade do jurisdicionado ante o próprio tribunal, diversamente, sugerem a importância do seu cabimento, a vinculação dos seus pressupostos para o Plenário do STF seguida do dever de motivação e a natureza de direito subjetivo fundamental para os jurisdicionados. Por uma, porque explicita as condições mínimas, sem exclusão de outras que com estas possam ser coerentes; e por dois, porque possibilita a todos pleitearem esse direito, ademais dos meios para controlar a atividade decisória.[6]

Em matéria tributária, pela natureza patrimonial das suas exações e afetações imediatas a direitos e liberdades fundamentais, o assunto toma dimensões muito eloquentes. A regra, nas declarações de inconstitucionalidade de leis que criam obrigações tributárias ou agravam situações dos contribuintes, deve ser sempre a nulidade com eficácia ex tunc. Entretanto, a depender da situação, como aproveitamento de créditos, cumprimentos de obrigações acessórias e outros, a estabilidade sistêmica e a segurança jurídica podem reclamar a flexibilidade do regime de nulidade, mediante modulação temporal ou eficácia prospectiva da decisão.[7]

O estado de confiança gerado sobre a esfera jurídica do contribuinte é suficiente para motivar o necessário efeito prospectivo (ex nunc) ou, quando cabível, da modulação no tempo, seja esta retroativa (com indicação de momento anterior fixado pelo Tribunal para que a decisão tenha efeitos) ou pro futuro (data futura fixada para que a decisão possa surtir efeitos), como forma de preservar o princípio de segurança jurídica, mas também como eficácia do princípio de irretroatividade do não benigno, quando o postulado da nulidade (efeito ex tunc) opere em desfavor do contribuinte.[8]

Diante disso, o exame do pedido da parte interessada ou a decisão autônoma do Plenário devem ser acompanhadas de adequada comprovação dos pressupostos materiais de insegurança jurídica ou de excepcional interesse social, mormente para afastar o pedido de modulação de efeitos, quando a motivação deve ser expressamente declarada. Portanto, quando houver pedido expresso, a prática do STF de, na falta de manifestação expressa sobre efeitos prospectivos ou modulação (para passado ou futuro), atribuir só os efeitos típicos de nulidade da lei ou do ato declarado inconstitucional, com eficácia ex tunc, deve ser superada, para dar lugar ao julgamento contemporâneo das condições materiais e evitar que às partes socorram-se sempre de embargos de declaração para alegarem esta pretensão após o julgamento.

O consequencialismo judicial
A doutrina anglo-saxônica da “argumentação consequencialista” (consequentialist argument), que se caracteriza por um modelo fundado no dirigismo da decisão segundo critérios baseados nas consequências práticas externas ao sistema jurídico, como justificativa para valoração dos fatos e normas aplicáveis, intensificou-se nos últimos tempos, tanto nos estudos quanto nas próprias decisões do STF.

Os casos difíceis, de trama complexa ou de colisões de princípios, a variabilidade das decisões judiciais sobre uma mesma matéria, a progressiva opacidade do ordenamento, a falta de regras claras e objetivas ou contradições administrativas atentam contra a desejável racionalização do ordenamento, com abertura para o consequencialismo,[9] como forma de garantir julgamentos pautados pela razoabilidade, sopesamentos e maior aderência e coerência com a realidade social.[10]

Além das duas hipóteses temporais, o artigo 27 da Lei 9.868/1999 autoriza ainda seu cabimento para “restringir os efeitos da declaração”. O consequencialismo não se confunde com a modulação ou os efeitos prospectivos nas declarações de inconstitucionalidades. A decisão pode até ser modulada e isso integrar o propósito consequencialista, mas não é uma condição necessária.

A doutrina nacional, na esteira de terminologia usual no Common Law, passou então a falar em “consequencialismo jurídico”, para designar a possibilidade de acomodação do julgamento de certa matéria com exame das questões materiais e repercussões concretas, com vistas a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Em matéria tributária, porém, prevalece a certeza jurídica e todo o plexo de normas volta-se para garantir, a partir de um estado de normalidade, a estabilidade do ordenamento e a confiança legítima dos contribuintes. Por conseguinte, não há oportunidade, no modelo de Sistema Constitucional Tributário brasileiro, para argumentos consequencialistas, à semelhança de “quebra do erário”, “dificuldades de caixa” ou “crises econômicas” como pretexto para descumprir a Constituição.

No caso do sistema constitucional tributário, a certeza vê-se atendida pela legalidade e suas variantes formais e materiais, como, no Direito Tributário, tem-se na definição das espécies de tributos e discriminação material de competências, proibição de analogia, reserva de lei complementar, exigência de legalidade formal para instituir ou aumentar tributos e determinação dos critérios para efetividade material dos direitos e garantias fundamentais em matéria tributária.

No Estado Democrático de Direito, os núcleos funcionais da segurança jurídica operam mediante as funções de certeza, confiabilidade e estabilidade sistêmicas. Para tanto, a normalidade será sempre o pressuposto fundamental desse “estado de segurança” ou do “estado de confiança”. Por isso, a quebra de certeza na legalidade ou dos valores na efetividade de princípios equivalerá, uma ou outra, à instauração de um “estado de insegurança”, de um “estado de exceção permanente”.

Devido à comunicação entre certeza, coerência e justiça, a normalidade funcional do sistemadetermina-se, operacionalmente, pela confiança dos sujeitos na estabilidade controlada das relações jurídicas e expectativas de direitos, deveres e obrigações, assim como na efetividade de direitos e liberdades fundamentais.[11]

É que a estabilidade intrassistêmica depende de uma previsibilidade formal, controlada a partir da observância da hierarquia das normas ou das autoridades (fontes do direito) e daquelas relações de coordenação e subordinação entre competências, necessários à diferenciação sistêmica em relação aos demais sistemas do social; e daquela que denominamos de previsibilidade material, assegurada pela observância dos direitos e liberdades fundamentais, mediante preservação dos valores institucionalizados, sem prejuízo de incorporações de outros, em decorrência da abertura axiológica do sistema jurídico.

A finalidade dessa apuração pautada pelos critérios de certeza, previsibilidade e confiabilidade serve a reduzir o efeito da subjetivação da segurança jurídica, um dos valores mais perseguidos, pela vinculação dos atos tributários. Tudo isso corre o risco da ruína, na hipótese de se fazer prevalecer pretensões consequencialistas sobre as garantias de certeza da legalidade e de justiça dos princípios tributários.

Para autorizar o consequencialismo ou ativismo na decisão de um caso difícil, para alguns, isso decorreria de um suposto “conflito” entre segurança jurídica e “justiça”, estado de coisas que autorizaria o emprego da “ponderação”, com preferência pelo princípio da “justiça”, ou pelos critérios da “proporcionalidade”. Entretanto, a ponderação depende do caso concreto (i) e a proporcionalidade só pode ter aplicação nos casos de limitações a direitos ou liberdades fundamentais (ii). São meras falácias, amparadas nos méritos de retórica que se alimenta de uma terminologia ambígua e imprecisa, e que se orientam para o descumprimento da Constituição, a pretexto de interpretar o seu conteúdo.

Julgamos, assim, tão inadequada quanto perturbadora a utilização desta linha de pensamento consequencialista e, para muitos, fundamentalmente ponderadora, ao ponto que se fala até mesmo em um suposto “Estado Ponderador”,[12] com licença concedida ao STF para decidir sob a égide dos critérios de “proporcionalidade” ou de “razoabilidade” as questões constitucionais examinadas.

A autorização do artigo 27 da Lei 9.868/1999 para restringir os efeitos da declaração deve cingir-se igualmente aos pressupostos de fundamentação, quais sejam, a segurança jurídica ou o excepcional interesse social. Portanto, nenhuma liberdade “ponderadora” pode ser extraída dessa demarcação material, ao menos “a priori”. Aceitar atuações do Tribunal por motivações alheias a esses pressupostos, ao menos em matéria tributária, isso levaria suas decisões ao risco do “justicialismo”[13] ou do “fiscalismo”, a pretexto de “ativismo judicial”, com pesada dose de subjetivismo.[14]

Neutralidade concorrencial e modulação
As declarações de inconstitucionalidade de leis nos tributos não cumulativos têm uma grave afetação às relações tributárias, com notáveis consequências para os contribuintes, com relação ao regime de créditos e obrigações acessórias envolvidas. Em vista disso, a modulação de efeitos da decisão (ex nunc, retroativa ou pro futuro) é fundamental para garantir a segurança jurídica e a efetividade dos valores que permitam determinar o excepcional interesse social.

Em alguns casos, os pressupostos justificadores da modulação podem decorrer das complexas relações entre empresas que atuam no mercado interno e cuja consequência pode privilegiar uma em detrimento da outra. Nesse caso, deve-se examinar até que ponto uma declaração de nulidade poderia criar vantagens competitivas para uma parcela de empresas, em detrimento das demais.

Como sabido, o princípio da neutralidade concorrencial permite a intervenção do Estado na economia, inclusive por meio de normas tributárias, mas impede que sejam privilegiados determinados agentes econômicos, em detrimento de outros que atuem no mesmo mercado relevante, de forma a provocar distúrbios concorrenciais. Este princípio da neutralidade, guardada as devidas proporções, pode aplicar-se também às decisões judiciais, no sentido de se reconhecer a garantia de neutralidade entre os agentes econômicos em virtude de decisões judiciais. Este é, sem dúvidas, um motivo de excepcional interesse social.

Em matéria tributária, portanto, o controle de inconstitucionalidade pode ser modulado no tempo por considerações de neutralidade concorrencial, em virtude de obrigações principais ou acessórias, mormente nos casos de controles de poder de polícia, como se verifica com os registros e outros.

Em atenção ao art. 219, cabe o controle de poder de polícia no limite para proteção do mercado interno, além daqueles da proteção da livre inciativa e da livre concorrência, a saber:

“Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos de lei federal.” Grifamos.

Desse modo, numa interpretação conforme a Constituição, ao tempo que se impõe o dever de incentivar o mercado interno, justifica-se seu controle e fiscalização, para evitar quebras de isonomia entre as empresas, de modo que este poderá ser objeto de típico poder de polícia, por meio de obrigações acessórias.[15] Verifica-se, assim, afronta à neutralidade concorrencial quando o controle for precário ou insuficiente, pois, nesse caso, o contribuinte que não adota registros ou cumpre as determinações de controle, finda por beneficiar-se, contrariamente aos motivos que a Constituição adota.

Também neste caso, eventual controle de que possa incorrer na declaração de inconstitucionalidade de regras relativas a registros ou assemelhados, típicos atos de poder de polícia, pode justificar o emprego de modulação (pro futuro) ou de efeitos prospectivos (ex nunc), para afastar tratamento divergente entre contribuintes que atuam no mesmo mercado e cujo benefício pode gerar vantagem competitiva, em franca contrariedade aos princípios da livre concorrência e da proteção do mercado nacional.

[1]. (STF, Pleno, ADIn 652-MA, rel. Min. Celso de Mello, j. 02.04.1992). Rui Barbosa foi um dos mais relevantes defensores do efeito ex tunc das declarações de inconstitucionalidade (Cf. BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003).

[2]. “(...) 7. Inconstitucionalidade, incidenter tantun, da lei local que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2600 habitantes somente comporta 09 representantes. 8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido e em parte provido. (RE 197917/SP. STF. Pleno. Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA. Julgamento: 06/06/2002). Entretanto, esta tese encontra óbices para sua afirmação. Como exemplo: “Ementa: Recurso Extraordinário - Inaplicabilidade, ao caso, da doutrina da modulação dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal - pretensão que, examinada nos "leading cases" (RE 377.457/PR e RE 381.964/MG), não foi acolhida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal - ressalva da posição pessoal do relator desta causa, que entende cabível, tendo em vista as peculiaridades do caso, a outorga de eficácia prospectiva - considerações do Relator (Min. Celso de Mello) sobre os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos em suas relações com o poder público e, ainda, sobre o significado e as funções inerentes à Súmula dos tribunais - observância, contudo, no caso, do postulado da colegialidade - recurso de agravo improvido.” (RE 592148ED/MG. STF. Segunda Turma, Relator: Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 25/08/2009). Vide: STF, MS 26.602, Rel. Min. Eros Grau, MS 26.603, Rel. Min. Celso de Mello, MS 26.604, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 04.10.07.

[3]. Relevante a discussão sobre a forma de apuração do quórum legal, veja-se o julgamento da ADIn 2.949/MG, STF, Pleno, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 27.09.2007. E com modificações importantes: ADIn 2791/PR ED, STF, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, relator p/ o acórdão Min. Menezes Direito, j. 22.04.2009.

[4] Veja-se, com destaque, os votos proferidos no julgamento do STF que declarou a inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/91: RE nº 560.626/RS STF. Tribunal Pleno, Relator: Ministro Gilmar Mendes, publicado no DJe em 05.12.2008. E deste decorre a Súmula Vinculante n° 8, a saber: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário.”

[5]. Cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Segurança jurídica e eficácia temporal das alterações jurisprudenciais: competência dos tribunais superiores para fixá-la – questões conexas. In: FERRAZ JR., Tercio Sampaio; CARRAZZA, Roque Antonio; NERY JUNIOR, Nelson. Efeito ex nunc e as decisões do STJ. Barueri: Manole, 2007. p. 33-73; CARVALHO, Paulo de Barros. Segurança jurídica e modulação dos efeitos. In: DERZI, Misabel Abreu Machado (Coord). Separação de Poderes e Efetividade do Sistema Tributário: XIV Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação Brasileira de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 3-17. Andrade, Fábio Martins de. Título. Modulação em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2011, 494p. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Do efeito ex nunc na declaração de inconstitucionalidade pelo STF. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; JOBIM, Eduardo. O processo na Constituição. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 533-551; NERY JUNIOR, Nelson. Boa-fé objetiva e segurança jurídica: eficácia da decisão judicial que altera jurisprudência anterior do mesmo Tribunal Superior. In: FERRAZ JR., Tercio Sampaio; CARRAZZA, Roque Antonio; NERY JUNIOR, Nelson. Efeito ex nunc e as decisões do STJ. Barueri: Manole, 2007. p. 75-107; PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. A modulação da eficácia temporal da decisão de inconstitucionalidade da lei tributária em controle difuso. Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2008. p. 417-435; ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme a Constituição do art. 27 da Lei 9.868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. TORRES, Ricardo Lobo. O consequencialismo e a modulação dos efeitos das decisões do supremo tribunal federal. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord). Direito tributário e ordem econômica: Homenagem aos 60 anos da ABDF. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 199-234. TALAMINI, Eduardo. Novos aspectos da jurisdição constitucional brasileira: repercussão geral, força vinculante modulação dos efeitos do controle de constitucionalidade e alargamento do objeto do controle direto. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008. 331p.

[6]. A experiência italiana na matéria é expressiva. Cf.: RUOTOLO, Marco. La dimensione temporale dell’invalidità della legge. Padova: Cedam, 2000; MENGONI, Luigi. L’argomentazione orientala alle conseguenze. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, v. 48, n. 1. p. 2-18, Milano: Giuffrè. 1994.

[7]. O STF tem sido sobremodo restritivo no exame dos pressupostos para cabimento de modulação de efeitos em matéria tributária. No passado, o único caso com emprego relevante dos efeitos prospectivos, ainda que acompanhado de severas críticas ao modo casuístico e não suficiente para prover a segurança jurídica esperada, foi o que segue: “As normas relativas à prescrição e à decadência tributárias têm natureza de normas gerais de direito tributário, cuja disciplina é reservada a lei complementar, tanto sob a Constituição pretérita (art. 18, § 1.º, da CF de 1967/1969) quanto sob a Constituição atual (art. 146, III, b, da CF de 1988). Interpretação que preserva a força normativa da Constituição, que prevê disciplina homogênea, em âmbito nacional, da prescrição, decadência, obrigação e crédito tributários. Permitir regulação distinta sobre esses temas, pelos diversos entes da federação, implicaria prejuízo à vedação de tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente e à segurança jurídica. II. Disciplina prevista no Código Tributário Nacional. O Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966), promulgado como lei ordinária e recebido como lei complementar pelas Constituições de 1967/69 e 1988, disciplina a prescrição e a decadência tributárias. III. Natureza tributária das contribuições. As contribuições, inclusive as previdenciárias, têm natureza tributária e se submetem ao regime jurídico-tributário previsto na Constituição. Interpretação do art. 149 da CF de 1988. Precedentes. IV. Recurso extraordinário não provido. Inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91, por violação do art. 146, III, b, da Constituição de 1988, e do parágrafo único do art. 5.º do Decreto-lei 1.569/77, em face do § 1.º do art. 18 da Constituição de 1967/1969. V. Modulação dos efeitos da decisão. Segurança jurídica. São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/1991 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento” (STF, Pleno, RE 560626, Repercussão Geral, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 12.06.2008).

[8]. No mesmo sentido, José Souto Maior Borges: “É a surpresa, a antissegurança (mais que a insegurança), o agravo a direitos individuais erigidos em sistema. Daí porque se impõe atribuir efeitos apenas ad futurum nas decisões judiciais modificativas de práticas judiciais e/ou administrativas reiteradas ao abrigo da própria jurisprudência” (BORGES, José Souto Maior. O princípio da segurança na Constituição Federal e na Emenda Constitucional 45/2004. Implicações fiscais. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 262). Igualmente, César García Novoa, para quem. “sin embargo, este efecto de cosa juzgada, establecido a favor del ciudadano, que no puede ver agravada su situación jurídica por la aplicación retroactiva de una norma que viene a sustituir a aquella que, aunque inconstitucional, fue corroborada por un pronunciamiento jurisprudencial, se ha visto pervertido por la doctrina del propio Tribunal Constitucional” (GARCÍA NOVOA, César. El principio de seguridad jurídica en materia tributaria. Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 195).

[9]. “Las exigencias (o expectativas) de certeza jurídica están cumplidas si: (a) puede evitarse la arbitrariedad y (b) el resultado coincide con el código valorativo, es decir, es ‘correcto’ en el sentido sustancial de la palabra. Evitar la arbitrariedad significa aproximadamente lo mismo que previsibilidad. Más aún, la previsibilidad puede ser definida por medio de la racionalidad. Todo procedimiento que satisface los criterios del discurso racional da como resultado decisiones previsibles” (Aarnio, Aulis. Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. p. 82).

[10]. Como afirma Virgílio Afonso da Silva: “Se segurança jurídica puder ser traduzido, entre outras coisas, como um mínimo de previsibilidade na atividade jurisdicional, a forma mais segura de alcançá-la não passa apenas pela definição de métodos que possibilitem controle intersubjetivo – nesse ponto, tanto a subsunção quanto o sopesamento possibilitam tal controle. A verdadeira previsibilidade da atividade jurisdicional se dá a partir de um acompanhamento cotidiano e crítico da própria atividade jurisdicional” (SILVA, Luís Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: RT, 2004. p. 149; cf., ainda: RAMOS, Elival da Silva. Parâmetros dogmáticos do ativismo judicial em matéria constitucional. Tese (Titularidade). 2009. 289 p. Universidade de São Paulo, São Paulo; ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Granada: Comares, 2004; MULLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: RT, 2008).

[11] Para maiores considerações, veja-se o nosso: Direito Constitucional Tributário e segurança jurídica. SP: Revista dos Tribunais, 2011.

[12]. Esse tipo de modismo inútil de lançar nomes ao “Estado”, a exemplo do chamado “Estado Moderador”, só estimula a confusão conceitual e deve ser desde logo abandonado. Igualmente contrário a esse tipo de proposta, Canotilho aduz argumentos muito claros sobre os perigos desse modelo jurídico baseado em pragmatismo exacerbado. In verbis: “Os perigos deste esquema de decisão de conflitos têm sido salientados. Relativamente ao novo tipo de Estado – o ‘Estado ponderador’ – lança-se a acusação de ele se transformar num ‘Estado de compromisso’ que, em vez de manter firme o princípio da juridicidade estatal, recorre à ‘legalidade extrajurídica’. No que toca à jurisprudência – e isso é que releva para este trabalho – o modelo de ponderação é criticado por resvalar para a ‘legalidade pura do caso’ (Einzelfallgesetzlichkeit). Decisões como as do Tribunal Constitucional Alemão sobre a utilização de tropas fora da fronteira da Alemanha seriam um exemplo acabado da conversão do ideal ponderador em técnica do poder e um meio de transmutação do ‘facto em direito’. Acrescenta-se que a ponderação produz num enorme deficite de racionalidade e de legitimidade da justiça constitucional” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Jurisdição constitucional e intranquilidade discursiva. In: MIRANDA, Jorge (Org). Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Ed., 1996. v. 1, p. 885).

[13]. Hirschl, Ran. Towards juristocracy: The origins and consequences of the new constitutionalism. United States: Harvard, 2004.

[14]. Para um exame do ativismo judicial: Ramos, Elival da Silva. Parâmetros dogmáticos do ativismo judicial em matéria constitucional. São Paulo: USP, Tese de Titularidade, 2009.

[15] Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Concorrência como tema constitucional: política de Estado e de governo e o Estado como agente normativo e regulador. Revista do IBRAC – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, v. 19, Jan./ 2009. CALIENDO, Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 113.


HELENO TAVEIRA TORRES é advogado, professor e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP, e membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association.

Deu no conjur

A correta coloção do problema do método no Direito
POR RAFAEL TOMAZ DE OLIVEIRA
De um modo geral, é possível dizer que a polêmica sobre o método se apresenta como o cerne das discussões quando o assunto é filosofia ou ciência. [1] Com efeito, parecer ser um lugar comum imaginar que o conhecimento ou a técnica que se constitui sob o fio condutor de um rigoroso pensar metodológico são mais perfeitos do que aqueles que se manifestam de forma — até certo ponto — aleatória no âmbito do chamado senso comum.

A discussão sobre essa questão é infindável, tanto no que tange aos defensores do rigor metodológico quanto no âmbito daqueles que pretendem reconhecer maior dignidade ao chamado senso comum. Nós últimos séculos, a tendência cada vez mais frequente para a fragmentação do conhecimento, somada à enorme propulsão de técnicas científicas nos mais diversos campos do saber, fizeram com que o debate sobre o método pudesse ser encarado como uma espécie de polo unificador do discurso. Vale dizer, independente da área em que se situe o filósofo ou o cientista, a discussão sobre o método por meio do qual eles organizam seus conhecimentos ou suas técnicas representa uma preocupação comum.

No âmbito do Direito, essa situação pode ser facilmente visualizada. Não é de hoje que a proficiência do jurista sobre determinado ramo do Direito exige conhecimentos e técnicas específicas. Isso responde a diversos fatores que podem ser de modo genérico explicados pelo grau de complexidade da sociedade contemporânea, a exigir uma carga de regulamentação que atinge especificidades que antes ficavam fora do Direito, e pelo próprio desenvolvimento da disciplina jurídica em questão, que, no contexto atual, produz um volume imenso de publicações que acabam por contribuir para um endurecimento da linguagem, de modo que se torna cada vez mais difícil a visualização de um cabedal conceitual comum que abarque todo o “mundo jurídico”.

Daí que, no plano do ensino jurídico atual, é cada vez mais corriqueira a figura do especialista em Direito Tributário, Direito Constitucional ou em Direito Processual, por exemplo, que é aquela pessoa que domina as especificidades mais profundas de sua disciplina, mas que, ao mesmo tempo, tem dificuldades para lidar com questões que envolvem os fundamentos mais abrangentes do fenômeno jurídico. Vale dizer, torna-se cada vez mais complicada a instauração de uma via de acesso que apanhe o Direito em uma dimensão global, na perspectiva de uma Teoria Geral.

A discussão sobre o método possui, de algum modo, essa capacidade unificadora. Assim, nessa perspectiva — unificadora —, ela pode se apresentar, pelo menos, de duas maneiras distintas:

a) na configuração e explicitação de uma Teoria Geral do Direito que possibilite o acesso (conhecimento) ao fenômeno jurídico e sua explicação;

b) na constituição de uma dogmática do Direito ou, na expressão de Karl Larenz, de uma “ciência dogmática do Direito”, que possui como objeto a análise da apreciação judicial de casos, possibilitando, assim, uma série de recursos para a solução de questões jurídicas.[2]

No primeiro caso, intenciona-se a constituição de uma Ciência do Direito, compreendida como Teoria Geral. No segundo, a intencionalidade do jurista está direcionada para a “solução de questões jurídicas no contexto e com base em um ordenamento jurídico determinado”.[3]

A definição de método é complexa e pode sugerir certa gama de diferentes significados. Martin Heidegger, por exemplo, nos lembra que, etimologicamente, método é uma palavra de raiz grega e que significa “o caminho pelo qual sigo uma coisa”. [4] Em sentido similar, Friedrich Rapp afirma que “em seu sentido mais específico, por ‘método’ deve-se entender uma maneira consequente de proceder que se aplica para alcançar determinado fim”.[5]

A modernidade filosófica, principalmente pelas mãos de Descartes, alterou de forma radical o conceito de método de modo que, a partir de então, método é um termo que remete à ideia de certeza e segurança do conhecimento que se obtém através do emprego de certas estratégias de pensamento. Nesse âmbito de análise, há uma crença difusa de que, se respeitadas determinadas formas de organização do pensamento, o conhecimento obtido através dessas fórmulas é certo e indiscutível.

Outro ponto que causa complexidade na definição de método, diz respeito à diferença que existe entre método e metodologia. Com efeito, independentemente de se movimentar no interior de uma definição mais clássica ou numa definição mais moderna do termo método, este último sempre se refere a um conjunto de procedimentos específicos que foram utilizados pelo agente para consecução de um determinado desiderato. Já a metodologia refere-se a uma espécie de “discurso do método”. Novamente com Larenz, podemos afirmar que a “metodologia é uma reflexão da ciência sobre sua própria atividade”.[6] Ou seja, se o método diz respeito a um “dado método”, a um procedimento específico já utilizado pelo pesquisador, cientista, filósofo etc., a metodologia representa a teoria que se faz sobre o método.

Por exemplo: a realização de uma dedução lógica de enunciados dentro de um sistema axiomático-dedutivo representa a execução do chamado método dedutivo; a perspectiva de descrever situações particulares e, através delas, chegar a um conceito geral representa uma figuração do chamado método indutivo.

A descrição abstrata de todas essas estratégias metodológicas com a finalidade de se debater qual o melhor método a ser empregado para a solução de um determinado problema é que se chama de metodologia. A metodologia, como dito anteriormente, constitui-se em verdadeira teoria sobre o método.

Assim, é possível dizer que a metodologia jurídica constitui-se em um discurso sobre o método jurídico ou, ainda, em uma teoria sobre o método jurídico a ser utilizado para solucionar os casos judiciais tendo por base a interpretação de textos que compõem a estrutura normativa de uma determinada ordem jurídica.

A metodologia jurídica, porém, não se resolve a partir da simples aplicação de mecanismos dedutivos, indutivos, dialéticos etc. Essa disciplina reveste-se da peculiaridade de se manifestar com uma intenção normativa de base: deve fornecer os elementos necessários para a correta aplicação das normas jurídicas; da interpretação dos textos jurídicos aos casos submetidos à apreciação do Direito. Não é, portanto, uma simples estratégia de leitura de textos, sua compreensão e correta interpretação. Manifesta-se também com a perspectiva de elaboração de composições teóricas que determinem o papel desempenhado pelos casos concretos para a construção da solução normativa adequada.

Tradicionalmente, tende-se a tratar o problema do método jurídico colado à questão da interpretação e às regras daquilo que se chama de hermenêutica jurídica. Nestes casos, a metodologia representaria uma série de estratégias utilizadas pelo intérprete do Direito para atingir a correta significação do texto legal que possui como fiadores ora a vontade da lei, ora a vontade do legislador. Todavia, a questão do método jurídico é muito mais abrangente do que essa apresentação de simples técnica de interpretação de textos. Há uma intenção epistemológica que a envolve.

Nesse sentido, é possível identificar, novamente, pelo menos duas modalidades de pensamento metodológicos no âmbito do Direito:

a) uma de corte mais abstrato-filosófico, constituído a partir do declínio do jusnaturalismo moderno e da emergência do fenômeno da codificação que culminou com a edição do Code Civil francês de 1804 e do BGB alemão em 1900. Na senda desses acontecimentos, aparecem as posturas metodológicas cristalizadas na chamada escola da exegese francesa e na jurisprudência dos conceitos alemã;

b) uma segunda modalidade de pensamento metodológico apresenta uma característica mais sociológica, inspirada no movimento positivista que encontrou seu paroxismo na segunda metade do século XIX. São representativas desse modelo as escolas nomeadas como movimento do direito livre, Jurisprudência dos interesses e realismo jurídico.

De se consignar que, ao final da primeira metade do século XX, no período pós-guerra, houve uma retomada filosófica na metodologia jurídica consubstanciada, principalmente, na corrente chamada Jurisprudência dos valores.

A referência à filosofia e à sociologia remete-nos, aqui, à clássica oposição feita por Pontes de Miranda em seu Sistema de Ciência Positiva do Direito[7]. Para Pontes, as possibilidades de análise do “mundo jurídico” oscilavam sempre entre posturas racionalistas, historicistas ou daquilo que ele nomeava como “método científico do Direito”. As posturas racionalistas e historicistas estão identificadas — no modo como o jusfilósofo constrói seu argumento — com a filosofia, pois, no caso da primeira, a produção do conhecimento jurídico está ligada a modelos de pensamento que perquirem por formas jurídicas já sempre dadas à razão, como conceitos gerais e universais, sendo que a tarefa do jurista seria conhecer essa “generalidade universal” e deduzi-las aos fatos concretos.

O historicismo, por outro lado, apenas inverte a polaridade, dando ênfase ao caráter particular e singular da história dos povos como fator de composição do Direito. Pontes rejeita ambos os modelos de ciência do Direito e opta por uma terceira via, que ele nomeia como “método científico”, que teria, no contexto do que era produzido pelo movimento do direito livre e pela jurisprudência dos interesses, um forte colorido sociológico de base. [8] Neste caso, o Direito não seria encontrado nem em ideias inatas da razão, nem nas particularidades da história, mas nos próprios fatos sociais.

A definição deste “método científico” era defendida por Pontes de Miranda como uma exigência dos novos tempos para agregar ao conhecimento do direito maior rigor de investigação e de construção de sentenças. De se anotar que Pontes reconhecia poder criativo ao juiz — na linha, inclusive, do que era moda à época —, mas também apontava claramente para a necessidade de restrição desse “poder de criação”. Para ele, o modo de restringir esse espaço criativo era dado pela construção de um “rigoroso método científico” que, poderíamos acrescentar, possibilitasse maior objetividade para o conhecimento do Direito.

A discussão sobre o método jurídico é complexa e abrangente. Evidentemente, não é objetivo dessa coluna apreende-la em sua totalidade. Esse primeiro episódio procura expor um quadro geral da temática, com a finalidade de encetar uma discussão que deverá aparecer em mais duas oportunidades. Até aqui, me pautei em margens — por assim dizer — mais “descritivas”. Algumas questões ficaram propositalmente fora desta abordagem. Questões como a crítica ao método e a proliferação de uma certa perspectiva não-metodológica no campo do Direito, deverão aparecer nos próximos capítulos. No entanto, firmo aqui uma posição particular: a pesquisa jurídica, para avançar com algum rigor, gera para o pesquisador a necessidade de se desenvolver algo como uma “ciência de método”. Vale dizer, não basta oferecer uma resposta para um problema, é necessário que se conheça o caminho que foi percorrido para a construção desse resultado. [9]

[1] A discussão sobre o método, tanto no âmbito da filosofia como no campo das diversas ciências, foi objeto de exaustiva análise de muitos autores das mais diversas tradições teóricas e recortes argumentativos. Indico, aqui, algumas obras que, de um modo ou de outro, capilarizam os debates realizados: A Questão do Método na Filosofia, de Ernildo Stein (3. ed. Porto Alegre: Movimento, 1983, em especial capítulo II, n. 4, pp. 97-112); Introdução às Ciências Humanas, de Wilhelm Dilthey (Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, n. XII, pp. 68-74), que assume particular importância para a determinação do método no âmbito das chamadas ciências humanas ou do espírito (Geistwissenschaften), discurso no interior do qual está inserido o Direito; e A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn (8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003), para uma aproximação diferente, ligada às ciências duras, que acrescenta e desenvolve a noção de paradigma no âmbito científico.

[2] Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. XXI e XXII (prefácio).

[3] Idem, p. 1.

[4] Heidegger, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo – Finitude – Solidão. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, § 11, b), p. 47.

[5] Rapp, Friedrich. Método. In: Krings, Hermann; Baumgarten, Hans Michael; Wild, Christoph. Conceptos Fundamentales de Filosofia. Tomo II. Barcelona: Herder, 1978, p. 530.

[6] Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. XXI (prefácio).

[7] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Campinas: Bookseller, 2000.

[8] De se ressaltar que a interpretação que Pontes oferece sobre o movimento do direito livre discrepa da sua tradicional retratação como um movimento em favor do simples reconhecimento da “liberdade criativa do juiz” (o imbróglio sobre as “lacunas” do Direito) . Na verdade, nos termos formulados pelo jusfilósofo, o movimento do direito livre implicava liberdade de investigação no Direito, isto é, a institucionalização da possibilidade de investigar cientificamente o Direito, para além do dogmatismo ingênuo do conceitualismo alemão (jurisprudência dos conceitos), do exegetismo francês e do formalismo anglo-americano (vale lembrar que o movimento do direito livre, diferente das escolas metodológicas que possuíam clara identificação nacional, internacionalizou-se). Essa interpretação é corroborada, inclusive, pelo título do opúsculo que dá vida ao movimento: A luta pela ciência do direito (Der Kampf um die Rechtswissenschaft, opúsculo de Hermann Kantorowicz, publicado, na verdade, sob o pseudônimo Gnaeus Flavius), que indica, a toda evidência, seu caráter científico e não apenas jurisprudencial (Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Campinas: Bookseller, 2000, pp. 220 e segs. vol. II). Em última análise, o movimento do direito livre pretendia se apresentar – ressalvadas as inúmeras peculiaridades da época – como um ato de afirmação do desprendimento do Direito da Metafísica; de constituição verdadeira de uma Ciência do Direito.

[9] Dedico este texto a Georges Abboud e Henrique Garbellini Carnio. Muitas das ideias aqui levantadas surgiram em meio a nossa constante interlocução. Parte delas compõem um livro escrito em coautoria, que se encontra no prelo, chamado Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito.


RAFAEL TOMAZ DE OLIVEIRA é mestre e doutorando em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.