sábado, 27 de agosto de 2011

Esta velha angústia


FERNANDO PESSOA
( ÁLVARO DE CAMPOS )

Esta velha angústia, 
Esta angústia que trago há séculos em mim, 
Transbordou da vasilha, 
Em lágrimas, em grandes imaginações, 
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror, 
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. 
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida 
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! 
Se ao menos endoidecesse deveras! 
Mas não: é este estar entre, 
Este quase, 
Este poder ser que...,
Isto. Um internado num manicômio é, ao menos, alguém, 
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio. 
Estou doido a frio, 
Estou lúcido e louco, 
Estou alheio a tudo e igual a todos: 
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura 
Porque não são sonhos. 
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida! 
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! 
Que é do teu menino? Está maluco. 
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? 
Está maluco. 
Quem de quem fui? Está maluco.
Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! 
Por exemplo, por aquele manipanso 
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África. 
Era feiíssimo, era grotesco, 
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. 
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer — 
Júpiter, Jeová, a Humanidade — 
Qualquer serviria, 
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!

quarta-feira, 24 de agosto de 2011


Prazo de constituição do crédito tributário de que trata o artigo 173, II, do CTN, quando declarada sua nulidade por vício formal

http://jus.uol.com.br/revista/texto/19833
Publicado em 08/2011
INTRODUÇÃO
O artigo 173, II do Código Tributário Nacional – CTN é objeto de controvérsias na sua interpretação, tanto pelas Administrações Tributárias, como pelos contribuintes, no que se refere a esse novo prazo para constituição do crédito tributário que teve declarada a sua nulidade, por vício formal.
A questão reside no estabelecimento do dies a quo para o refazimento do crédito tributário. O dispositivo legal informa a partir da decisão definitiva. Mas a partir de quando ocorre a definitividade de uma decisão.
Este é o escopo do presente trabalho, que se debruçará a seguir sobre dispositivos legais e entendimentos doutrinários.

DESENVOLVIMENTO

Nos termos do artigo 156 do CTN, a decadência é uma das modalidades de extinção do crédito tributário. Decadência é a perda do direito de constituir o crédito tributário, após o transcurso de determinado lapso de tempo.
Prescreve o artigo 173 do CTN que o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após cinco anos corridos:
a) da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento;
b) do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;
c) da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.
Interessa à presente análise a última hipótese, a do artigo 173, II do CTN, quando o lançamento, por defeito formal, vier a ser declarado nulo pela autoridade administrativa ou judicial. Referido dispositivo, que impropriamente admite a interrupção do prazo decadencial, reza que tal prazo será contado da data em que se tornar irrecorrível aquela decisão.
Cabe ressaltar que a norma em exame encerra benefício ao Fisco, que foi quem errou na realização do lançamento declarado nulo.
Nessa seara, ensina o jurista Luciano Amaro [01]:
Cuida o art. 173, II, de situação particular; trata-se de hipótese em que tenha sido efetuado um lançamento com vício de forma, e este venha a ser "anulado" (ou melhor, declarado nulo, se tivermos presente que o vício de forma é causa de nulidade, e não de mera anulabilidade) por decisão (administrativa ou judicial) definitiva. Nesse caso, a autoridade administrativa tem novo prazo de cinco anos, contados da data em que se torne definitiva a referida decisão, para efetuar novo lançamento de forma correta. O dispositivo comete um dislate. De um lado, ele, a um só tempo, introduz, para o arrepio da doutrina, causa de interrupção e suspensão do prazo decadencial (suspensão porque o prazo não flui na pendência do processo em que se discute a nulidade do lançamento, e interrupção porque o prazo recomeça a correr do início e não da marca já atingida no momento em que ocorreu o lançamento nulo). De outro, o dispositivo é de uma irracionalidade gritante. Quando muito, o sujeito ativo poderia ter a devolução do prazo que faltava quando foi praticado o ato nulo. Ou seja, se faltava um ano para a consumação da decadência, e é realizado um lançamento nulo, admita-se até que, enquanto se discute esse lançamento, o prazo fique suspenso, mas, resolvida a pendenga formal, não faz nenhum sentido dar ao sujeito ativo um novo prazo de cinco anos, inteirinho, como "prêmio" por ter praticado um ato nulo.
Urge explanar acerca do que se considera como data em que se torna definitiva a decisão declaratória da nulidade do ato por vício formal. Primeiramente, há de se conceituar o que seja decisão definitiva (administrativa ou judicial).
Há entendimento equivocado de que a decisão só se torna definitiva, quando é dada a ciência ao sujeito passivo e não é mais passível de recurso.
Parecer haver, nessa linha de raciocínio, uma confusão entre os termos "decisão definitiva" e "crédito tributário definitivamente constituído". Este sim, para se tornar definitivo, precisa da ciência do sujeito passivo.
Não se está querendo aqui afirmar que a decisão declaratória de nulidade de lançamento não requer a cientificação do contribuinte. Essa ciência é necessária, para atendimento de um dos princípios norteadores da atividade da Administração Pública, qual seja, o princípio da publicidade dos seus atos.
Contudo, não é a ciência da decisão que a torna definitiva.
Na seara tributária, encontra-se menção à definitividade de decisão no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, ato normativo com força de lei que rege o processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União, cujo artigo 42 assim dispõe:
Art. 42. São definitivas as decisões:
I - de primeira instância esgotado o prazo para recurso voluntário sem que este tenha sido interposto;
II - de segunda instância de que não caiba recurso ou, se cabível, quando decorrido o prazo sem sua interposição;
III - de instância especial.
Parágrafo único. Serão também definitivas as decisões de primeira instância na parte que não for objeto de recurso voluntário ou não estiver sujeita a recurso de ofício.
O CTN também trata da matéria nos incisos IX e X do artigo 156, quando preceitua como espécies de modalidades de extinção do crédito tributário a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória; e a decisão judicial passada em julgado.
Sobre tais decisões, postula Macedo Oliveira [02]:
Art. 156, IX – Decisão administrativa definitiva é aquela, de primeira ou segunda instância, que não mais possa ser objeto de qualquer espécie de recurso (administrativo), a qual, se favorável ao sujeito passivo, faz morto o crédito tributário.
...
Art. 156, X – A última das causas extintivas do crédito tributário é a decisão judicial transita em julgado, i.e., aquela oriunda do Poder Judiciário para a qual a lei processual não preveja mais recurso oponível e, sobretudo, cujo comando tenha sido no sentido favorável ao contribuinte.
No campo judicial, há de se entender como decisão definitiva aquela que transitou em julgado, cujos efeitos se tornam imutáveis quando contra ela já não cabem mais recursos. Não é propriamente um efeito da sentença – efeitos são a condenação, a declaração e a constituição, com as conseqüências daí decorrentes – mas uma qualidade desses efeitos, qual seja, a imutabilidade. Na dinâmica do processo civil, há de se entender como data do trânsito em julgado a data da publicação da decisão irrecorrível ou o transcurso do prazo para interposição de recurso, sem que a parte o tenha feito.
A problemática exsurge da decisão administrativa que, diferentemente da decisão judicial, torna-se definitiva quando não é mais passível de recurso, a quem possa interessar o recurso, no caso apenas à Fazenda Pública. Inicia-se o prazo decadencial para refazimento do lançamento na data de sua prolação. Isto porque a ciência ao sujeito passivo da declaração da nulidade do ato por vício formal pode ser efetivada no mesmo momento em que se dá a ciência do segundo lançamento.
Ao ser prolatada a decisão declaratória objeto do presente estudo, e não sendo cabível recurso de ofício, torna-se ela definitiva. Para o sujeito passivo, operou-se a preclusão lógica de interpor qualquer medida recursal, por absoluta falta de interesse de agir, já que a declaração de nulidade do crédito tributário vem ao encontro de seus interesses.
Ao emitir a decisão, a Fazenda Pública já está cientificada, é óbvio. Contra ela corre o prazo recursal, se for o caso. Deve, portanto, dentro do prazo de 5 (cinco) anos, movimentar sua máquina fiscalizatória para o refazimento do lançamento, caso entenda cabível.
Com efeito, não é razoável que, prolatada uma decisão que declare a nulidade do lançamento efetuado, fique a Administração Pública, a seu bel prazer, com prazo eterno para cientificar o interessado. Por exemplo, de uma decisão prolatada em 01/10/2000, após transcorrido o prazo de 10 anos, a Fazenda Pública cientifica o contribuinte e, somente a partir desta, inicia-se o prazo de decadência do direito de efetuar novo lançamento.
Ter-se-ia afetada a segurança jurídica, visto que o sujeito passivo precisaria manter em sua guarda da documentação por prazo ilimitado para eventual defesa, aguardando a iniciativa da Fazenda Pública nas medidas preparatórias do lançamento.
Da mesma forma, outro princípio fulminado seria o da eficiência, pois deixar a cargo da Fazenda Pública a prática de ato de sua responsabilidade, sem prazo definido, seria pactuar com a omissão e inércia, revelando desinteresse público, haja vista que deixou de impulsionar o processo que se encontrava em seu poder para efetuar os procedimentos necessários à prática do novo lançamento.

CONCLUSÃO

A decisão administrativa torna-se definitiva quando não mais for objeto de recurso. A decisão favorável ao contribuinte, quanto à declaração de nulidade do lançamento por vício formal, não sendo caso de recurso de ofício, torna-se definitiva a partir da data de sua prolação, estabelecendo-se o dies a quo para refazimento do crédito tributário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008
GONÇALVES, Marcus Vinícius Rio. Novo Curso de Direito Processual Civil Vol. 2. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010
MACEDO OLIVEIRA, José Jayme de. Código Tributário Nacional Comentários, Doutrina e Jurisprudência, São Paulo: Saraiva, 1998
PAULSEN, Leandro et al. Direito Processual Tributário. Processo Administrativo Fiscal e Execução Fiscal à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 4ª ed., Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011

Notas

  1. Luciano Amaro, Direito Tributário Brasileiro, pp. 407-408.
  2. Macedo Oliveira, Código Tributário Nacional Comentários, Doutrina e Jurisprudência, pp. 436-437

Autor

  • auditora-fiscal da Receita Federal do Brasil, graduada em Ciências Econômicas com especialização em Direito Processual Tributário pela UNB e em Política e Técnica Tributária 2ª edição pelo Centro Interamericano de Administraciones Tributarias - CIAT

Informações sobre o texto

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT

GOMES, Maria do Socorro Costa. Prazo de constituição do crédito tributário de que trata o artigo 173, II, do CTN, quando declarada sua nulidade por vício formal. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2974, 23 ago. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/19833>. Acesso em: 24 ago. 2011.

terça-feira, 23 de agosto de 2011


RECURSO ESPECIAL Nº 1.051.270 - RS (2008/0089345-5)
 
RECORRENTE
:
BBV LEASING BRASIL S/A ARRENDAMENTO MERCANTIL
ADVOGADO
:
HENRIQUE HACKMANN E OUTRO(S)
RECORRIDO
:
MAURO EDUARDO DE ALMEIDA SILVA
ADVOGADO
:
JOSÉ ABEL LUIZ
 

 


RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. BBV Leasing Brasil S/A Arrendamento Mercantil ajuizou ação de reintegração de posse em face de Mauro Eduardo de Almeida Silva, ensejada por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil.
O Juízo de Direito da 5ª Vara Cível da comarca de Porto alegre, entendendo que o adiantamento do valor residual garantido (VRG) descaracterizaria o contrato de leasing, julgou improcedente o pedido de reintegração.
Inconformada, a instituição financeira interpôs apelação, que foi julgada prejudicada, com disposições de ofício (fls.113/121).
Interposto recurso especial, o e. Ministro Hélio Quaglia Barbosa cassou o aludido acórdão, determinando a devolução dos autos à justiça de origem para que fosse proferido novo julgamento.
Assim, julgada novamente a apelação da instituição financeira, a ela foi negado provimento, nos termos da seguinte ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ESPECIAL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. Atenta contra a boa-fé a reintegração do bem à arrendadora quando o contrato de arrendamento mercantil está substancialmente adimplido, já que importa em medida impositiva de lesão desproporcional ao consumidor. Inviabilidade do pedido. Apelação desprovida. (fl. 156)
_________________________


Inconformada, a instituição financeira interpôs recurso especial, arrimado na alínea "a" da norma constitucional autorizadora, no qual alega violação do art. 51 do CDC, bem como dos arts. 422, 394 e 475, todos do Código Civil, porquanto o devedor encontra-se em mora, razão pela qual a procedência da ação de reintegração de posse era medida que se impunha, nos termos da Lei 6.099/74.
Transcorrido em branco o prazo para contra-arrazoar, o apelo excepcional foi inadmitido (fls. 169), ascendendo os autos a esta Corte por força de decisão tomada no Ag 968.146/RS, de relatoria do Ministro Hélio Quaglia Barbosa (fls. 189).
É o relatório.

 



RECURSO ESPECIAL Nº 1.051.270 - RS (2008/0089345-5)
 
RELATOR
:
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE
:
BBV LEASING BRASIL S/A ARRENDAMENTO MERCANTIL
ADVOGADO
:
HENRIQUE HACKMANN E OUTRO(S)
RECORRIDO
:
MAURO EDUARDO DE ALMEIDA SILVA
ADVOGADO
:
JOSÉ ABEL LUIZ
 
 

EMENTA
DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL.
1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos".
2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato.
3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença.
4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.
5. Recurso especial não conhecido.

 

 VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. A irresignação não colhe êxito.
Diante da crescente publicização do direito privado, o contrato deixou de ser a máxima expressão da autonomia da vontade para se tornar prática social de especial importância, prática essa que o Estado não pode simplesmente relegar à esfera das deliberações particulares. Instituto nascido no âmbito do Direito Privado, o contrato passou a ter colorido publicístico, exigindo do julgador a aplicação, no caso concreto, das chamadas cláusulas abertas, dentre as quais se destacam a boa-fé-objetiva e a função social. Vale dizer, não se pode mais conceber o contrato unicamente como meio de circulação de riquezas. Além disso - e principalmente -, é forma de adequação e realização social da pessoa humana e meio de acesso a bens e serviços que lhe dão dignidade.
Sobre as cláusulas gerais - marca identificadora do Código Civil de 2002 -, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery destacam que:
A cláusula geral da função social do contrato é decorrência lógica do princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma sociedade mais justa. (...) As várias vertentes constitucionais estão interligadas, de modo que não se pode conceber o contrato apenas do ponto de vista econômico, olvidando-se de sua função social. A cláusula geral da função social do contrato tem magnitude constitucional e não apenas civilista (Código Civil Comentado, p. 447, 5ª edição. Ed. Revistas dos Tribunais).
_________________________


Com efeito, é pela lente das cláusulas gerais previstas no Código, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos".
Nesse passo, a faculdade que o credor tem de simplesmente resolver o contrato, diante do inadimplemento do devedor, deve ser reconhecida com cautela, sobretudo quando evidente o desequilíbrio financeiro entre as partes contratantes, como no caso dos autos. Deve o julgador ponderar quão grave foi o inadimplemento a ponto de justificar a resolução da avença.
Como bem assevera Athos Gusmão Carneiro, em um sistema de resolução judiciária dos contratos, a apreciação valorativa do inadimplemento contratual é alicerçada na análise global do contrato inexecutado, inclusive de sua natureza, e na consideração do comportamento total dos contraentes, desde o início da avença. Assim, ante eventual adimplemento limitado ou inexato, a decisão judicial, ou pela resolução da avença ou pela simples condenação em perdas e danos, dependerá de uma avaliação da "repercussão do incumprimento no equilíbrio sinalagmático do contrato" (Inadimplemento Contratual Grave - Discricionariedade do Juiz. In. Revista de Processo. Ano 20. Abril-Junho de 1.995, n. 78).
Vale dizer que, para a resolução do contrato pela via judicial, há de se considerar não só a inadimplência em si, mas também o adimplemento da avença durante a normalidade contratual. A partir desse cotejo entre adimplemento e inadimplemento é que deve o juiz aferir a legitimidade da resolução do contrato, de modo a realizar, por outro lado, os princípios da função social e da boa-fé objetiva.
Assim, a insuficiência obrigacional poderá ser relativizada com vistas à preservação da relevância social do contrato e da boa-fé, desde que a resolução do contrato não responda satisfatoriamente a esses princípios. Essa é a essência da doutrina do adimplemento substancial do contrato.
No direito comparado, essa teoria é amplamente aceita.
O art. 1.455 do Código Civil italiano, por exemplo, proclama que "o contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes tem escassa importância, resguardado o interesse da outra parte". Regra análoga é encontrada no art. 802, n. 2, do Código Civil português de 1966: "o credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância".
É de se notar, portanto, que a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença quando viável e for de interesse dos contraentes. Ou, como aduz Jones Figueiredo Alves, "o suporte fático que orienta a doutrina do adimplemento substancial, como fator desconstrutivo do direito de resolução do contrato por inexecução obrigacional, é o incumprimento insignificante" (Adimplemento Substancial como Elemento Decisivo à Preservação do Contrato. In. Revista Jurídica Consulex. Ano XI, n. 240, Janeiro de 2007).
3. No caso em apreço, afigura-se-me cabível a aplicação da teoria do adimplemento substancial dos contratos.
Colhe-se do acórdão recorrido que o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido".
Entendo que o mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil.
Diante do substancial adimplemento do contrato, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé-objetiva. A regra que permite a reintegração de posse em caso de mora do devedor - e consequentemente a resolução do contrato -, no caso dos autos, deve sucumbir diante dos aludidos princípios.
Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002.
Pode, certamente, o autor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.
Esta Corte já manifestou entendimento semelhante nos precedentes abaixo transcritos:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso.
Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela.
Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse.
Recurso não conhecido.
(REsp 272.739/MG, Rel. Ministro  RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 01.03.2001, DJ 02.04.2001 p. 299).
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ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Deferimento liminar. Adimplemento substancial.
Não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora.
Recurso não conhecido.
(REsp 469.577/SC, Rel. Ministro  RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 25/03/2003, DJ 05/05/2003 p. 310).
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Também a Primeira Seção deste Tribunal tem aplicado a teoria do substancial adimplemento do contrato no âmbito dos contratos administrativos, verbis:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 87 DA LEI N. 8.666/93.
1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau assim ementado (fl. 186): DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666/93. MANDADO DE SEGURANÇA. RAZOABILIDADE.
1. Cuida-se de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade militar que aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em licitação devido ao atraso no cumprimento da prestação de fornecer os produtos contratados.
2. O art. 87, da Lei nº 8.666/93, não estabelece critérios claros e objetivos acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mas por óbvio existe uma gradação acerca das penalidades previstas nos quatro incisos do dispositivo legal.
3. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual.
4. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87, da Lei nº 8.666/93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade, adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade.
5. Apelação e Remessa necessária conhecidas e improvidas.
2. Aplicação do princípio da razoabilidade. Inexistência de demonstração de prejuízo para a Administração pelo atraso na entrega do objeto contratado.
3. Aceitação implícita da Administração Pública ao receber parte da mercadoria com atraso, sem lançar nenhum protesto.
4.  Contrato para o fornecimento de 48.000 fogareiros, no valor de R$ 46.080,00 com entrega prevista em 30 dias. Cumprimento integral do contrato de forma parcelada em 60 e 150 dias, com informação prévia à Administração Pública das dificuldades enfrentadas em face de problemas de mercado.
5. Nenhuma demonstração de insatisfação e de prejuízo por parte da Administração.
6. Recurso especial não-provido, confirmando-se o acórdão que afastou a pena de suspensão temporária de participação em licitação e impedimentos de contratar com o Ministério da Marinha, pelo prazo de 6 (seis) meses.
(REsp 914.087/RJ, Rel. Ministro  JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/10/2007, DJ 29/10/2007 p. 190).
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Sobre o tema, também foi aprovado o enunciado n. 361, na IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, que assim dispõe:



Arts. 421, 422 e 475: O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.


4. Diante do exposto, não conheço do recurso especial.
É como voto.