segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Poema em linha reta

Fernando Pessoa

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


sexta-feira, 1 de abril de 2016


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE TECNOLOGIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – DTCS – CAMPUS III
COLEGIADO DE DIREITO
CURSO DE DIREITO
DISCIPLINA: DIREITO TRIBUTÁRIO I
DOCENTE: LUIZ ANTONIO COSTA DE SANTANA
ALUNO_____________________________________________________________

Observações: A prova deverá ser entrega no horário da aula do dia 02/04/2016, manuscrita e legível.


1a avaliação de Direito Tributário I


1a Questão

Dino Buzzati, a nosso sentir, melhor demonstra a desgraça que é a prevalência da forma sobre a substância: O autor italiano nos conta, em seu precioso e clássico “O Deserto dos Tártaros”, que fora avistado um cavalo a uma certa distância do forte. O soldado Giuseppe Lazzari pensou se tratar de Fiocco, seu cavalo. Malgrado não ter sido autorizado a ir buscar o cavalo, sorrateiramente se dirigiu às muralhas para capturar o animal.
Percebeu que o cavalo não era o seu. Mesmo assim, resolveu voltar ao forte com o quadrúpede (livre tradução):
“A sentinela endireitou-se, olhou de novo à sua frente, viu que as duas sombras não eram sonho, já se encontravam próximas, a uns setenta metros: exatamente um soldado e um cavalo. Então sobraçou o fuzil, preparou o cão para o disparo, enrijeceu-se no gesto repetido centenas de vezes  durante a instrução. Depois gritou: - Quem vem lá, quem vem lá?
Lazzari era soldado novo, não pensava nem de longe que sem a palavra de ordem seria impossível entrar. No máximo, temia uma punição por ter-se afastado sem permissão; mas, quem sabe, talvez o coronel o perdoaria por causa do cavalo recuperado; (...)
- Quem vem lá, quem vem lá? – uma vez mais e depois deveria disparar. (...)
- Sou eu, Lazzari! – gritou. – Mande o chefe do posto de guarda abrir! Peguei o cavalo! E não faça estardalhaço senão me metem atrás das grades!
A sentinela não se mexeu. Com o fuzil preparado, permanecia parada, tentando retardar ao máximo o terceiro ‘quem vem lá’. (...)
- Quem vem lá, quem vem lá? – gritou pela terceira vez a sentinela e na voz estava subentendida como que uma advertência pessoal e anti-regulamentar. Queria dizer: volte atrás enquanto é tempo, quer morrer?
E finalmente Lazzari entendeu, lembrou num lampejo as duras leis do forte, sentiu-se perdido.
Mas em vez de fugir, sabe-se lá por que, largou as rédeas do cavalo e adiantou-se sozinho, invocando com voz aguda:
- Sou eu, Lazzari! Não está vendo? Moretto, ô Moretto! Sou eu! Mas o que está fazendo com o fuzil? Ficou Louco, Moretto?
Mas a sentinela não era mais Moretto, era simplesmente um soldado com as feições endurecidas que agora erguia lentamente o fuzil, fazendo pontaria contra o amigo. Apoiou a espingarda no ombro e olhou de soslaio para o sargento-mor, invocando silenciosamente um sinal para suspender. (...)
- Sou eu, Lazzari! – gritava. – Não está vendo que sou eu? Não atire, Moretto!
Mas a sentinela não era mais Moretto com quem todos os colegas brincavam à vontade, era apenas uma sentinela do forte, em uniforme de pano azul-escuro com a bandeirola de couro curtido, absolutamente idêntica a todas as demais à noite, uma sentinela qualquer que fez pontaria e agora apertava o gatilho. (...)
Agora que o dever fora cumprido, a sentinela pôs o fuzil no chão, debruçou-se no pára-peito, olhou para baixo, esperando não ter acertado. E no escuro parecia-lhe de fato que Lazzari não havia caído.
Não, Lazzari estava ainda de pé, e o cavalo se aproximara dele. Depois, no silêncio deixado pelo tiro, ouviu-se sua voz, num tom desesperado:
- Ô Moretto, você me matou!
Dito isso, Lazzari desabou lentamente para a frente. (...)[1]” (destaquei).

Pergunta: Com base no texto e as discussões efetuada em aula, estabeleça um paralelo entre razoabilidade e proporcionalidade. (3,0 pontos).

2a Questão

“O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara:
Pareceu-lhe uma boca banguela.
E eu menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem
Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara
Em que se passara passa passará o raro pesadelo
Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e o amaro
(...)” (destaquei).
O estrangeiro, Caetano Veloso.

Pergunta: Com base no trecho da canção e as discussões travadas em aula, estabeleça a distinção entre texto e norma e eventual paradoxo existente na possibilidade de várias respostas corretas no Direito. (3,0 pontos).


3a Questão
Aureliano Buendia[2], prefeito de Macondo[3], assumiu a gestão municipal encontrando um quadro de dívidas para com diversos credores. Com o credor A encontrou um débito empenhado e liquidado, mas sem o instrumento de contrato. Com o credor B, a dívida estava empenhada e liquidada, mas não foi encontrado o objeto da compra (um computador).

Você, nomeado Procurador Geral de Macondo, emita parecer jurídico solucionando o caso. (4,0 pontos).






[1] BUZZATI, Dino. IL DESERTO DEI TARTARI. Copyright 1945 Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., Milano, Capítulo XII, 101-104. No original:
“La sentinella si riscosse, guardò ancora dinanzi a sé vide che le due ombre  non erano un sogno,  si trovavano oramai vicine,  saranno stati appena settanta metri: esattamente un soldato  e  un  cavallo.  Allora imbracciò il fucile, preparò il cane allo sparo, si irrigidì nel gesto ripetuto centinaia di volte all'istruzione. Poi gridò: ‘Chi va là, chi va là?’.
Il Lazzari era soldato da poco tempo, non pensava neppure lontanamente che senza la parola d'ordine non sarebbe potuto rientrare. Tutt'al più temeva  una  punizione  per  essersi  allontanato  senza permesso;  ma chissà,  forse il colonnello l'avrebbe perdonato per via  del  cavallo recuperato; (...)
‘Chi va là, chi va là?" ripeté la sentinella. Ancora una volta e poi avrebbe dovuto sparare.
‘Sono io, Lazzari!’ gridò. ‘Manda il capoposto ad aprirmi! ho preso il cavallo! E non farti accorgere se no mi ficcano dentro!’
La sentinella non  si  mosse.  Con il fucile imbracciato se ne stava ferma, cercando di ritardare al possibile il terzo ‘chivalà’. (...)
‘Chi va là, chi va là?" gridò la terza volta la  sentinella  e  nella voce    c'era    sottinteso    come    un   avvertimento   privato   e antiregolamentare. Voleva dire: ‘Torna indietro fino  a  che  sei  in tempo; vuoi farti ammazzare?’
E  finalmente  il  Lazzari capì,  si ricordò in un lampo le dure leggi della Fortezza, si sentì perduto.
Ma invece di fuggire, chissà perché, lasciò le briglie del cavallo e si fece avanti da solo,  invocando con     voce acuta:
‘Sono io,  Lazzari!  Non mi vedi?  Moretto, o Moretto! Sono io! Ma che cosa fai con il fucile? Sei matto, Moretto?’
Ma la sentinella non era più Moretto, era semplicemente un soldato con la faccia dura che adesso alzava lentamente il fucile,  mirando contro l'amico.  Aveva  appoggiato  lo  schioppo  alla  spalla  e con la coda     dell'occhio sbirciò il sergente maggiore, invocando silenziosamente un cenno di lasciar stare. (...)
‘Sono io,  Lazzari!’ gridava. ‘Non vedi che sono io? Non sparare, Moretto!’
Ma la sentinella non era più il  Moretto  con  cui  tutti  i  camerati scherzavano  liberamente,  era soltanto una sentinella della Fortezza, in uniforme di panno azzurro scuro con la  bandoliera  di  mascarizzo,    assolutamente  identica  a tutte le altre nella notte,  una sentinella qualsiasi che aveva mirato ed ora premeva il grilletto. (...)
Ora che il dovere era fatto,  la sentinella mise il fucile a terra, si sporse dal parapetto,  guardò in giù sperando di non avere colpito.  E nel buio gli parve infatti che il Lazzari non fosse caduto.
No,  il  Lazzari  era  ancora in piedi,  e il cavallo gli si era fatto vicino.  Poi,  nel silenzio lasciato dallo sparo,  si udì la sua voce, con che disperato suono:
‘Oh Moretto, mi hai ammazzato!’.
Questo  il  Lazzari disse e si afflosciò lentamente in avanti. (...)”.
[2] Um dos personagens da obra Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques.
[3] Cidade ficticia da obra Cem anos de solidao, de Gabriel Garcia Marques.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Consultor Jurídico

DIÁRIO DE CLASSE

Umberto Eco e o desrespeito ao texto nas superinterpretações do Supremo

27 de fevereiro de 2016, 8h00

Por 

Umberto Eco (1932-2016) despediu-se de nós dois dias após o Supremo Tribunal Federal ter modificado seu entendimento sobre o princípio constitucional da ampla defesa, passando a admitir a execução provisória da pena após decisão condenatória de segundo grau, à revelia do disposto expressamente no texto constitucional.

Reconhecido mundialmente, sobretudo após a publicação do romance O Nome da Rosa (1980), obra traduzida para mais de 40 línguas e adaptada para o cinema, além de renomado escritor, Eco foi um importante teórico — no caso, filósofo e semioticista —, cuja leitura se mostra cada vez mais imprescindível para os juristas, especialmente nos últimos dias.

Tento explicar, rapidamente, o porquê.

Em Obra Aberta, publicada nos anos 1960, Eco sustentava o papel ativo do leitor na interpretação de textos escritos, comunicações orais, manifestações artísticas etc. No entanto, três décadas mais tarde, em Interpretação e Superinterpretação, o mesmo Eco discute os exageros dos intérpretes, destacando serem os excessos por eles cometidos os verdadeiros responsáveis pelas más interpretações.

Essa mesma ideia também está presente em Os Limites da Interpretação, onde Eco resgata o valor do texto. Para ele, a possibilidade de um mesmo texto comportar diversas interpretações, em razão de sua plurivocidade, não significa, de maneira nenhuma, que desse mesmo texto se possa fazer qualquer interpretação. Algumas interpretações são manifestamente equivocadas, não podendo prevalecer por violarem a materialidade do próprio texto: “Frequentemente os textos dizem mais do que o que seus autores pretendiam dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes gostariam que eles dissessem” (Eco, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 81).

É preciso, portanto, respeitar o texto. Há critérios para limitar — e controlar — a interpretação. Aqui reside a importância da hermenêutica filosófica. Como alerta Eco, “existe um sentido dos textos, ou melhor, existem muitos, mas não se pode dizer que não exista nenhum ou que todos sejam igualmente bons. Falar dos limites da interpretação significa apelar para um modus, ou seja, para uma medida” (1995, p. 34).

Se, num primeiro momento, Eco privilegiou a autoridade do leitor — e, aqui, ele cita a maliciosa sugestão de Todorov: “Um texto não passa de um piquenique em que o autor traz as palavras e os leitores o sentido” —, contribuindo para certa arrogância do leitor, que assumiu um papel ativo demais na atribuição livre de sentidos; num segundo momento, Eco preocupa-se com os limites que o texto impõe à atividade interpretativa: entre a inacessível intenção do autor (intentio auctoris), muito difícil de se descobrir, além de irrelevante para a compreensão, e a discutível intenção do leitor (intentio lectoris), que desbasta o texto até atingir uma forma que sirva a seu propósito, existe a intenção do texto (intentio operis), que refuta interpretações absurdas e insustentáveis.

A conclusão aponta para um processo intersubjetivo de cooperação entre o leitor, o autor e o (con)texto, que ocupa a centralidade dessa interação dialética. Isso porque o leitor sempre se encontra com o texto por meio de sua manifestação linear. Sua interpretação, entretanto, sempre dependerá do horizonte de sentido e de expectativas do leitor. Ocorre que, para além disso, há uma enciclopédia cultural que abarca não apenas a língua e seu funcionamento, mas também o registro de todas as interpretações anteriores desse mesmo texto, isto é, a tradição conformada por determinada comunidade de leitores, uma vez que um texto sempre remeterá a outro texto, que remeterá a outro texto, e assim por diante. E isso não pode, jamais, ser ignorado, ao menos quando se busca uma interpretação adequada.

Assim, a superinterpretação — sempre mais polêmica porque exagerada — seria uma leitura inadequada de um texto. Ela caracteriza-se pela imposição da vontade do leitor, que desrespeita a intenção do texto, ao violar a sua coerência ou, então, ultrapassar seus limites semânticos, apoderando-se de seu sentido.

Eis, aqui, apenas um exemplo do legado teórico de Umberto Eco. Que suas lições ecoem na comunidade jurídica, especialmente no Supremo, que tem insistindo em superinterpretar a malsinada Constituição.

André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional (IMED/RS) e da Faculdade Guanambi (FG/BA), e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 27 de fevereiro de 2016, 8h00

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A necessidade de respeito ao princípio da legalidade na delação premiada

19 de janeiro de 2016, 20h02
Por  e 
“... O Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço de sua impunidade para “fazer Justiça” o que o Direito Penal repugna desde os tempos de Beccaria...” [1]
Na sociedade civil, seguramente há quem pense tratar-se a delação premiada de um instituto novo. Ledo e rematado engano[2][3]. Cuida-se de vetusto e antigo meio de prova, questionável por diversos vieses[4]. No presente texto, não nos dedicaremos à análise de qualquer outro aspecto das delações que não seja o da estrita e mera legalidade, notadamente em relação às repercussões jurídicas da delação. De fato, muitos se questionam como seria possível ao estado juiz aplicar penas de dezenas de anos em regime de prisão domiciliar, como tem ocorrido no âmbito da tal investigação[5].
Diga-se ao leitor que este não pretende ser um artigo científico, acadêmico. A finalidade é trazer esclarecimentos a respeito de um instituto tão debatido e em voga. Somente isso. Explicar, para qualquer pessoa, de qualquer área, quais são as consequências da delação premiada no Brasil e evidenciar que, decisivamente, a operação "lava jato" está em descompasso com a legalidade.
O leitor deve ser advertido que a regra básica do Direito Penal é o princípio da legalidade. A legalidade é o início e o fim do ordenamento jurídico. Isso ocorre para evitar abuso por parte do estado, tiranias em nome da busca da Justiça. Por um lado, é necessário proteger bens jurídicos e a própria sociedade, de outra banda, necessário se faz evitar que o investigado, ou mesmo condenado, seja vítima do totalitarismo do Estado. Como adverte Hassemer: “A lei não é, para o afetado, apenas o fundamento de sua condenação, mas também a proteção contra o excesso, a garantia da proporcionalidade e do controle”[6]. Antes da adoção do princípio da legalidade, os jurisdicionados, as pessoas, ficavam ao bel prazer daqueles que diziam o direito julgar como quisessem. A legalidade é, dita de forma bem singela e simples, ao mesmo tempo, uma proteção para o Estado e para as pessoas.
Diga-se ainda ao leitor (informação que pode ser confirmada com qualquer pessoa da área) que as normas penais são cogentes, ou seja, não podem ser alteradas pela vontade das partes, nem mesmo em acordo feito com o Ministério Público (que, antes de acusador deve ser fiscal da lei) e homologado pelo Judiciário.
Com essa colocação introdutória, caro leitor (repita-se que você pode confirmar isso com qualquer estudante de Direito Penal), saiba de duas coisas: a legalidade rege os pressupostos de todos os institutos do Direito Penal, bem como rege todas as suas consequências, em todo e qualquer caso.
Pois bem. No âmbito da tal operação, tem sido relativamente frequente ver penas elevadíssimas, altíssimas, aplicadas em regime de prisão domiciliar, ao fundamento de que se trata de um réu delator. Consoante se verá ao longo deste texto, tais conclusões são manifesta e absurdamente ilegais, de nada adiantando falar que “a lei precisa de alguns ajustes”[7]. Efetivamente, ao regrar as consequências para o réu delator, o caput do artigo 4° da Lei 12.850/2013, trata, in verbis:
Art. 4°. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
Primeiramente, advirta-se que ao dizer que o juiz poderá, em verdade, impõe-se ao magistrado um dever. Trata-se, pois, de um poder-dever. Preenchidos os requisitos, a concessão é obrigatória. A lei é de clareza solar e somente permite uma de três alternativas: 1) aplicação de perdão judicial; 2) redução de pena de um a dois terços; 3) substituição por penas alternativas (obviamente, respeitadas todas as regras de substituição).
Se as delações premiadas existem, o que se espera, minimamente, é que sejam feitas de acordo com a lei. Vale lembrar que o Direito Penal é pautado na noção de legalidade estrita. Jamais se poderá viver um Direito Penal em que a legalidade estrita ceda lugar à legalidade da emergência/conveniência. 
Para que não paire qualquer dúvida, há de se dizer que a prisão domiciliar, no Brasil, somente é cabível nas seguintes hipóteses: O artigo 117 da Lei de Execuções Penais prevê que "somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I — condenado maior de 70 (setenta) anos; II — condenado acometido de doença grave; III — condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV — condenada gestante".
Já no Código de Processo Penal, a prisão domiciliar é tratada no artigo 318 como uma das hipóteses de substituição de prisão preventiva (de natureza processual, portanto, inaplicável a quem já foi condenado). No Código de Processo Penal, a prisão domiciliar tem lugar quando: "Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (redação dada pela Lei 12.403, de 2011); I — maior de 80 (oitenta) anos; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); II — extremamente debilitado por motivo de doença grave; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); III — imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; (incluído pela Lei 12.403, de 2011); IV — gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. (incluído pela Lei 12.403, de 2011). Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo. (Incluído pela Lei 12.403, de 2011)".
Ou seja, caro leitor, como no Direito Penal todos os institutos devem ser sevos à lei, somente se aplica prisão domiciliar nas hipóteses retromencionadas, onde não se leu hipótese de aplicação ao réu delator.
Assim, leitor, goste-se ou não, você já concluiu que não é possível legalmente aplicar penas de dezenas de anos em regime de prisão domiciliar. Essas penas são, pois, absurdamente ilegais.
Tenta-se, com os acordos de delação premiada, modificar-se a ordem jurídica e os procedimentos (garantias) existentes no ordenamento pátrio. Por evidente, não pode ficar a critério do juízo, a escolha do regime de cumprimento da pena. Critérios existem para serem obedecidos, não cabendo ao Judiciário a perigosa e inconstitucional função de legislar positivamente.
Pois bem.
O acordo de delação premiada — ou colaboração, como eufemisticamente prevê a Lei 12850 — possui consequências, definidas na própria lei de organização criminosa. Questiona-se: qual a dificuldade de se conceder o perdão judicial ou mesmo reduzir/substituir as penas?
Por outro lado, a legalidade estrita é malferida, ao passo em que se aplicam regimes de cumprimento de pena inexistentes, chegando-se à aberrante condenação em dezenas de anos e a concessão de prisão domiciliar. A sociedade civil não pode se esquecer de todo e qualquer juiz ou presentante ministerial deve respeito às leis do país. E não é por outro motivo que o Código Penal começa, justamente no artigo primeiro, tratando do princípio da legalidade.
Mas por que tais aberrações e ilegalidades vêm acontecendo?
No âmbito da tal operação, vê-se um invulgar e incomum preocupação com a opinião pública. Relativamente frequente, nas decisões relacionadas à tal operação, haver a menção a “propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da administração pública e da própria Justiça criminal”.
A sociedade civil, então, precisa começar a perguntar: por que não se concedeu perdão judicial? Por que não se aplicaram as penas e depois as mesmas foram reduzidas, aplicando a diminuição em até dois terços? Por que um condenado a dezenas de anos de prisão ficará em regime de prisão domiciliar, nunca sendo demais sublinhar que há a possibilidade, ao menos em hipótese, de um delator voltar a delinquir...
A resposta é elementar...
Por um lado, possivelmente, os adeptos do tal garantismo penal integral não aceitariam que um delator ficasse sem pena, porque isso representaria uma “proteção insuficiente de bens jurídicos”. De mais a mais, a tal opinião pública não compreenderia como um delator premiado sairia com perdão judicial — causa extintiva de punibilidade, em decisão declaratória da extinção de responsabilidade criminal. Dito de forma mais clara e direta: perdão judicial seria colocar fim a qualquer tipo de responsabilidade criminal. A lei prevê isso. E, como se deve observância às leis, era uma alternativa viável, que, seguramente, não atenderia aos anseios punitivistas da maioria das pessoas.
De outra banda, o que adiantaria a um delator, condenado a dezenas de anos de prisão, ter sua pena reduzida em dois terços se isso, ao fim e ao cabo, o levaria para a prisão em regime fechado, de todo jeito. O leitor imagina, em são consciência, que alguém delataria para assumir uma pena de, por exemplo, dez anos em regime inicial fechado? Seguramente que não. A alternativa seria um desestímulo para as delações e aí... Já viu.... Ninguém delataria mais....
Qual a alternativa, então: legislar no caso concreto — e sobre isso há um eloquente e ensurdecedor silêncio do Ministério Público e também da Ordem dos Advogados do Brasil. Criou-se um remendo maldito, uma forma de manter um apelo aos desejos de delação sem que se cumpra a lei.
E qual será a consequência jurídica de tais ilegalidades para a investigação?
Bem, isso, o tempo demonstrará. Mas se as pessoas disseram o que disseram com a promessa de um prêmio ilegal — o que se imagina possa ter ocorrido, certo é que a delação não pode ser mantida. Não se pode manter um instituto quando a consequência prometida é uma ilegalidade manifesta.
Mas isso é assunto para outro texto...


[1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Ob. Cit. p. 59.
[2] Lembre-se, por oportuno, que a colaboração entre Estado e criminosos é antiga, remonta à época em que os piratas repartiam o butim com as coroas que os custeavam. Não há grande diferença entre isto e a delação premiada, pois ambas são francamente inadmissíveis. Sobre a referência histórica, ver MINGARDI, Guaracy. O que é crime organizado: uma definição das ciências sociais. In Revista do ILANUD  n.º 8.
[3]“... A impunidade dos agentes encobertos e dos chamados arrependidos constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado Democrático de Direito: o Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade..” ZAFFARONI, Eugênio. Ob. Cit. p. 59
[4] Somente por compromisso acadêmico, consigne-se que o primeiro autor deste texto foi membro da comissão de reforma do Código Penal (PLS 236), tendo votado favoravelmente à adoção da delação premiada somente para o crime de extorsão mediante sequestro.
[6] HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: SAFE, 2005. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da Silva, p. 268.
[7] O ajuste de uma norma penal somente pode ser feito por legisladores.
Gamil Föppel El Hireche é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.
Pedro Ravel Freitas Santos é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).

Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2016, 20h02

sábado, 7 de novembro de 2015

Características da segurança jurídica no Brasil
22 de junho de 2013, 8h01

Por Marco Túlio Reis Magalhães

Costuma-se dizer que a segurança jurídica é um princípio essencial (e inerente) ao Estado de Direito e que sua configuração depende de cada contexto histórico. De fato, a doutrina acentua a relevância ímpar da segurança jurídica em conexão com as experiências do Estado de Direito e com a realização da própria ideia de justiça material.[1] Sua relação com o princípio da legalidade é sempre revisitada, em termos históricos, relembrando a ideia central para o Estado de Direito de um governo de leis e não de homens.[2]

Costuma-se afirmar, ainda, que toda a construção constitucional liberal tem em vista a certeza do Direito, pois necessitava-se de segurança para proteger o sistema da liberdade codificada do direito privado burguês e da economia de mercado. Desde cedo, o princípio geral da segurança jurídica (e sua dimensão de proteção da confiança dos cidadãos) se colocou como elemento constitutivo do Estado de Direito, exigível a qualquer ato de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário). Vincula-se à garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito, bem como à garantia de previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos do poder público. O que exigiria, no fundo, seria o seguinte: 1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos de poder; 2) de forma que, em relação a eles, o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos de seus próprios atos.[3]

De maneira geral, sempre se acentuou a função de certeza do Direito, de capacidade de controlar a insegurança, de previsibilidade e estabilidade temporal das regras jurídicas, de busca de unidade do ordenamento e preocupação com sua eficácia. Mas a crescente complexidade e o desenvolvimento das relações sociais e jurídicas permitem observar a ampliação do foco de observação da segurança jurídica, a considerar também como elementos centrais a efetividade de direitos fundamentais e a proteção das expectativas de confiança legítima. Por isso, faz-se necessário um exame crítico de cada ordenamento jurídico e de suas influências, o que requer cautela com as aproximações feitas a partir do Direito Comparado.[4]

Afinal de contas, como relembra Humberto Ávila, a segurança jurídica não tem como ser investigada se não por meio de uma perspectiva analítica capaz de reduzir a ambiguidade e a vagueza dos seus elementos constitutivos e de indicar os seus aspectos: material (qual conteúdo da segurança jurídica?), subjetivo (quem são os sujeitos da segurança?), objetivo (segurança do quê?), temporal (segurança jurídica quando?), quantitativo (em que medida?), justificativo (para quê e por quê?). Daí por que ele afirma ser imprescindível olhar para um determinado ordenamento jurídico, para sua superestrutura (o conjunto) e para sua estrutura constitucional (as partes), a fim de esclarecer as possíveis acepções, dentre aquelas analiticamente discerníveis, que se podem identificar.[5]

Contudo, dado o caráter hercúleo de desvendar todos esses mistérios, nem se cogita assumir aqui essa tarefa. Pelo contrário, o que se quer é apenas ressaltar alguns aspectos, situações e pontos de vista, pelos quais o Supremo Tribunal Federal, em especial, encontra caminhos para abordar e desenvolver esse importante princípio.

A Constituição de 1988 não só protege a segurança jurídica, mas também a consubstancia, ao definir, ilustrativamente: as autoridades competentes, os atos a serem editados, os conteúdos a serem regulados, os procedimentos devidos, as matérias a serem tratadas, tudo a potencializar os ideais de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade normativas. Assim, a segurança jurídica é protegida constitucionalmente em várias de suas dimensões: segurança do Direito, pelo Direito, frente ao Direito, dos direitos e como um direito. Sua relevância é muito grande, o que se denota pelo modo como é protegida, pela insistência de sua proteção, pela independência de seus fundamentos e pela eficácia recíproca desses mesmos fundamentos.[6]

Assim, em diversas passagens de nossa Constituição estamos a tratar, em maior ou menor medida (de forma implícita ou explícita) da segurança jurídica.[7] Por exemplo, quando tratamos do princípio da legalidade e de todos seus desdobramentos normativos: processo legislativo, devido processo legal, supremacia da lei, reserva de lei, anterioridade da lei, vigência da lei, incidência da lei, retroatividade e ultra-atividade da lei, repristinação da lei, lacunas da lei, legalidade administrativa (artigo 37, caput, CF/88), legalidade penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF/88) e legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF/88).[8]

De um lado, afirma-se a supremacia da lei (em conformidade com a Constituição) como um vetor essencial para favorecer os ideais já mencionados e incrementar a segurança jurídica. Nesse sentido, a lei é garantia de liberdade de ação e de limitação do poder decorrentes da Constituição. De outro lado, a lei reflete o princípio democrático, assentada na soberania popular. A questão da reserva de lei também é importante nesse contexto.[9]

Além disso, a segurança jurídica, em termos de segurança do Direito (dimensão objetiva), tem na própria Constituição uma série de disposições e institutos que impedem mudanças bruscas e acentuadas. Ao mesmo tempo, bloqueia a tentativa de abolição de elementos centrais do ordenamento. Nesse sentido, destacam-se: as cláusulas pétreas (artigo 60, parágrafo 4º, CF/88); o rigor do processo de emenda constitucional (artigo 60, CF/88); os princípios sensíveis (artigo 34, inciso VI, CF/88); as cautelas relativas à intervenção excepcional nos entes federativos (artigos 34 a 36, CF/88); as limitações e o caráter sempre provisório de situações que fogem à normalidade para a garantia do Estado e das instituições democráticas (Estado de Defesa e Estado de Sítio – artigos 136 a 139, CF/88); a definição das instituições de segurança pública (artigo 144, CF/88) e das Forças Armadas (artigos142 e 143, CF/88) etc.

Mas de nada adiantaria toda essa engenharia se não se pudesse estabelecer o controle efetivo para a limitação do poder. Sob a égide da Constituição vigente, não parece haver espaço para a impossibilidade ou desnecessidade de controle (elemento importante para a segurança jurídica), embora haja debate acerca dos seus limites e da sua intensidade (em termos de mérito administrativo, de políticas públicas, de freios e contrapesos). Por isso mesmo, o texto constitucional estruturou o princípio da separação de poderes (artigo 2º, CF/88), em lembrança à lição de Montesquieu de que o poder só encontra limites no poder (é preciso que o poder detenha o poder).[10]

Nesse sentido, destaca-se que a Constituição brasileira concebeu valor central ao controle jurisdicional da administração[11], capaz não só de rever a sua atuação, mas também de impor-lhe medida.[12] O princípio constitucional da universalidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, CF/88) parece reforçar aqui a segurança jurídica, inclusive em relação ao Poder Legislativo, em determinadas situações de atuação legislativa inconstitucional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é rica em casos e discussões nos quais a segurança jurídica toma destaque. Vejamos alguns deles.

A discussão sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade, por exemplo, em suas vertentes de proibição de excesso (übermassverbot) e de vedação da proteção insuficiente (Untermassverbot), tem marcado um importante papel, em termos de segurança jurídica e estabilização de expectativas, ao exigir que o Estado atue com coerência e de forma ponderada — proibindo restrições casuísticas e operando como critério de solução de colisão de direitos fundamentais.[13]


A discussão sobre o princípio da proteção da confiança legítima,[14] entendido como desdobramento ou dimensão subjetiva da segurança jurídica, normalmente ligado à defesa dos cidadãos contra o arbítrio estatal, também tem sido afirmada sob a égide da Constituição de 1988 pelo STF. Tem aqui destaque o famoso caso da Infraero, em que o TCU determinara a revisão de mais de 366 admissões realizadas sem concurso público, embora tivesse havido processo seletivo rigoroso, em observância ao regulamento da Infraero, validado por decisão administrativa daquela empresa estatal e pelo próprio TCU (em acórdão administrativo anterior). Houve lapso de quase 10 anos entre o deferimento parcial da liminar em favor dos impetrantes no mandado de segurança perante o STF e o julgamento de mérito. Esses elementos, somados à boa-fé objetiva dos impetrantes e ao fato de ser o Poder Público o responsável pela situação desfavorável criada a eles, fizeram prevalecer o fundamento explícito da proteção da confiança e da segurança jurídica, como balizadores do afastamento da nulidade das contratações.[15]

Outro entendimento interessante vem se consolidando na jurisprudência do STF nesse tema. A Corte passou a exigir que o TCU assegurasse a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassasse o prazo de cinco anos do ato de concessão inicial (emanado do órgão de origem), sob pena de ofensa ao princípio da confiança — face subjetiva do princípio da segurança jurídica.[16] Essa jurisprudência se consolidou em período anterior à Súmula Vinculante 3, que textualmente veio a dispor em sentido contrário.[17]

Ocorre que o desenvolvimento do debate e das situações trazidas à apreciação do STF fez com que este redefinisse seu entendimento, sem que houvesse prejuízo da segurança jurídica. É que, como a demora do envio do processo administrativo seria ocasionada pelo órgão de origem e não pelo TCU, este último acabaria sendo prejudicado, em termos de eficiência administrativa, por situação a que não teria dado causa. Por entender não se poder incutir esse ônus ao TCU, a jurisprudência foi revisitada pelo STF para assentar que o prazo de cinco anos deveria ser contado da chegada do processo de controle externo ao TCU. Caso fosse ultrapassado, estaria configurada situação mitigadora da parte final da Súmula Vinculante 3, devendo-se observar a garantia da ampla defesa e do contraditório. Assim, prestigiou-se a proteção do servidor aposentado ou do pensionista que não tiver seu processo apreciado pelo TCU após cinco anos da entrada do processo naquele órgão de controle externo, bem como assegurou-se a funcionalidade da atuação eficiente do TCU em relação ao que dispõe a Súmula Vinculante 3.[18]

Outro questão institucionalizada na Constituição de 1988 e que se irradia para a legislação infraconstitucional é o aspecto temporal da segurança jurídica, que por vezes é levado à discussão de nossa Suprema Corte. Nesse sentido, pode-se pensar em institutos como: irretroatividade da lei mais gravosa; garantias do direito adquirido, do ato jurídico e da coisa julgada; prescrição e decadência; direito intertemporal e limitação dos efeitos jurídicos no tempo; preclusão; prazos processuais; ato das disposições constitucionais transitórias (e a possibilidade de revisão constitucional — artigo 3º, ADCT); justiça de transição de regimes.

É interessante notar que a dosagem varia conforme a área e o bem jurídico envolvido. Um caso interessante e que tem despertado certa controvérsia é a interpretação da imprescritibilidade das ações de ressarcimento, as quais têm relação com atos de improbidade cometidos por agente público (artigo 37, parágrafo 5º, CF/88). A jurisprudência do STF vem confirmando a aplicação deste artigo sem maiores ressalvas, a despeito da voz divergente do ministro Marco Aurélio, que afirma que tal entendimento contraria a segurança jurídica — responsável pela cicatrização de situações pela passagem do tempo.[19] Contudo, recente decisão da 1ª Turma, que decidiu pelo recebimento do recurso extraordinário e sua afetação ao Plenário, em razão da relevância do tema, pode dar novos encaminhamentos ao tema.[20]

Ainda nessa linha, destaca-se o princípio da irretroatividade da lei mais gravosa como reflexo da segurança jurídica e que se espraia nos diversos ramos jurídicos, com destaque à anterioridade no direito penal (artigo 5º, inciso XL, CF/88) e às anterioridades clássica e nonagesimal no Direito Tributário (artigo 150, inciso III, alíneas “b” e “c”; e artigo 196, parágrafo 6º, CF/88).

Recentemente, também se colocou a discussão da segurança jurídica no centro do debate do direito constitucional e eleitoral, em razão das controvérsias ligadas à Lei da Ficha Limpa e à anterioridade eleitoral — artigo 16, CF/88 e LC 135/2010.[21]

Um aspecto atual e extremamente difícil, em termos de acomodação da segurança jurídica, diz respeito à chamada justiça de transição, em conexão com o crescente incremento de normatização supranacional e concomitante controle de convencionalidade por organizações internacionais.[22] Se tomarmos como exemplo a recente experiência da transição brasileira entre ditatura militar e redemocratização pós-1988, isso se torna evidente (seja em relação aos perpetradores do regime de exceção, seja em relação às vítimas — artigos 8º e 9º, ADCT).

Nesse sentido, o exemplo do julgamento da ADPF 153 no STF,[23] em cotejo com o Caso Gomes Lund e outros (referente à Guerilha do Araguaia) na Corte Interamericana de Direitos Humanos, parece emblemático.[24] O Supremo, por maioria, julgou improcedente a ação, destacando a impossibilidade de o Poder Judiciário rever as definições adotadas na Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), o que, em princípio, não seria óbice ao Poder Legislativo, como ocorrera em experiências do Direito Comparado (Chile e Argentina). Também não se reconheceu, em geral, a possibilidade de direito costumeiro internacional em matéria penal, deixando transparecer, ainda, haver uma ideia de distinção entre os efeitos de autoanistia e anistia como fruto de acordo político para transição democrática. Contudo, a Corte Interamericana condenou o Brasil a uma série de imposições (que só não causaram maior tensão, em termos de segurança jurídica, pelo fato de o Brasil ter ratificado a Convenção Interamericana na década de 1990 e de ter reconhecido a jurisdição da Corte Interamericanca com efeitos prospectivos, ou seja, para casos a partir de então).

Outro exemplo diz respeito à possibilidade de modulação de efeitos das decisões de inconstitucionalidade (artigo 27, Lei 9.868/1999; artigo 11, Lei 9.882/1999), que é feito, segundo o texto legal, ou por razões de segurança jurídica, ou por razões de excepcional interesse social. Esse mecanismo tem aberto uma gama de possibilidades, como a expansão para aplicação em instrumentos de controle tipicamente difuso, como o recurso extraordinário.[25] Um recente caso emblemático foi a necessidade de modular os efeitos de uma decisão que, a partir da análise de uma determinada lei de 2007 (que criara o ICMBio), faria com que todas as demais leis posteriores oriundas de projeto de conversão de Medida Provisória também fossem declaradas inconstitucionais, por vício formal (inobservância do art. 62, §9º, CF/88).[26]

Recentemente, dois temas de inegável relevância, em termos de segurança jurídica, entraram na pauta da Suprema Corte. Em primeiro lugar, a repactuação da divisão das receitas oriundas da exploração de recursos previstos no parágrafo1º do artigo 20 da Constituição, em que já houve liminar em mandado de segurança para suspender o trâmite do processo legislativo — posteriormente cassada pelo Plenário,[27] além de ações diretas de inconstitucionalidade,[28] com liminar monocraticamente deferida em uma delas e que deve obrigatoriamente ser levada a julgamento plenário em curto espaço de tempo.[29] Em segundo lugar, a questão da liberdade de criação de partidos políticos e a possibilidade de intervenção preventiva da Corte para evitar atuação legislativa em conflito com jurisprudência recente do STF — em mandado de segurança que acaba de ser julgado nesta semana.[30] São temas de grande repercussão jurídica e social e que merecem maior reflexão e atenção de todos, inclusive em termos de interpretação do princípio da segurança jurídica.


Como mencionado, todos esses desafios dependem de um Poder Judiciário capaz de dar respostas adequadas às demandas e de garantir o alcance da segurança em suas mais variadas dimensões. A Constituição estabeleceu um Poder Judiciário consolidado e de atuação independente, dotado de garantias e de instrumentos de atuação.

Em face do panorama aqui exposto, pode-se vislumbrar que, se o princípio da segurança jurídica é caro ao Estado de Direito e sua configuração depende de cada contexto jurídico, para a Constituição de 1988 e para o ordenamento jurídico brasileiro, ele parece ser fundante e essencial. Os exemplos aqui trazidos de forma ilustrativa (perspectivas e derivações da legalidade, da proporcionalidade, da proteção da confiança, da estabilidade temporal, do sistema tributário, da Justiça de transição, do controle de constitucionalidade) demonstram que tanto a Constituição quanto a jurisprudência do STF identificam um valor fundamental a este princípio nos seus mais diversos aspectos e desdobramentos (sempre em descoberta).

Além disso, a complexidade e a dinâmica dos arranjos jurídicos-institucionais previstos na Constituição, aprimorados em sua vigência e irradiados para a legislação, exigem um contínuo desenvolvimento e o rigor normativo e hermenêutico para manter e aperfeiçoar a segurança jurídica.

[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 487.
[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional: o estado da questão no início do século XXI, em face do direito comparado e, particularmente, do direito positivo brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 177 e p. 181-183.
[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, 1998, p. 109 e p. 255-256.
[4] TORRES, Heleno Tavares. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 34-35.
[5] Ávila, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 678.
[6] Ávila, Humberto, op. cit., 2012, p. 679-680.
[7] A segurança jurídica pode ainda ser captada em nossa Constituição a partir das seguintes definições: a segurança como garantia, a segurança como proteção dos direitos subjetivos, a segurança como direito social e a segurança como meio do direito. SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica. In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2 ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 17.
[8] MENDES; BRANCO, op. cit., p. 158.
[9] Historicamente, se ao princípio democrático interessaria mais a qualidade do órgão da qual emana (reserva do Parlamento), aos princípios do Estado de Direito e de Separação de Poderes interessava mais a matéria da lei, como forma de se evitar o arbítrio. VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de lei: a causa da lei na Constituição portuguesa de 1976. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1992, p. 35.
[10] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 5ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 109.
[11] Cumpre destacar, ainda, que a expressão “controle jurisdicional da Administração” é mais ampla do que a expressão “controle jurisdicional do ato administrativo”, pois abrangeria contratos, atividades ou operações materiais e a omissão ou inércia da Administração. MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 185-186.
[12] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 943-944.
[13] Vide, por exemplo: IF 2915/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 28.11.2003; ADI 855/PR, Rel. Min. Octavio Gallotti, Pleno, DJe 27.3.2009. Para um estudo mais aprofundado dos casos iniciais e tendências, vide: MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. In: Repertório IOB Jurisprudência: Tributário Constitucional e Administrativo, v. 4, p. 23-44, 2000.
[14] Segundo Hartmut Maurer, sua ideia, em termos gerais, já era conhecida há um bom tempo, mas é somente a partir da Segunda Guerra que ele é identificado como princípio jurídico independente. Outra peculiaridade é o fato de ter sido desenvolvimento pela jurisprudência e ter recebido aprovação na doutrina. MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Trad. de Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2001, p. 67.
[15] Vide: MS 22.357/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 5.11.2004.
[16] Vide: MS 24.448/DF, Rel. Ayres Britto, Plenário, DJe 14.11.2007.
[17] Dispõe a Súmula Vinculante n.º 3 o seguinte: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”.
[18] Vide: MS 24.781/DF, Rel. Ellen Gracie, Redator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 9.6.2011.
[19] Vide: MS 26210/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJe 4.9.2008; RE n.º 578.428/RS-AgR, Rel. Min. Ayres Britto, 2ª Turma, DJe 14.11.2011; RE n.º 646.741/RS-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 22.10.2012; AI n.º 712.435/SP-AgR, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, DJe 12.4.2012.
[20] Vide: AI 819.135/SP-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, julg. em 28.5.2013, Informativo n. 708.
[21] Vide: RE 633.703/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 18.11.2011; RE 630.147, Rel. Min. Ayres Britto, Redator para o acórdão, Min. Marco Aurélio, Pleno, DJe 5.12.2011; RE 631.102, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno, DJe 20.6.2011.
[22] Um caso emblemático e muito interessante é o da responsabilidade decorrente do regime de controle/vigilância do muro de Berlim aplicado pela República Democrática Alemã – RDA, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CASO STRELETZ, KESSLER E KRENZ v. GERMANY). Para uma análise detalhada, consultar: VIGO, Rodolfo Luis. La injusticia extrema no es derecho: (de Radbruch a Alexy). - Buenos Aires: Facultad de Derecho UBA: La Ley, 2006.
[23] Vide: ADPF 153/DF, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, DJe 6.8.2010.
[24] CARVALHO RAMOS, André de. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. (Org.). Crimes da Ditadura Militar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 178-180.
[25] Vide: RE 556.664/RS e RE 559.882/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 14.11.2008.
[26] Vide: ADI 4029/DF, Rel. Min. Luix Fux, Pleno, DJe 27.6.2012). Eis o que ficou assentado na ementa do julgado, em razão da Questão de Ordem arguida pelo Advogado-Geral da União em 7.3.2012 e acolhida pelo Plenário do STF em 8.3.2012: (...) 11. Ação Direta julgada improcedente, declarando-se incidentalmente a inconstitucionalidade dos artigos 5º, caput, e 6º, caput e parágrafos 1º e 2º, da Resolução n.º 1 de 2002, do Congresso Nacional, postergados os efeitos da decisão, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99, para preservar a validade e a eficácia de todas as Medidas Provisórias convertidas em Lei até a presente data, bem como daquelas atualmente em trâmite no Legislativo. (grifo nosso)
[27] MS 31816/RJ MC-AgR, Rel. Luiz Fux, Redator para o acórdão Min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 27.2.2013.
[28] ADI 4916/ES, ADI 4917/RJ, ADI 4918/RJ, ADI 4920/SP.
[29] Decisão monocrática da Ministra Cármen Lúcia na ADI 4917/RJ, DJe 21.3.2013.
[30] Há votos cujo inteiro teor já foram disponibilizados na internet. Para uma noção geral da discussão e dos votos, vide notícias do STF, nos seguintes links: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=240979 ; http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=241043 ; http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=241099&caixaBusca=N ; http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=241706 ;
Marco Túlio Reis Magalhães é doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.


Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2013, 8h01

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O Observatório da Imprensa apresenta uma entrevista de Alberto Dines com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em entrevista especial para o Observatório da Imprensa, confessou: “o que aprendi com o Google é que nunca saberei o que eu deveria saber”. Uma crítica explícita ao nosso sistema fragmentado de absorção de informações. Para ele, “o Google tem a maior biblioteca do mundo. Mas não é a maior biblioteca de livros, é a maior biblioteca de trechos, de citações, de partes e pedaços desconectados”. O autor de 35 livros publicados no Brasil ao longo de 26 anos, em sua rápida passagem no Rio de Janeiro, conversou com o apresentador Alberto Dines sobre filosofia, comunicação e sobretudo humanismo. Ele se apresenta como sociólogo mas afirma que parou de escrever há 25 anos para outros sociólogos, o que lhe interessa são os problemas das pessoas comuns e fica feliz ao dizer que com isto eliminou os intermediários.
O criador do conceito de liquidez aborda também questões da Europa e do Brasil. Ele se mostrou surpreso com os avanços sociais, apesar dos problemas que enfrentamos e declarou “representantes de 66 governos do mundo vieram para o Rio de Janeiro para se consultarem, para aprenderem sobre a experiência de retirar 22 milhões pessoas da pobreza. Ninguém mais repetiu esse milagre, apenas o Brasil até agora."

Assista à entrevista completa: