sexta-feira, 31 de maio de 2013

Milênio - Globonews.

"Criminosos não podem ficar com monopólio da verdade"

Entrevista concedida pelo presidente da Alemanha, Joachim Gauck ao jornalistaWilliam Waack, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30. 

Joachim Gauck é um dos políticos mais populares da Alemanha hoje, pelo que fez no passado. O atual presidente da Alemanha tornou-se celebridade internacional depois da queda do muro de Berlin, em 1989. Ex-pastor protestante no leste alemão, onde ficou conhecido pela resistência pacífica à ditadura comunista, Gauck acabou encarregado de administrar o quilométrico legado de fichas, arquivos e relatórios feitos pela célebre polícia política Staatssicherheit, mais conhecida como Stasi.

O filme A Vida dos Outros contou de forma brilhante como essa polícia trabalhava. Na década de 70, quando o regime parecia imbatível, calcula-se que um entre cada oito alemães orientais de alguma maneira colaborava com a Stasi.

Para digerir esse passado de denuncia, vigilância, opressão, censura e crimes contra os direito humanos, os alemães recorreram ao arquivo queHerr Joachim Gauck administrou durante dez anos. Ele usou mais tarde essa experiência em outros países. Foi a Ruanda, ao Uruguai, à Argentina e ao Chile, países que de uma forma ou de outra constituíram comissões da verdade ou engajaram-se em esforços oficiais de contar o que foi feito no passado da ditadura. Seus principais contatos, porém, foram com o bispo Desmond Tutu na África do Sul e com a comissão da verdade daquele país, experiência que, Gauck reconhece, foi bastante diversa do que foi feito na Alemanha, onde os culpados foram perseguidos e punidos pela justiça.

Na comparação internacional, a busca da verdade histórica na Alemanha foi um processo único. À exceção dos arquivos da espionagem estrangeira da Stasi vendidos ainda nos estertores do regime a CIA, os outros milhões de documentos permitiram reconstruir em detalhes como funcionava o aparato de repressão da ditadura. Muito mais difícil do que a absorção da Alemanha Oriental pela rica Alemanha Ocidental foi reconciliar mentalidades que se desenvolveram de maneira quase antagônica durante as três décadas de Guerra Fria e separação do país.

A voz de Gauck tornou-se importante a partir do que ele já fizera como pastor durante o regime comunista. Era a voz da harmonia, de certo consolo, e, principalmente, a da defesa de padrões morais. Como ele mesmo destaca nesta edição do Milênio, a maior alegria de sua vida foi o momento em que os alemães orientais perderam o medo, foram aos milhares às ruas e realizaram a liberdade.

William Waack — O senhor tem experiência em buscar a verdade. Com se faz isso?
Joachim Gauck — Existem modelos diferentes. Não estou aqui na América do Sul para dizer aos diferentes países, “Vocês tem que fazer isso.” Sei muito pouco das circunstâncias de cada um. Além disso, as fases das ditaduras em vários países são muito diferentes umas das outras. Às vezes, é interessante olhar o modelo sul-africano. Alguns países aqui têm feito como os alemães. Conosco a situação foi mais fácil porque não havia a ameaça de um confronto armado entre os diversos grupos da população. Houve uma guerra que durou décadas entre a ditadura comunista e o povo, mas, com a mudança do governo, não houve qualquer ameaça de guerra civil. Por isso foi tão especial na Alemanha. Foi possível fazer leis que beneficiassem as vítimas e fizessem com que os direitos dos criminosos e dos cúmplices fossem tratados depois. Isso se vê especialmente, claro, na lei que promulgamos primeiro na Alemanha Oriental na fase logo depois da libertação. Depois de reunificação, essa lei foi estendida aos arquivos da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, que atuava numa grande área e possuía milhões de documentos sobre um grande número de pessoas inocentes. O acesso a esses documentos foi regulamentado por lei e as vítimas tinham o direito de saber a verdade. Os criminosos não poderiam ficar com o monopólio da verdade sobre o que haviam feito naquela época. Isso veio em primeiro lugar. Em segundo, os juízes puderam trabalhar com esses documentos. Nós, no departamento que dirigi, pudemos trabalhar com isso de forma independente. Pudemos colocar os arquivos à disposição dos tribunais e das pessoas que queriam ser reabilitadas. Esse foi o processo jurídico. Há também os elementos dos processos político e histórico. Do ponto de vista histórico, os pesquisadores e a mídia tiveram acesso aos arquivos dos criminosos. As vítimas podiam liberar esse acesso, mas não eram obrigadas. Há algo também muito importante. O processo político foi um tipo de troca das elites. Não houve uma “descomunização”, como houve a “desnazificação” depois da guerra. Mas os integrantes da Stasi que trabalharam em segredo contra o próprio povo não puderam entrar para o serviço público. Isso criou uma dificuldade de acesso. Por isso, foi permitido legalmente entregar os arquivos aos chefes de departamento de pessoal para que fosse reconhecido que aquela pessoa, professor universitário, professor de escola pública ou juiz era informante da Stasi e não estava apto a exercer suas funções. Esses elementos são bem diferentes daqueles de um processo de cunho punitivo.

William Waack — O senhor declarou há 20 anos, durante o seu trabalho nesse departamento que o senhor acaba de citar “Eu, Gauck, serei sempre um advogado das vítimas”. Com isso o senhor pensa que uma Comissão da Verdade tem sempre que proteger a vítima?
Joachim Gauck — É exatamente isso e por um motivo mais profundo. Na maioria das vezes, não é possível depois de uma mudança radical, depois de uma revolução, dar um tratamento apenas punitivo a todas as injustiças cometidas pela antiga ditadura. Não conheço nenhum caso em que isso tenha dado certo. Não funcionou em Ruanda nem em lugar algum. Os sul-africanos disseram nessa situação “Ok, não podemos levar tudo aos tribunais, mas podemos anistiar os criminosos se eles disserem a verdade.” Isso foi um pouco diferente do que aconteceu na Espanha, onde, depois de Franco, foi colocado um ponto final. “Chega, acabou”.

William Waack — Ou na Argentina. 
Joachim Gauck — Ou com a lei da anistia que há nesse continente também. Os sul-africanos resolveram que quem não dissesse a verdade estaria sujeito à penalização legal. Para aquele que dissesse a verdade, o Estado abriria mão do direito de punição. Por que fizeram isso? Eles queriam que as vítimas ouvissem do Estado, com uma grande repercussão pública, que eles eram as vítimas e aqueles lá em cima, essas pessoas, essa instância do governo, eles eram os criminosos. Desta forma podia se colocar a dignidade das vítimas como questão central. Por isso o surgimento da verdade é um elemento de reparação das vítimas e também um convite ao perdão.
William Waack — Por outro lado, o senhor também disse que esse processo não deveria terminar de forma que houvesse vencedores e vencidos. Como conseguiu isso? Diz-se sempre que os vencedores escrevem a história. 
Joachim Gauck — Sim, isso não é fácil. Acho que temos que dizer no debate público exatamente como no processo científico: o que foi bom e o que foi ruim. O que se entende como contrário à dignidade humana, contra os direitos humanos e civis, o que foi uma distorção da lei, o que foi crime. Precisamos fazer essas constatações, para que a população acredite que a sociedade está baseada na verdade. Se não houver a intenção de dizer a verdade publicamente, não há como surgir a confiança. Sem confiança não há essa união da sociedade. Por isso os criminosos precisam aceitar que seus crimes serão publicamente conhecidos. Quando eles expressam o seu arrependimento – e alguns fizeram isso – vemos que as vítimas em geral se tornam generosas. Não é comum que uma vítima resolva automaticamente recorrer à justiça pelas próprias mãos. Quando fica claro que o criminoso vê e lamenta o que fez, que mudou de opinião, as pessoas se tornam rapidamente generosas. Acabo de ter essa experiência. Estou vindo da Colômbia, onde encontrei pessoas que estão tomando a iniciativa nesse processo. Uma senhora de meia idade estava no meio de uns jovens e viu os criminosos. Ela era a vítima e como os criminosos disseram a verdade, e porque eles estavam num novo caminho, essa senhora estava disposta a perdoar de uma forma admirável, porque há um novo começo. E trata-se desse novo começo.

William Waack — Senhor Presidente, o senhor usou um jogo de palavras muito bonito nesse contexto. O senhor disse que era a favor da anistia mas contra a amnésia. No Brasil, exatamente isso é questionado, ou seja, se a lei de anistia, que já é muito antiga, data de 1979, se ela foi um erro. O que o senhor diria aos brasileiros, de acordo com a sua experiência, no que diz respeito à anistia? Foi um erro?
Joachim Gauck — Bom, não posso julgar o que aconteceu no passado. Comparo novamente com a África do Sul. Visitei o Desmond Tutu durante a Comissão da Verdade, durante os trabalhos lá. Ele me disse, “Prezado senhor Gauk, com a solução que vocês adotaram, ou seja, de privilegiar as vítimas, vamos ter uma guerra civil, o país vai pegar fogo”. Respondi que estava certo, se é assim, é preciso deixas as coisas descansarem por um tempo e então pode-se fazer uma anistia. Ele concordou, mas disse que a anistia não devia prejudicar as vítimas. Agora precisamos deixar uma coisa clara: em qualquer lugar do mundo onde se deu um ponto final, onde houve a lei da anistia, sempre houve um grupo que tirou proveito da situação e esses eram sempre os antigos criminosos e dirigentes. Os outros que já tinham sido reprimidos, perseguidos, assassinados e sequestrados foram feitos de bobos pela segunda vez. Foram deixados para trás uma segunda vez. É preciso se ter bem claro que uma lei que dê o ponto final, ou uma lei de anistia que não faça uma reparação à verdade, se torna um peso enorme para a camada da população que já era perseguida antes, que já era reprimida antes. Isso pode ser feito durante um tempo de transição, mas vemos na Espanha que hoje, depois de tantos anos, ainda há questionamentos sobre o que ocorreu no passado, onde estão enterrados os meus avós, se é que eles foram enterrados, o que aconteceu com eles? Isto é, em algum momento surge na sociedade a necessidade da real realidade.

William Waack — Real realidade?
Joachim Gauck — Sim, e isso também faz parte. Por isso é tão importante que, mesmo depois de tantos anos, se comece a olhar como isso aconteceu e também que se diga isso publicamente. Na Alemanha inclusive é permitido que sejam divulgados os nomes dos criminosos, dos oficiais da Stasi que surgem entre os informantes, que atuavam na imprensa e na comunidade científica. Isso foi muito importante para as vítimas. Isso faz parte da reparação. Já que não há uma punição legal, pelo menos há um reconhecimento da nossa dignidade como vítimas da violência e do terror.

William Waack — Eu gostaria de chamar a sua atenção, ou melhor, gostaria de trazê-lo de volta à sua viagem ao Brasil e perguntar agora sobre isso ao senhor. Li por onde o senhor passou nesse último ano. O senhor esteve no Afeganistão, na Itália, em um lugar onde houve um massacre da SS, em Israel, na Rússia, na Polôna. 
Joachim Gauck — Eu ainda não estive na Rússia, mas estive na Etiópia.

William Waack — Ou seja, o senhor esteve, digamos, em viagens muito difíceis. O Brasil, que é definido como um parceiro estratégico da Alemanha, está no fim da sua lista de prioridades ou a minha impressão está errada? 
Joachim Gauck — Não. O Brasil é o primeiro país que visito neste continente. O plano era visitar o Brasil e então surgiu a Colômbia, porque a Colômbia se encontra numa fase interessante, outra fase, diferente da do seu país, uma fase de mudança interessante. Mas quis estar de qualquer forma aqui no Brasil, porque nossos países têm uma parceria estratégica, isto é, há apenas um país nesse continente e muito poucos países no mundo todo com quem a Alemanha tem essa parceria estratégica. Estou muito feliz que as negociações estejam tomando um rumo para que existam consultas governamentais regulares. Há um compromisso firmado de que os dois governos se encontrarão no começo do ano que vem. Isso é muito importante, porque muitos alemães migraram para esse país. E isso não foi recentemente, mas sim há gerações. No tempo do nazismo, muitas pessoas que eram perseguidas, como os judeus, reconstruíram sua história por aqui, como por exemplo, o famoso empresário Stern. Sua importante firma também faz parte disso. Mas antes disso também veio Otto Ernst Meyer com a companhia aérea que ele fundou aqui, a Varig, e há inúmeras empresas, mais de 1.400 empresas que estão em grande parte em São Paulo. Empresas alemãs ou que têm origens alemãs produzem 12% do PIB. Há também uma enorme ligação cultural. O Brasil é amado na Alemanha e não apenas por causa do seu futebol, mas...

William Waack — Talvez menos amado... 
Joachim Gauck — Por muitos anos admiramos a arte do futebol brasileiro. Há muitos jogadores brasileiros no campeonato alemão. As pessoas adoram a maneira de viver. Não estou falando das praias maravilhosas, nem de Copacabana, nem das Cataratas do Iguaçu. Estou falando que esse país tem a simpatia da Alemanha. Entre a população também. Há também essas conexões culturais. O Instituto Goethe é muito ativo aqui. Vou visitar o Rio e lá vou me encontrar com pessoas que são muito ativas no intercâmbio acadêmico. Esse país está se expandindo e está mandando centenas de universitários para estudar no mundo todo e muitos devem ir para a Alemanha. Há inúmeros motivos para cuidar das nossas boas relações e, de preferência, expandi-las.

William Waack — Eu acompanho essas relações há aproximadamente 35 anos, quando fui correspondente pela primeira vez em Bonn, ainda na Alemanha Ocidental, como se dizia antigamente. Os dois países estão diante de grandes desafios e o senhor esteve nesse encontro comercial Brasil-Alemanha aqui em São Paulo. A principal crítica lá foi que a Alemanha dentro da comunidade europeia sabe exatamente o que fazer. O Brasil está um pouco isolado nessa rápida mudança mundial. Como o senhor vê a situação do Brasil, a partir da sua posição na Europa. 
Joachim Gauck — Primeiro, estou muito feliz que a presidente esteja junto comigo nessa liderança nesse ano da Alemanha. Nós dois comparecemos juntos ao 31º Encontro Econômico Brasil-Alemanha e isso mostra que nós queremos que algo se movimente na economia. Gostamos muito de saber que a presidente criou o Ministério para Pequenas e Médias Empresas.

William Waack — O 39º. São muito menos na Alemanha.
Joachim Gauck — Sim, mas não quero comentar sobre isso. Mas isso é um bom sinal para nós, porque a cultura da classe média, desses empreendimentos maravilhosos, inovadores, e que têm uma boa relação com os empregados, é muito presente na Alemanha. Os países que conseguem desenvolver um segmento da classe média possuem sempre uma vantagem econômica. Isso é um bom sinal. As pessoas envolvidas com a economia sempre estão se perguntando se não há outras possibilidades para melhorar o nível de investimento. Ouço isso no meio econômico e acho que há vários pontos nos quais se pode fazer muita coisa, como, por exemplo, para melhorar a infraestrutura. A presidente me falou dos planos que ela tem e ontem mesmo, quando nos encontramos, o Congresso estava tratando dos portos e isso seria algo...

William Waack — E inclusive afundou...
Joachim Gauck — E isso já está claro, que há algumas possibilidades. É preciso ter coragem de dizer que certamente o governo brasileiro e a maioria dos europeus têm conceitos diferentes sobre o livre-comércio. Aqui se mostra como as nossas conversas também são importantes, porque naturalmente não queremos que haja um retrocesso na estratégia. Por isso é importante que as negociações entre a União Europeia e o Mercosul prossigam rapidamente e que esse intercâmbio possa ser útil para os dois lados. Integrantes da área econômica – não sou ministro da Economia – mas eles devem quebrar a cabeça para definir quais as ações mais úteis para a economia na competição global. Há sempre uma diferença quando se observa o mercado nacional, se ele é capaz de competir. Mas, nessa minha primeira visita a esse país, não quero me comportar como um especialista em economia que pode trazer uma solução mágica, quando muitas pessoas já trabalham e pensam sobre isso há muitos anos. Confio no debate que ocorre dentro do Brasil, mas não gostaria de me meter além do que eu acabo de dizer.

William Waack — Há exatamente 20 anos o senhor foi perguntado pela revista Der Spiegel sobre como o senhor se sentia naquele momento, depois da reunificação, com aquele trabalho no Departamento da reunificação, com aquele trabalho no Departamento Gauck e o senhor declarou que tinha tido uma bela profissão como pastor luterano em Rostock. Depois disso o senhor foi trabalhar na televisão, o senhor fez carreira na televisão, foi político e agora é o presidente da Alemanha. O senhor hoje é mais feliz do que naquele tempo?
Joachim Gauck — Não, isso não é verdade. Estou muito feliz que um alemão oriental, nascido durante a guerra, durante o tempo do nazismo, que até os seus 50 anos viveu sob uma ditadura, que esse homem agora seja o presidente do maior país da Europa. Isso é uma experiência incrível para mim. Quando era jovem, nunca imaginei que viveria isso. Achava que o sistema comunista ia durar mais 50 anos, não que seria eterno.No momento estou totalmente satisfeito. Mas há algo que preciso dizer: a grande experiência da minha vida não foi a eleição para presidente e sim quando as pessoas da Alemanha Oriental venceram os seus medos e foram às ruas às centenas, aos milhares. Sabe, não há nada maior do que vivenciar a libertação. Dar forma à liberdade é a segunda mais linda, e é isso que faço no momento.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Deu no conjur

Tratados de direitos humanos anteriores à EC 45/04

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POR ALDO DE CAMPOS COSTA

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro pela forma comum, ou seja, sem observar o disposto no artigo 5º, §3º, da Constituição Federal, possuem, segundo a posição que prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, status supralegal, mas infraconstitucional (Prova objetiva seletiva do II concurso público para ingresso na carreira da Defensoria Pública do Estado do Amazonas).

Ao estabelecer equivalência de emenda constitucional às normas insculpidas em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos que fossem aprovadas em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, o artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição da República calou-se quanto à possibilidade de se conferir idêntico regime jurídico aos tratados multilaterais e bilaterais de direitos humanos que já haviam sido ratificados ou mesmo promulgados pelo Brasil anteriormente à inserção daquele dispositivo no texto constitucional. Em outros dizeres, o parágrafo incluído pela Emenda Constitucional 45/2004, não abriu uma porta para que se pudesse conferir o mesmo regime jurídico aos tratados de direitos humanos já ratificados pelo Brasil àqueles que futuramente o serão[1].

Na atual sistemática, se partirmos da premissa adotada pelo parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição da República torna-se possível conferir hierarquia constitucional a documentos complementares e subsidiários ratificados após a inclusão do aludido dispositivo, como é o caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/2009), sem que se possa atribuir esse mesmo status aos instrumentos principais, isto é, os pactos internacionais citados na alínea "d" do preâmbulo daquele tratado, pela singela razão de terem sido ratificados anteriormente à introdução, em nosso ordenamento constitucional, do referido parágrafo 3º[2].

O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana atentou-se para esse anacronismo ao examinar as alterações propostas pela PEC 29/00 (Reforma do Judiciário), no tocante à inclusão do parágrafo 3º ao artigo 5º. Na oportunidade, sugeriu-se que sua redação afirmasse simplesmente que "os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional"; ou que fosse reformulada, alternativamente, para "os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, gozarão de hierarquia constitucional".

Como essas propostas não surtiram efeito, deu-se origem à seguinte questão: os tratados internacionais de direitos humanos já ratificados ou mesmo promulgados pelo Brasil também podem integrar a Constituição da República, a despeito do que dispõe seu artigo 5º, parágrafo 3º? Em busca de soluções, a doutrina se desdobrou entre aqueles que, defendiam a incorporação automática[3] dos tratados firmados antes da EC 45/2004 ao texto constitucional, a teor do que passou a dispor seu artigo 5º, parágrafo 2º; e os que propugnavam pela recepção material[4], por parte daquele mesmo dispositivo, de todos os tratados internacionais de proteção de direitos humanos.

Embora essa última tese tenha alcançado certo prestígio em alguns tribunais[5], a ponto de se considerar encerradas "as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias suscitadas pelo parágrafo 2º do artigo 5º"[6], o fato é que a inserção do parágrafo 3º opõe-se, por si só, à interpretação de que o parágrafo 2º teria ensejado nivelamento constitucional para os tratados internacionais de direitos humanos preexistentes à EC 45/2004[7].

O legislador, atento a essa realidade, está buscando regulamentar a matéria por meio do Projeto de Resolução 204/2005, em que se propõe a criação do artigo 203-A, parágrafo 10, no Regimento Interno da Câmara dos Deputados[8], que passaria a admitir a equivalência de tratado ou convenção internacional sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil anteriores à EC 45/2004, através de requerimento dirigido pelo Presidente ao Congresso Nacional[9], onde seria submetido à votação. Aprovado pelo Plenário, a matéria seria então regulada pelas disposições regimentais pertinentes ao trâmite e apreciação das propostas de emenda. Essa solução, no entanto, causa controvérsia no âmbito do próprio Legislativo. Três são as correntes que se põem de manifesto.

primeira, nitidamente influenciada pelo radicalismo extremado internacionalista, insiste em considerar materialmente constitucionais os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à EC 45/2004, e propõe uma redação “mais adequada” para o retro mencionado parágrafo 10 do artigo 203-A, a fim de exprimir a necessidade daqueles compromissos serem recepcionados como normas equivalentes às emendas constitucionais, nos termos do parágrafo 3º do artigo 5º.

segunda, formalista, defende a supressão do projetado artigo 203-A, parágrafo 10, ao argumento de ser impossível que um tratado já aprovado pelo quórum comum seja reapreciado na forma estabelecida pelo parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição da República, a fim de ser considerado equivalente a emenda constitucional. Segundo essa corrente, essa possibilidade feriria o princípio da segurança jurídica.

terceira, por fim, entende que a transformação do conteúdo de uma lei ordinária em norma constitucional por meio de proposta de reforma à Constituição da República não representa nenhum óbice à segurança jurídica, na medida em que a inovação trazida pela EC 45/2004, não excluiu da regra do parágrafo 3º do artigo 5º os tratados de direitos humanos ratificados antes de sua promulgação; ao contrário, antes lhes concedeu maior enforcement no âmbito local em tempos de restrição às liberdades individuais.

Esse último posicionamento, favorável à ideia de que os acordos internacionais aprovados antes da EC 45/2004 possam ser reapreciados nos termos do artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição da República, para que passem a vigorar com statusde norma constitucional, é, em nosso sentir, o que melhor se coaduna com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, razão pela qual, desde há muito, temos propugnado que "a salvaguarda da coerência do sistema estaria, eventualmente, na elaboração de uma resolução do Congresso Nacional, que se encarregaria de regular a matéria"[10].

Os debates legislativos, no entanto, indicam, até o momento, preferência pela posição formalista, com esteio em moderna doutrina constitucionalista, segundo a qual não seria possível um tratado, já aprovado pelo quórum comum, ser reapreciado para que, votado pelo quórum do parágrafo 3º possa ser considerado equivalente a emenda constitucional, porquanto "a Constituição projetou para o futuro e não tratou de disciplinar regras transitórias nesse sentido"[11].


[1] Cf. COSTA, Aldo de Campos. A proteção internacional dos direitos humanos e a reforma do Poder Judiciário no Brasil. Revista Meridiano 47, ns. 52-53, nov.-dez., 2004, p. 4.
[2] Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7ª ed. São Paulo, Saraiva, 2006, pp. 72-73.
[3] Cf. TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 45.
[4] Cf. PIOVESAN, Direitos Humanos..., p. 74.
[5]Nesse sentido: TJRS 70011566882, 2ª Câmara Cível, rel. Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, DJ 10/08/05. Em sentido contrário: STJ RHC 19.975, Primeira Turma, rel. Teori Zavascki, DJ 05/10/06.
[6] Cf. LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos. São Paulo: Manole, 2005, p. 16.
[7] Cf. DALLARI, Pedro. Tratados Internacionais na Emenda Constitucional 45In: Reforma do Judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 91.
[8] Eis a redação do dispositivo: "Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil antes da promulgação da EC 45, de 2004, poderão ser objeto de requerimento previsto no caput deste artigo [203-A]”, que, a seu turno, dispõe que, uma vez “recebida mensagem do Presidente da República contendo tratado ou convenção internacional sobre direitos humanos, a Mesa fará publicar no avulso da ordem do dia o prazo de dez sessões para a apresentação de requerimento subscrito por um terço de deputados solicitando sua equivalência a emenda constitucional, nos termos do §3.º do art. 5.º da CF, acrescido pela EC 45, de 2004".
[9] No Senado tramita o PRS 29/2008, que ao acrescentar o art. 376-A ao Regimento Interno daquela Casa para estabelecer o rito de tramitação dos tratados internacionais sobre direitos humanos, nada dispõe sobre a possibilidade de que os acordos ratificados anteriormente à edição da EC 45/2004 voltem a ser reapreciados.
[10] Cf. COSTA, A proteção internacional..., p. 5.
[11] Cf. ARAÚJO, Luiz Alberto David, NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 216-217.
ALDO DE CAMPOS COSTA exerce o cargo de assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi professor substituto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Bahia atualiza milagre da multiplicação dos peixes

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POR IGOR MAULER SANTIAGO

Há quem critique o chamado cálculo “por dentro” do ICMS. Não comungamos da censura, por não enxergarmos qualquer vício nesse método. O fato é que operações com porcentuais dão resultados diferentes, conforme o sentido em que se realizem. Assim, por exemplo,100 – 10% = 90, mas 90 + 10% = 99 (e não 100).

A incompreensão disso se deve, a nosso ver, toda a celeuma: um comerciante sujeito à alíquota de 18% que deseje apropriar-se do valor líquido de 100 deve acrescentar-lhe 21,95% (e não 18%), porque 121,95 – 18% = 100 (e 118 – 18% = 96,76).

Nos tributos sobre produtos e serviços, a opção pelo cálculo “por dentro” ou “por fora” constitui em regra livre opção do legislador, valendo notar que ambas as técnicas conduzem, por vias diversas, a idênticos resultados[1].

No caso do ICMS, para encerrar a discussão — de resto, já resolvida pelo STF no Recurso Extraordinário 212.209/RS (Pleno, relator para o acórdão ministro Nelson Jobim, julgado em 23 de junho de 1999) — o primeiro critério foi positivado pela Emenda Constitucional 33/2001[2].

Pois bem: em 8 de maio de 2013, ao decidir os Embargos de Divergência no Recurso Especial1.190.858/BA, a 1ª Seção do STJ miscigenou aqueles dois sistemas, inovando de forma preocupante em nosso Direito Tributário.

Tratava-se de definir a base de cálculo a ser adotada na cobrança de ICMS sobre fatos pretéritos que o particular, no momento de sua ocorrência, por erro considerou intributáveis.

O contribuinte sustentava que o lançamento deveria considerar o preço por ele praticado, na forma do artigo 13 da Lei Complementar nº 87/96[3]. Já o Fisco baiano, dizendo-se fundado na regra que determina o cálculo por dentro do ICMS[4], pretendia que a base fosse maior, correspondendo ao valor que o empresário supostamente teria cobrado, caso estivesse, no momento da celebração do negócio, ciente da incidência do imposto.

Nos debates que antecederam a decisão, lembrou-se história atribuída a Aliomar Baleeiro: iniciando uma caminhada pela orla carioca, o jurista se deparou com um stand de rua em que o quilo do peixe era anunciado a um determinado preço. Ao passar pela mesma banca na volta para casa, notou que o preço já era bem menor (um caso clássico de liquidação de fim de feira). Irônico, inquiriu o feirante:

— Tirou o ICM? (Eram velhos tempos.) Para ouvir como resposta:

— Não, senhor. O ICM está sempre dentro do peixe.

A frase do peixeiro, plena de sabedoria jurídica, causou um efeito oposto ao que seria de se esperar, e a Corte deu ganho de causa ao Fisco, ao argumento de que, na situação em análise, “o peixe, ao que parece, foi desidratado”.

A decisão não nos parece acertada.

Destacado ou não, o que é providência de simples controle, o ICMS, onde devido, está sempre embutido no preço.

Tratando-se de preços livres — ou mesmo administrados, desde que observadas as balizas estabelecidas pela autoridade competente —, não compete ao Poder Público interferir nas decisões privadas, em busca de maior arrecadação.

O empresário assume todos os riscos, inclusive fiscais, ligados a tais decisões. Mas apenas a elas, não podendo ver-se atribuída receita que na verdade não teve.

No caso em exame, a receita efetiva foi 100. O estado adicionou-lhe um valor fictício a título de ICMS. E, para completar, fê-lo de maneira a que essa parcela inexistente embutisse o imposto sobre ela pretendido, de forma a chegar a um preço arbitrado de 121,95[5].

Em suma, o ICMS está ao mesmo tempo por fora e por dentro, como os elos do nó borromeano. É, para continuarmos na Bahia, “o avesso do avesso do avesso do avesso”.

Ao abonar esse paradoxo, o STJ contrariou as suas excelentes decisões anteriores sobre o tema. Deveras, no Recurso Especial 1.111.156/SP (relator ministro Humberto Martins, DJe 22.10.2009,repetitivo), a 1ª Seção repeliu a tentativa de exigir-se ICMS sobre o preço que teriam mercadorias gratuitas (dadas em bonificação), caso houvessem sido vendidas. O entendimento acerca da intributabilidade de valores não recebidos, correspondentes a descontos incondicionados, encontra-se inclusive sumulado (Súmula 457).

Na mão oposta, mas sempre fiel à ideia de que o preço cobrado é imutável, haja ou não ICMS, a 4ª Turma do STJ livrou fornecedor de indenizar o adquirente contra o qual destacou o imposto, que depositou em juízo, depois que o primeiro ganhou a ação em que combatia a incidência tributária, e o Fisco estornou os créditos aproveitados pelo último (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 122.928/RS, relator ministro Luís Felipe Salomão, DJe 14.02.2013)[6].

gross up só é admitido naquelas poucas hipóteses em que se presume que o ônus do tributo calculado “por dentro” será suportado pelo solvens, casos do ICMS-importação (pois é evidente que o exportador estrangeiro não o considera na formação do seu preço) e do artigo 725 do Regulamento do Imposto de Renda[7].

Não, porém, nas situações ordinárias, em que vigora a presunção inversa de que o ônus incumbirá ao destinatário ou, o que é a mesma coisa, de que o tributo está embutido no valor da operação privada. Trata-se, é sabido, de presunção absoluta, que não admite argumentação ou prova em contrário.   

Conta-se que, com cinco pães e dois peixes, Jesus deu de comer a cinco mil homens, fora as mulheres e crianças, e ainda restaram doze cestos cheios[8]. Em outra ocasião, com sete pães e “alguns peixinhos”, alimentou mais de quatro mil pessoas, e a sobra foi de sete cestos[9].

Pela matemática do Fisco baiano, a cada nove peixes tirados das águas, dois teriam de cair do céu[10]. Os milagres já não são o que eram. Mas continuam a nos desafiar a razão.


[1] Uma alíquota hipotética de 1000% no IPI, por exemplo (valor líquido de 100 e imposto igual a 1.000), corresponderia a uma alíquota de 90,91% no ICMS.
[2] Que introduziu a seguinte alínea ao regramento constitucional do ICMS:
“Art. 155, § 2º, XII – cabe à lei complementar:
(...)
i) fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço.”
[3] Ver especialmente os incisos I e III.
[4] “Art. 13, § 1º. Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caputdeste artigo:
I – o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle.” (Lei Complementar nº 87/96)
[5] O exemplo, como todos os demais desta coluna, leva em conta a alíquota de 18%.
[6] A decisão vai além e registra, com total acerto, que o adquirente deveria ter-se voltado contra o Estado, contestando o estorno de seus créditos, a nosso ver obstado pelo artigo 146 do CTN.
[7] “Art. 725. Quando a fonte pagadora assumir o ônus do imposto devido pelo beneficiário, a importância paga, creditada, empregada, remetida ou entregue, será considerada líquida, cabendo o reajustamento do respectivo rendimento bruto, sobre o qual recairá o imposto, ressalvadas as hipóteses a que se referem os artigos 677 e 703, parágrafo único.”
[8] Mt 14, 13-21; Mc 6, 31-44; Lc 9, 10-17; Jo 6, 5-15.
[9] Mt 15, 32-39; Mc 8, 1-9.
[10] O gross up, viu-se acima, é de 21,95 para cada unidade de preço igual a 100. Assim, a cada 4,5 itens reais, tem-se praticamente um fictício (21,95 x 4,5 = 98,775) — ou, em números inteiros, nove para cada dois.
IGOR MAULER SANTIAGO é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

segunda-feira, 27 de maio de 2013


  • Contrato de gaveta: riscos no caminho da casa própria

    26/05/2013

    Comprar imóvel com “contrato de gaveta” não é seguro, mas é prática comum. Acordo particular realizado entre o mutuário que adquiriu o financiamento com o banco e um terceiro, traz riscos evidentes. Entre outras situações, o proprietário antigo poderá vender o imóvel a outra pessoa, o imóvel pode ser penhorado por dívida do antigo proprietário, o proprietário antigo pode falecer e o imóvel ser inventariado e destinado aos herdeiros.

     

    Além disso, o próprio vendedor poderá ser prejudicado, caso o comprador fique devendo taxa condominial ou impostos do imóvel, pois estará sujeito a ser acionado judicialmente em razão de ainda figurar como proprietário do imóvel.

     

    Por problemas assim, o “contrato de gaveta” é causa de milhares de processos nos tribunais, uma vez que 30% dos mutuários brasileiros são usuários desse tipo de instrumento.

     

    A Caixa Econômica Federal (CEF) considera o “contrato de gaveta” irregular porque, segundo o artigo 1º da Lei 8.004/90, alterada pela Lei 10.150/00, o mutuário do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) tem que transferir a terceiros os direitos e obrigações decorrentes do respectivo contrato. Exige-se que a formalização da venda se dê em ato concomitante à transferência obrigatória na instituição financiadora.

     

    Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reconhecido, em diversos julgados, a possibilidade da realização dos “contratos de gaveta”, uma vez que considera legítimo que o cessionário do imóvel financiado discuta em juízo as condições das obrigações e direito assumidos no referido contrato.

     

    Validade de quitação

    O STJ já reconheceu, por exemplo, que se o “contrato de gaveta” já se consolidou no tempo, com o pagamento de todas as prestações previstas no contrato, não é possível anular a transferência, por falta de prejuízo direto ao agente do SFH.

     

    Para os ministros da Primeira Turma, a interveniência do agente financeiro no processo de transferência do financiamento é obrigatória, por ser o mútuo hipotecário uma obrigação personalíssima, que não pode ser cedida, no todo ou em parte, sem expressa concordância do credor.

     

    No entanto, quando o financiamento já foi integralmente pago, com a situação de fato plenamente consolidada no tempo, é de se aplicar a chamada “teoria do fato consumado”, reconhecendo-se não haver como considerar inválido e nulo o “contrato de gaveta” (REsp 355.771).

     

    Em outro julgamento, o mesmo colegiado destacou que, com a edição da Lei 10.150, foi prevista a possibilidade de regularização das transferências efetuadas até 25 de outubro de 1996 sem a anuência da instituição financeira, desde que obedecidos os requisitos estabelecidos (REsp 721.232).

     

    “Como se observa, o dispositivo em questão revela a intenção do legislador de validar os chamados ‘contratos de gaveta’ apenas em relação às transferências firmadas até 25 de outubro de 1996. Manteve, contudo, a vedação à cessão de direitos sobre imóvel financiado no âmbito do SFH, sem a intervenção obrigatória da instituição financeira, realizada posteriormente àquela data”, afirmou o relator do caso, o então ministro do STJ Teori Zavascki, hoje no Supremo Tribunal Federal (STF).

     

    No julgamento do Recurso Especial 61.619, a Quarta Turma do STJ entendeu que é possível o terceiro, adquirente de imóvel de mutuário réu em ação de execução hipotecária, pagar as prestações atrasadas do financiamento habitacional, a fim de evitar que o imóvel seja levado a leilão.

     

    Para o colegiado, o terceiro é diretamente interessado na regularização da dívida, uma vez que celebrou com os mutuários contrato de promessa de compra e venda, quando lhe foram cedidos os direitos sobre o bem. No caso, a Turma não estava discutindo a validade, em si, do “contrato de gaveta”, mas sim a quitação da dívida para evitar o leilão do imóvel.

     

    Revisão de cláusulas

    Para o STJ, o cessionário de contrato celebrado sem a cobertura do FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salariais) não tem direito à transferência do negócio com todas as suas condições originais, independentemente da concordância da instituição financeira.

     

    O FCVS foi criado no SFH com a finalidade de cobrir o saldo residual que porventura existisse ao final do contrato de financiamento. Para ter esse benefício, o mutuário pagava uma contribuição de 3% sobre cada parcela do financiamento. Até 1987, os mutuários não tinham com o que se preocupar, pois todos os contratos eram cobertos pelo FCVS. A partir de 1988, ele foi retirado dos contratos e extinto em definitivo em 1993.

     

    De acordo com a ministra Isabel Gallotti, relatora do caso, o terceiro pode requerer a regularização do financiamento, caso em que a aceitação dependerá do agente financeiro e implicará a celebração de novo contrato, com novas condições financeiras.

     

    Segundo a ministra, quando o contrato é coberto pelo FCVS, o devedor é apenas substituído e as condições e obrigações do contrato original são mantidas. Porém, sem a cobertura do FCVS, a transferência ocorre a critério do agente financeiro e novas condições financeiras são estabelecidas (REsp 1.171.845).

     

    Em outro julgamento, o STJ também entendeu que o cessionário de mútuo habitacional é parte legítima para propor ação ordinária contra agente financeiro, objetivando a revisão de cláusula contratual e de débito, referente a contrato de financiamento imobiliário com cobertura pelo FCVS.

     

    “Perfilho-me à novel orientação jurisprudencial que vem se sedimentando nesta Corte, considerando ser o cessionário de imóvel financiado pelo SFH parte legítima para discutir e demandar em juízo questões pertinentes às obrigações assumidas e aos direitos adquiridos através dos cognominados ‘contratos de gaveta’, porquanto, com o advento da Lei 10.150, o mesmo teve reconhecido o direito de sub-rogação dos direitos e obrigações do contrato primitivo”, assinalou o relator do recurso, o ministro Luiz Fux, atualmente no STF (REsp 627.424).

     

    Seguro habitacional

    Exigido pelo SFH, o seguro habitacional garante a integridade do imóvel, que é a própria garantia do empréstimo, além de assegurar, quando necessário, que, em eventual retomada do imóvel pelo agente financeiro, o bem sofra a menor depreciação possível.

     

    No caso de “contrato de gaveta”, a Terceira Turma do STJ decidiu que não é devido o seguro habitacional com a morte do comprador do imóvel nessa modalidade, já que a transação foi realizada sem o conhecimento do financiador e da seguradora (REsp 957.757).

     

    Em seu voto, a relatora, ministra Nancy Andrighi, afirmou que, de fato, não é possível a transferência do seguro habitacional nos “contratos de gaveta”, pois nas prestações de mútuo é embutido valor referente ao seguro de vida, no qual são levadas em consideração questões pessoais do segurado, tais como idade e comprometimento da renda mensal.

     

    “Ao analisar processos análogos, as Turmas que compõem a Segunda Seção decidiram que, em contrato de promessa de compra e venda, a morte do promitente vendedor quita o saldo devedor do contrato de financiamento. Reconhecer a quitação do contrato de financiamento em razão, também, da morte do promitente comprador, incorreria este em enriquecimento sem causa, em detrimento da onerosidade excessiva do agente financeiro”, destacou a relatora.

     

    Diante dos riscos representados pelo “contrato de gaveta”, o melhor é regularizar a transferência, quando possível, ou ao menos procurar um escritório de advocacia para que a operação de compra e venda seja ajustada com o mínimo de risco para as partes contratantes.  

     

    Fonte: Site Oficial do STJ

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