SENSO INCOMUM
Hipossuficiência
e TV a cabo, fatos ou interpretação?
Por Lenio
Luiz Streck
Parte do título não é
criação minha: é de Nietzsche. A partir dela — e, convenhamos, tem um belo
apelo estético —, fomentou-se no imaginário jurídico uma espécie de niilismo
pós-moderno. Há um vídeo no YouTube com uma aula Magna no STF, em que um
importante professor inicia exatamente assim a sua exposição sobre
“hermenêutica”: “Fatos não há; só há interpretações”. Vibração da plateia.
Ora, se não há fatos e só
há interpretações, então posso dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Posso
negar a história. Posso maquiar os “fatos” — afinal, eles não “existem”... Com
isso, no âmbito do direito, pode-se dizer, por exemplo, que “a interpretação é
um ato de vontade”. Claro. Mas, que vontade? Vontade de quem? Ora, o que querem
dizer – os niilistas do direito – é que a interpretação é um ato de vontade...
de poder, eu acrescentaria.
Aliás, foi Kelsen quem
disse que a interpretação feita pelos juízes é um ato de vontade. E assim o fez
para justificar a divisão de sua Teoria Pura do Direito em dois planos: o andar
de cima, puro, límpido, asséptico, onde se localizaria a ciência do direito,
neutral; já o andar de baixo é o da impureza, onde se localiza a decisão
judicial. Ali, segundo o mestre de Viena, “faz-se politica jurídica”. Por isso,
para ele, a sentença é um ato de vontade. Pronto. Está explicado porque Kelsen
é um decisionista. A sentença é norma. E por isso seu positivismo é
normativista.
Mas não são somente os
“adeptos” da parte do andar de baixo da Teoria Pura do Direito que compreendem
deste modo. Todos os axiologistas ou voluntaristas, que pensam que o
positivismo é apenas o velho exegetismo, de um modo ou de outro acabam caindo
nessa falácia relativista. Afinal, se o direito não é igual à lei, quem vai
dizer o que é o direito é o juiz (ou o tribunal). Amarras para isso? Ora,
lance-se mão da grande invenção contemporânea, a ponderação. Ou uma metodologia
qualquer. E, pronto. Lá está um “pós-positivista” talhado à machado (não de
Assis).
Aqui, antes de tudo, quero
apenas replicar: disse tudo isso para afirmar minha posição, no sentido de que
“só há interpretações porque há fatos”. Ou seja, sou antirrelativista. Da cepa.
O grau zero e o
encobrimento de sentido
Introduzi essa temática
para falar de várias coisas. Mas, antes de entrar nas “várias coisas”, lembro
da crítica mordaz feita por Orwell, em seu 1984 (escrito em 1948), em que o
Ministério da Guerra era chamado de Ministério da Paz, o da Fome chamava-se da
Fartura (e assim por diante). Era a novilíngua. A língua do poder, a linguagem
politicamente correta. Isso se repete em outro livro de Orwell, A Revolução dos
Bichos. Ali também os animais tem uma nova linguagem para tratar das coisas.
Esse grau zero é muito
comum nos tempos de fragmentação “pós-moderna”, em que não há mais
fundamento(s). Digo algo porque digo. E pronto. E isso valerá se tenho o lugar
da fala. Se tenho o Skeptron (na Ilíada, o sujeito só pode falar da guerra se
receber o Skeptron; no livro Lord of the Flies, os meninos repetem esse ritual,
só podendo falar quem receber a concha), posso falar e, fundamentalmente,
nominar. E posso até neonominar. Posso trocar o nome das coisas. Afinal, “fatos
não há; só há interpretações”. A vontade do poder (Wille zur Macht), que
Heidegger denominou de “O último princípio epocal da modernidade”. Manejado
atualmente, produz algum estrago. E não é só no direito.
Mas, de forma consciente ou
inconsciente — a questão da vontade aqui não importa, o fato é que, quando
somos atirados no rio da história, a impossibilidade de recuperarmos todo o
sentido produzido em tempos anteriores, algo que decorre de nossa finitude,
acaba necessariamente por nos levar a um fenômeno que podemos nomear de
“encobrimento do sentido”. Questões triviais explicam isso. É o que veremos a
seguir.
A história
A Folha de S.Paulo de 10 de
fevereiro 2013 denuncia livros escolares (História do Brasil – Império e
República e Quinhentos Anos de História do Brasil) utilizados em escolas
militares, em que o golpe militar de 1964 é mostrado como uma “revolução” feita
“por grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem”. Ora, se fossem
respeitadores da lei, não deveriam ter respeitado a Constituição? Patético.
Outro erro é dizer que Castello Branco foi eleito pelo Congresso, como se
houvesse sido declarada a vacância do cargo. Com relação à Guerrilha do
Araguaia, não há uma linha sobre os desaparecimentos. Enfim, são exemplos de
“grau zero”. A história é aquilo que “eu quero que ela seja”. Afinal, fatos não
existem; o que existe são meras interpretações... Há pouco tempo, no Rio Grande
do Sul, um sujeito escreveu uma porção de livros negando o holocausto. O STF,
acertadamente, condenou-o por crime de racismo.
O cotidiano
No cotidiano é comum ver a
publicidade maquiando “fatos”, redefinindo-os ao bel prazer dos intérpretes. A
linguagem do politicamente correto é um bom exemplo. O sujeito que é careca é
chamado de “indivíduo destituído de cobertura capilar”. Ascensorista vira
“assessor vertical”. Motorista é oficial de transportes. Professor é
trabalhador da educação. E trabalhador se transforma em “colaborador”. Por isso
as seguidas tentativas de reescrever textos clássicos, como os de Monteiro
Lobato. Aluno passa a ser “consumidor”. A aula vira “produto”. Já não se
reforma um túnel; faz-se a “revitalização” (argh!). Como “fatos não há; só há interpretações”,
tentaram criar uma imagem positiva do dono da boate Kiss. Como se fosse
possível na vida real repetir o personagem de Robert de Niro no filme Mera
Coincidência, que era um “maquiador” de fatos — por exemplo, no filme, para
encobrir um assédio sexual a uma menor praticada pelo presidente dos EUA no
Salão Oval, o cleaner de Niro cria uma guerra ficta contra a Albânia. Genial,
não? Afinal, se tudo é relativo...
O direito
No direito, o relativismo é
a regra. Diz de boca cheia: “Não há verdades”. Cada um diz o “que pensa”,
segundo sua interpretação. “O juiz boca da lei morreu”, dizem os jovens
neopentecostais do direito. E eu pergunto: e no lugar deles o que colocam? “O
juiz dono da lei?” Esse faz o que quer com o sentido da lei.
Com o relativismo, cria-se
um grau zero de sentido: os sentidos das palavras ficam líquidos, fugidios.
Anêmicos. A palavra “necessitados” — como veremos na sequencia — se transforma
em seu contrário. Com esse “grau zero de sentido”, é possível fazer qualquer
coisa. Algo como o cinema novo (ao contrário do que dizia Glauber Rocha – uma
câmera na mão e uma ideia na cabeça —, tem-se “um manual ou livro simplificador
na mão e nenhuma ideia na cabeça”). E tudo pode ser judicializado. Um aluno
quer escrever sobre Jesus e os presos. O professor lhe diz que isso não é
apropriado para uma monografia. E o que faz o aluno? Ingressa em juízo. Ainda
bem que o Poder Judiciário barrou a pretensão. O aluno acreditou mesmo que
“tudo é relativo”!
Na trilha do
niilismo/relativismo, no Rio Grande do Sul uma mãe queria que um pai fosse
obrigado a visitar os filhos sob pena de multa de R$ 2 mil por não visita.
Corretamente, a 8ª Câmara Cível do TJ-RS rechaçou a pretensão. Ou seja, o TJ
gaúcho não embarcou nessa novilíngua do politicamente correto.
Mas, há bem mais coisas. Já
veremos.
“Querer o bem com demais
força”
Há uma passagem em Grande
Sertão: Veredas, na qual Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo, diz o seguinte:
“querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se
querendo o mal por principiar.” Absolutamente genial! A lógica diz muita coisa
aqui. Os excessos no desejo do bem, da vida boa, pode levar à sua total
inversão, tornando-se um mal desejo.
Mas será que é só isso? Por
certo que não. Sabemos que Grande Sertão:Veredas é uma teodicéia; uma busca
pela prova da existência de Deus e, consequentemente, do diabo. Se estudarmos
filosofia medieval, veremos que Duns Escoto, um importante nominalista,
escreveu em uma de suas obras sobre a vontade e a sua busca. Perguntava-se: a
vontade, entendida nos termos vigentes à época, deve buscar o justo ou o
meramente útil? A resposta de Duns Escoto passava pela afirmação da busca pelo
justo. Mas não “a todo o custo”. Explicava ele o “desvio” a que pode incorrer a
vontade quando busca cegamente o justo. O Exemplo trazido pelo filósofo é o da
“queda de Lúcifer”. Para Duns Escoto, a queda de Lúcifer ocorreu exatamente por
isso, por um desejo descomedido para encontrar o bem. Ele deseja de forma
descomedida ou exagerada o bem para alguém que ele amava ou que ele queria bem.
Eis que o sentido se mostra, agora, des-coberto.
Essa é, portanto, uma
situação interessante. Nossa relação com a história — com as pirâmides do
espírito — pode ora encobrir, ora descobrir o sentido. É um jogo binário ao
qual todas as disciplinas hermenêuticas estão sujeitadas. O direito,
evidentemente, não fica fora disso.
Com efeito, vejamos o que
acontece com recente notícia veiculada sobre a Defensoria pública do Estado de
Mato Grosso. Segundo consta, os defensores daquele estado ajuizaram uma Ação
Civil Pública em face de empresas de telecomunicações – entre elas, NET, Sky e
Claro – visando a impedir (obrigação de não fazer) que elas cobrassem pela
instalação do chamado “ponto extra” nas residências dos respectivos usuários.
Alguém diria: belo gesto. Boníssima intenção.
No entanto, a principal
questão, penso eu, não passa pela juridicidade ou não da cobrança do ponto
extra (ou de qualquer eletrodoméstico ou similar que a classe média adquira).
Posso considerar, por vários motivos, a cobrança injusta ou até mesmo ilegal e,
como particular, posso buscar os meios adequados para fazer valer a minha
pretensão.
Na verdade, devemos
perguntar por outro aspecto do problema: a Defensoria é parte legítima para
propor a referida ACP? Alguém poderia vir com uma pronta resposta, a partir da
legislação aplicável ao caso, e responder: sim, a lei autoriza que a Defensoria
pública seja parte autora em ACPs. Logo veremos isso.
O que é “necessitado”?
Vamos avançar, quem sabe
começando a discussão por outro diploma normativo, por exemplo... a
Constituição? Nos termos do artigo 134 da CF a Defensoria Pública prestará
orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados. Note-se a
palavra empregada pelo texto: necessitados. Já o artigo 5o, inciso LXXIV,
afirma que o Estado prestará assistência jurídica — privilegiadamente através
das defensorias — aos que comprovarem insuficiência de recursos. Que outra
leitura podemos fazer desse texto: “LXXIV — o Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”?
Tem de provar. Portanto, “necessitados” não é um conceito qualquer (Gadamer
diz: "se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te
diga algo!). Não é relativo. Não há niilismo que salve. Há que provar. Ou seja:
o Estado somente prestará assistência judiciária gratuita a quem comprovar ser
hipossuficiente. Para os demais o Estado não garante essa assistência. Fosse eu
um exegeta do século XIX, invocaria o in claris cessat interpretatio...! Ou
ainda adágios rasos como “não há palavras inúteis na lei”.
Assim, por uma questão de
lógica elementar e de hermenêutica mesmo para iniciantes, tem-se que “se a CF
diz que a Defensoria defende os necessitados, não pode defender os não
necessitados”. Se eu quisesse ir mais fundo na questão, poderia dizer que não
estamos em uma idealista/idealizada (não sei se seria bom ou ruim), em que,
utopicamente, não haveria advogados privados. Logo, se jovens estudam direito,
pagam para estudar nas mais de mil faculdades de direito de nossa Terra de Vera
e Santa Cruz, não se lhes pode tirar o “emprego” de advogar para aqueles que a
Constituição não incluiu como beneficiários da defesa gratuita feita pela
Defensoria: a-valorosa-categoria-dos-não-necessitados. Ou seja, não quero ser
um “originalista” (já me acusaram disso), mas onde está escrito “necessitados”,
penso que devemos ler... “necessitados”, também denominados pós-modernamente de
hipossuficientes (ou não privilegiados, para usar uma expressão em um voto do
STF sobre a matéria).
Não estou descobrindo nada
de novo, mas sigo a linha que o STF adotou quando dos julgamentos das ADIs 2903
e 3022 (também ADI 558-MC/RJ; RESP 912849-RS; AC 2008.70.00.014882-0/PR). Bem
sei que há uma lei posterior às ADIs, dando legitimidade para a Defensoria
Pública propor ACPs. Pois é nisso que reside o problema. Por isso, há uma ADI
tramitando na Suprema Corte. E sei também que há uma Repercussão Geral já
aceita (ARE 690838, relatada pelo ministro Dias Toffoli) em dezembro de 2012,
portanto, bem recentemente. O processo chegou ao Supremo porque o município de
Belo Horizonte recorreu de decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que reconheceu
a legitimidade da Defensoria para propor ação civil pública na defesa de
interesses e direitos difusos. Segundo a decisão do TJ-MG, a própria natureza
dos direitos difusos, previstos no inciso I do parágrafo único do artigo 81 do
Código de Defesa do Consumidor (CDC), torna “impraticável” que a Defensoria
Pública tenha de demonstrar a hipossuficiência (indivíduo sem recursos para
pagar um advogado particular) de cada pessoa envolvida na demanda para
legitimar sua atuação. De acordo com o TJ-MG, em caso de defesa de interesses
difusos (aqueles que pertencem a um grupo, classe ou categoria indeterminável
de pessoas reunidas entre si pela mesma situação de fato), é “impossível
individualizar os titulares dos direitos pleiteados”.
Pronto. Esse é o busílis da
questão. Teria o TJ-MG razão ao dizer que, como é impossível provar a
hipossuficiência de cada pessoa, logo, também os não necessitados podem vir a
ser beneficiados? Ou teria razão o município de Belo Horizonte, que diz ser
impossível provar quem é e quem não é hipossuficiente, é que a Defensoria não
poderia ajuizar ACP? Mais: alega o município que, pelo fato de a CF falar em
“necessitados”, a Defensoria não tem legitimidade para pleitear direitos que
são difusos.
Chamo a atenção também para
a matéria da ConJur, que trata de expediente que tramita no Conselho Nacional
do Ministério Público (Defensoria não pode extrapolar funções institucionais).
No expediente, consta manifestação do conselheiro Almino Afonso, observando que
“há casos de membros da Defensoria Pública desempenhando o papel do MP não só
em Minas, mas em todo o país”. O relator afirmou ainda que, além da insegurança
jurídica provocada pela sobreposição de atividades, resta o “prejuízo ao
atendimento individual e ao acesso à Justiça pela população desassistida”. Sem
maior juízo de valor, alguma coisa está acontecendo, pois não? Não é
implicância minha, por favor, mas vejam este caso: sempre achei que um cidadão
— mesmo alguém tido por contraventor da lei — somente deve desocupar sua casa
por ordem judicial. Pois descubro que no Tocantins, a Defensoria inventou a
“Notificação para desocupação”. O que seria isto? Pior: como o cidadão — no
caso em pauta, o marido acusado por delito da Lei Maria da Penha — é pobre,
tem-se que ele, ao mesmo tempo em que é “tirado” da casa pela “notificação”
(que ele cumpriu), na medida em que é hipossuficiente, será, inexoravelmente,
defendido pela mesma Defensoria... Os leitores percebem o que quero dizer? Essa
questão se complica mais ainda quando a Defensoria atua, em alguns casos, como
assistente (de acusação) da vítima. Nesse sentido, temos de discutir coisas
como ocorrem (ou ocorreram) em alguns municípios em que, antes de a Defensoria
colocar um defensor para o acusado em casos da Lei Maria da Penha, destina(va)
defensor para funcionar como assistente de acusação da mulher-vítima.
Ainda: o que dizer de uma
ação (AP Cível 95.0134956-0/DF – TRF 1ª Região) para a defesa do direito de
contribuintes do Imposto de Importação de automóveis?
Como estudioso da
Constituição, penso que a resposta está, digamos assim, na sua “letra” (de
novo, aceito o risco de ser chamado de “originalista”). Qual é o sentido que se
projeta a partir do desenho institucional traçado pela Constituição para essa
importantíssima Instituição chamada Defensoria? Cabe-lhe o assessoramento
jurídico e a eventual defesa dos... necessitados. E que, conforme manda a
Constituição, comprovem insuficiência de recursos. Claro, para justificar os
gastos que o Estado tem com a manutenção do aparato que compõe a estrutura das
defensorias, deve haver uma delimitação de sua atuação. Delimitação quer dizer:
atuará de acordo com o que a Constituição estabeleceu como objeto de sua
atuação: os necessitados que comprovem a hipossuficiência (nesse sentido,
pode-se afirmar, inclusive, que há uma espécie de presunção, não de
hipossuficiência, mas, ao contrário, uma vez que a Carta manda comprovar; fosse
o contrário, provavelmente a Constituição teria invertido esse ônus,
determinando, textualmente, que o Estado é que deveria provar o estado de não
hipossuficiência). Desculpem-me por ser quase-tautológico.
A “viúva” e a eficiência
Há que se ter claro que
essa questão provém, inclusive, de uma necessidade de otimização da ação
estatal: gente demais cuidando de um mesmo conjunto de atividades pode dar
muito errado (lembrem-se do que disse Guimarães Rosa: querer demais o bem...).
Eis que, seria de se perguntar, o que justificaria a movimentação de todo
aparato da Defensoria do Estado do Mato Grosso para defender os usuários dos
serviços daquelas empresas que, ao que consta, não atingem — primordialmente —
os necessitados. Muito pelo contrário, em um país como o nosso, serviços de TV
a cabo são quase que privativos da classe média. Talvez hoje, diante do novo
milagre econômico — e que bom que estejamos vivendo isso —, também a classe
média-baixa tenha acesso a esse tipo de serviço. Mas, de qualquer modo,
convenhamos: alguém que contrata esse tipo de serviço e que possui mais de um
televisor em sua residência não se enquadra, exatamente, nos limites semânticos
da palavra “necessitados” (ou de hipossuficiente ou de não privilegiado). A
menos que tenhamos como certo dizer que “o conceito de necessitados é aquilo
que cada um disser que é”.
Alguém poderia dizer: mas
isso é uma ofensa aos direitos do consumidor. Você é um conservador! Está
contra o CDC etc. E, com certeza, a maioria dos moradores da cidade beneficiada
dirá que a Defensoria agiu bem ao ingressar com a referida ação! Certo,
certo... e certo. Mas, eis então que seria de se perguntar: o tal Código de
Defesa do Consumidor não exige que haja, em cada Estado da Federação, uma
delegacia e uma promotoria especializadas na apuração de infrações de consumo?
O Ministério Público é, pela Constituição, parte legítima para propor ACP.
Então, pelo “princípio” da eficiência —que faz parte da Constituição, posto lá
por emenda constitucional —, por que a combalida "viúva" deve pagar
duas instituições para fazer a mesma coisa?
É isso que quero discutir.
Por que o Estado deve pagar duas instituições para fazer a mesma coisa e, pior,
ficarem disputando quem melhor defenderá os pobres (ou até os não pobres)? Até
arriscaria perguntar: por que razão o MP não fez ação civil nesse sentido?
Claro que, fosse eu membro do MP do Mato Grosso, responderia: “não fiz
provavelmente porque há outras coisas mais importantes a fazer no Estado do que
defender possuidores de mais de uma TV e que tenham pontos extras em suas
casas”. Em um país em que milhões ainda não foram, sequer, inseridos no mercado
de consumo e em que direitos sociais básicos como habitação, salubridade,
transporte, educação e saúde ainda capengam, essa resposta seria bastante
acertada. Provavelmente me dariam razão os habitantes de Cuiabá. Parece-me que
são questões privadas que devem ser tratadas por cada morador que possui mais
de uma TV. Aliás — e vou aqui fazer (mais) uma defesa dos advogados que tem
seus escritórios espalhados por todo o Brasil —, para o que, então, serve tanta
gente a se formar nas faculdades? Serão eles, no futuro, todos juízes,
promotores, defensores, delegados, procuradores do Estado, da União, escrivães
etc. —espero não esquecer nenhuma profissão e também nem estou hierarquizando?
Quem (ainda) quer ser advogado “privado”?
A colonização do mundo da
vida
Tenho isso muito claro — e
uma pitada de liberalismo às vezes faz bem: o sujeito que tem várias TVs, ao
meu sentir, em um país carente de recursos, se quiser vá a juízo disputar se
deve ou não pagar os ponto extras da TV a cabo... Mas que vá contratando o seu
próprio advogado. E pagando-o. Por que temos que estatizar um montão de coisas
que são de âmbito privado? Aliás, no fundo, paradoxalmente, há algumas ações
que enfraquecem a cidadania. As pessoas já não reivindicam. Correm a juízo. Nem
mesmo os vereadores legislam ou organizam a sociedade. Qualquer problema,
correm ao MP e à Defensoria que, por sua vez, entrarão em juízo. Ao invés de
fortalecermos a cidadania, fortalecendo as organizações de pessoas,
substituímos elas... ingressando com ações. Espero que compreendam o que quero
dizer. Não devemos terceirizar a cidadania a esse ponto. Não se deve tutelar as
pessoas. E pessoas tuteladas não reivindicam. Por isso um autor do porte de
Habermas faz uma crítica ao direito quando ele “coloniza o mundo da vida”.
Substituir o cidadão — mormente em questiúnculas privadas — é colonizar seus
direitos. E sua vida.
Lembro, por outro lado,
que, na ADI 2.903, o STF declarou inconstitucional um dispositivo de lei
estadual que determinava que a Defensoria defenderia os funcionários públicos
acusados de processos administrativos e judicias. O STF disse que havia um
problema fulcral na Lei: o fato de que, no meio dos funcionários públicos, por
certo, estariam inúmeros que não se enquadravam no conceito de hipossuficientes
(muitos, provavelmente, proprietários de várias TVs e assinantes de TV a cabo,
com pontos extras, se me entendem a metaforização). Ou seja, os funcionários
públicos do referido Estado federado que não comprovassem ser hipossuficientes,
deveriam pagar seu próprio advogado. Simples, pois. E correto.
MP e Defensoria:
stakeholders
Dizendo de outro modo e
resumindo. Desse jeito o prejuízo maior será mesmo do próprio consumidor que
verá seu dinheiro ser gasto excessivamente duas vezes: para pagar o ponto extra
e para pagar a Defensoria e o MP para atuarem na mesma esfera de competência.
Minha proposta: vamos sentar em torno de uma mesa e vamos definir quem faz o
que. Urgentemente. Parênteses: poderia falar aqui de outras situações (e há inúmeras).
De todo modo, tratarei de outros exemplos em outra coluna. Minha intenção é
aprofundar o debate e fortalecer o diálogo com – e entre - as Instituições
envolvidas.
Portanto, na esteira do que
vem ocorrendo em vários lugares do mundo e é objeto de profundas pesquisas aqui
no Brasil, proponho um diálogo institucional (por exemplo, essa questão assume
relevância em países como Nova Zelândia, Canadá, em que a “divisão de poderes”
assume novas perspectivas, para além da judicialização). Não são instituições
adversárias, são stakeholders.
Em suma, faço essas
reflexões com toda a lhaneza. A Defensoria é instituição importantíssima. O
Ministério Público também. Despiciendo dizer isso. Mas está na hora de
discutirmos atribuições e competências, para que a população (necessitados e
não necessitados) não tenha que pagar muita gente para fazer a mesma coisa. Por
isso, o judiciário julga, o MP... bem, assim por diante. Já deveríamos saber o
resto da frase. Mas parece que ainda não sabemos.
Numa palavra: essa discussão
ocorre em um espaço no qual o sentido não pode ficar encoberto. Não há grau
zero de sentido. Ou é, ou não é. Contra o niilismo de que “fatos não há, só há
interpretações”, ouso dizer que “só há interpretações porque há fatos”.
Portanto, estes “não são qualquer coisa”.
De outra banda, não basta
simplesmente querer fazer o bem. Sempre é bom lembrar: “Querer o bem com demais
força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por
principiar...” Bem, esse Guimarães Rosa sabia um pouco das coisas!
Lenio Luiz Streck é
procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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Revista Consultor Jurídico,
21 de fevereiro de 2013