DIÁRIO DE CLASSE
Ronald Dworkin e o sentido da vida
Por Francisco José Borges Motta
O mundo acordou, no último dia 14 de
fevereiro, abatido pela notícia do falecimento de Ronald Dworkin, considerado
por muitos o mais original e poderoso filósofo do Direito da língua inglesa
[1]. A leucemia o abateu em Londres, aos 81 anos. A academia fica diminuída
pela sua ausência.
Particularmente, tenho motivos de
sobra para ficar entristecido. Sou um grande admirador de seu pensamento. Não
por acaso, meu único livro tem o nome Levando o Direito a Sério — e é, na
prática, do título à última linha, uma homenagem ao trabalho de Dworkin, uma
tentativa de compreendê-lo e de traduzi-lo para o direito brasileiro.
Pois foi logo nesse mesmo 14 de
fevereiro que surgiu a oportunidade, pontual e inadiável, de ocupar esse
prestigiado espaço da ConJur. Então, não tenho como escrever sobre outro
assunto: falaremos um pouco sobre Dworkin.
É provável que a maioria de vocês já
tenha alguma noção a respeito das principais teses desse jusfilósofo
norte-americano. Para citar apenas uma, bem conhecida, Dworkin defendeu que o
juiz não dispõe de uma margem de liberdade para aplicar o Direito como lhe
parece mais justo, ou mais razoável. Em termos mais técnicos, Dworkin não
reconhecia ao juiz o chamado poder discricionário no ato decisional. Nem mesmo
nos denominados casos difíceis, ou seja, naqueles casos em que os parâmetros
normativos vigentes (Constituição, lei, precedentes) não apresentariam, de
forma inequívoca, a resposta a ser dada pelo Direito. Dworkin não concebia que
pudesse haver um momento em que juiz deixasse o Direito de lado e entrasse em
campo, na falta de outra solução melhor, com seus próprios juízos pessoais.
Para ele, o Direito é um sistema tão rico e tão abrangente que seria altamente
improvável que ele próprio (o Direito) não estivesse suficientemente apto a
fornecer padrões suficientes para que o caso fosse resolvido. Bastava que ele
fosse corretamente interpretado. Assim, o juiz deveria encontrar a solução para
o caso (mesmo o mais difícil, pois) no próprio Direito, por mais que seja
sempre controvertido o que exatamente o Direito, interpretado na luz de um caso
específico, prescreve como correto.
Como é que se faz isso? De acordo
com Dworkin, quando diante de uma controvérsia desse tipo, o juiz estaria — ao
invés de “livre” para decidir a contenda — obrigado a argumentar com
princípios, ou seja, com argumentos de natureza moral que favorecessem os
direitos em disputa. Notem: ao invés de liberdade, de discricionariedade judicial,
princípios. Essa seria a responsabilidade política do juiz: procurar, nos
princípios que compõem o Direito como um todo, a melhor solução para o caso.
Quer dizer, os princípios passam a ter força normativa — o Direito é um sistema
de regras e princípios — e o juiz, portanto, o dever de aplicá-los
corretamente. Assim, segundo Dworkin, haveria uma resposta correta para cada
caso (the one right answer), e caberia ao juiz, interpretando princípios, o
dever de encontrá-la.
Alguns de vocês talvez pensem que
essa distinção (entre agir discricionariamente e interpretar corretamente o
Direito) não tem consequência prática; ou melhor, que dificilmente se saberá,
pelos fundamentos de uma decisão judicial, quando o juiz agiu de uma forma ou
de outra. De fato, isso não é algo simples de se fazer. Mas pensem nisso (no
dever de fornecer a resposta correta), como uma obrigação de meio, e não de
resultado. É importante, para o caráter democrático de uma comunidade politica,
que o juiz saiba que não está autorizado a decidir discricionariamente – o que,
diga-se, nada tem a ver com independência judicial. Tema para outra conversa.
Mas me permitam, aqui, uma nota à
margem. Vejam que curioso: como percebem, Dworkin propôs o ingresso dos
princípios na prática do direito com o objetivo de conter os poderes do juiz,
não de ampliá-los. Trata-se da prova mais eloquente, na minha opinião, de que
sua obra ou bem não foi lida, ou bem não foi devidamente assimilada pelo
establishment jurídico brasileiro. Salvo raríssimas exceções, os princípios
aparecem na argumentação jurídica em geral – e na fundamentação de decisões em
específico – como uma forma de justificar a abertura das possibilidades
interpretativas do Direito. Quando, para Dworkin, como vimos, é precisamente o
contrário. Reparem: a prática do Direito é, sim, interpretativa. Mas há
interpretações melhores do que outras, mais bem ajustadas à integridade do
Direito – e, nesse sentido, corretas. E é para construir essa proposta
interpretativa (a melhor, ou a correta) que o juiz tem de se entender com
princípios jurídicos.
Enfim. Não, tenho como, aqui,
discutir esse tema, absolutamente complexo, com maior profundidade. Guardemos,
contudo, a mensagem: discricionariedade judicial e princípios estão, para
Dworkin, em rota de colisão.
O título do texto
Bem ou mal entendidas, as teses,
digamos assim, mais jurídicas de Dworkin são razoavelmente conhecidas — do meio
acadêmico, ao menos. Há bastante literatura a respeito. Mas há um lado menos
conhecido (ou explorado) desse grande autor. E é sobre este que vamos conversar
agora.
Vocês sabiam que, além de escrever
muito sobre Direito e Filosofia, Dworkin também desenvolveu uma teoria sobre
como viver bem? É isso mesmo: no seu último livro, Justice for Hedgehogs (algo
como Justiça aos Ouriços),somos apresentados a uma releitura de uma tese
filosófica antiga, denominada de teoria da unidade do valor. Na versão
dworkiniana, ela serve para subsidiar a afirmação de que as verdades sobre “o
que é bom”, sobre “como viver bem” ou sobre “como ser bom”, são não só
coerentes, mas também se apoiam reciprocamente. Haveria, assim, conformidade
entre valores morais e éticos. Mais: haveria verdades objetivas (e não apenas
subjetivas, pois) a respeito do valor.
Deixem que eu explique isso melhor.
Por que justiça “aos ouriços”?
Aqui, a referência é feita a um
trabalho de Isaiah Berlin, um filósofo moral que, num estudo sobre Tolstoi, faz
uma comparação entre pensadores do tipo ouriços — movidos por uma ideia
central, que explicam a diversidade do mundo com referência a um único sistema
— e pensadores do tipo raposas — que entendem que a diversidade do mundo, com
seus fins vários e incompatíveis, não autoriza o uso de um único sistema
explicativo. Berlin seria uma raposa; Dworkin, um ouriço. Ambos pegaram o mote
de uma conhecida frase do filósofo grego Arquíloco, segundo quem “a raposa sabe
muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa”. Para Dworkin, a tal grande
coisa seria o valor.
“Ser bom” e “viver bem”?
Dworkin está, aqui, falando sobre
ética e moral. No livro, ele descreve uma teoria sobre o que é viver bem
(Ética) e sobre aquilo que, se quisermos viver bem, nós devemos fazer e deixar
de fazer pelos outros (Moral). E encaixa uma metáfora: imaginem pessoas nadando
em raias separadas de uma piscina. Estes indivíduos podem trocar de raia para auxiliar
os outros nadadores, porém não para machucá-los. Imaginaram? A moral, nesta
ilustração, definiria as raias que separam os nadadores; e estipularia quando
alguém deve trocar de raia — para ajudar os outros nadadores, sempre — e em que
condições seria proibida a troca de raias. A ética estaria ocupada em definir o
que é nadar bem em sua própria raia.
Verdade objetiva a respeito de
valores?
Dworkin crê que algumas instituições
e práticas são realmente injustas independentemente do que eu ou vocês pensemos
a respeito delas. Em palavras mais simples (mas ainda dele), a escravidão, ou a
prática da tortura de crianças por diversão, por exemplo, são erradas em si,
quer dizer, continuariam sendo erradas mesmo que a maioria (ou que todos), por
qualquer razão, pensassem o contrário. Não se trata de uma questão de opinião,
mas de argumentação moral. Eis a questão. Um julgamento valorativo (uma opinião
informada a respeito da correção ou do erro de alguma prática) depende dos
argumentos (morais) que o sustentam — e não do recurso a algum tipo de
realidade que extrapole essas razões. E essa argumentação, para ser considerada
consistente, tem de dar o devido valor à dignidade humana.
Dignidade humana?
Dworkin colocou a dignidade humana
como centro de sua teoria moral. Para ele, se estivermos dispostos a levar a
sério nossa dignidade, devemos obedecer a dois princípios éticos: o princípio
do respeito próprio (principle of self-respect) e o princípio da autenticidade
(principle of authenticity). De acordo com o primeiro, cada pessoa deve levar a
sua vida a sério, ou seja, deve aproveitar, ao invés de desperdiçar, a sua
oportunidade de viver: há, com efeito, uma importância objetiva em se viver
bem, de modo que devemos tratar nossas vidas como dotadas dessa importância. Pelo
segundo, cada um tem a responsabilidade de identificar aquilo que conta como
sucesso em sua própria vida (já que você se leva a sério — pondera o autor —,
viver bem expressa o seu próprio estilo de vida, a maneira com a qual você a
encara).
Afinal: como, então, devemos viver?
Para Dworkin, viver bem, ou ter uma
vida boa, é matéria de interpretação. Trata-se, ambos, de conceitos
interpretativos e interdependentes. Ainda que distintos. Viver bem significa o
esforço em criar uma vida boa, sujeita apenas a certas restrições essenciais à
dignidade humana. O autor desenvolve a hipótese de que viver bem é dar um
sentido ético à vida, como um pianista dá sentido à música que toca. Dworkin
afirma que o valor final de nossas vidas é adverbial, e não adjetivo, querendo
dizer que o valor se encontra mais no meio (ou no modo como se vive) do que no
resultado desta performance (é o que chama de performance value). Voltando à
analogia com a arte, é como comparar uma pintura original, produto de uma
determinada performance, que se valoriza, com uma mera cópia da tela: ainda que
o resultado possa ser parecido, o valor estaria na performance, na construção
da obra. O autor acredita que devemos viver uma vida que nos dê orgulho mesmo
nos momentos adversos. E essa ambição somente é explicável quando acreditamos
ter a responsabilidade de viver bem.
E o sentido da vida?
De acordo com Dworkin, devemos
tratar a construção de nossas vidas como um desafio, que podemos enfrentar de
maneira boa ou ruim. Devemos assumir a ambição de fazer de nossas vidas boas
vidas: autênticas e valiosas, ao invés de mesquinhas ou degradantes. Em
especial, devemos honrar nossa dignidade. Devemos encontrar o valor de viver —
o sentido da vida — em viver bem, tanto quanto encontramos valor em amar, pintar,
escrever ou cantar bem. Não há outro valor duradouro ou sentido para nossas
vidas — mas isso já são valor e significado suficientes. Na verdade, disse
Dworkin, isso é maravilhoso!
Concluindo
Sinceramente? Eu não tenho a menor
ideia se Dworkin tem ou não razão, nisso de defender que o ser humano tem a
responsabilidade (notem a gravidade disso!) de viver bem. Por tudo o que li, e
pelo profundo respeito que tenho pela sua obra, tendo a pensar que sim. Mas,
por mais dworkiniano que eu seja (endosso praticamente todas as suas teses
sobre o Direito), jamais me arriscaria a escrever uma linha sequer sobre o
sentido da vida de outrem.
De qualquer forma, espero ter
conseguido despertar a curiosidade de alguns de vocês pelos textos de Dworkin
(sejam os jurídicos, sejam os mais, por assim dizer, abrangentes — saibam que o
próprio Dworkin, creio, não endossaria uma distinção rígida entre essas
categorias). Não sugiro, claro, que se leia Dworkin em busca de uma vida melhor
— contudo, se vocês a encontrarem com a ajuda dele, tanto melhor! Meu objetivo
aqui, entretanto, foi bem mais modesto: apenas o de mostrar um lado menos
explorado desse gigante intelectual, cujo complexo sistema de ideias — como
corretamente observou Ronaldo Porto Macedo Jr. na apresentação da versão
brasileira da excelente obra Ronald Dworkin, de Stephen Guest —, é uma vítima
frequente de interpretações inadequadas e simplificadoras. Apenas isso.
Por fim, uma história real. Acordei
hoje com um telefonema e três perguntas: eu sabia que Dworkin havia falecido?
Eu aceitaria o convite de escrever neste Diário de Classe alguma coisa sobre
ele? Como eu estava?
Sim, eu sabia; sim, eu topo. Como eu
estou? Como todo acadêmico: de luto.
[1] As palavras efetivamente
empregadas pelo britânico Guardian, no generoso obituário que veiculou em seu
website (www.guardian.co.uk), foram: “the most original and powerfull
philosopher of law in the English-speaking world”.
Francisco José Borges Motta é
promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, mestre em Direito Público pela
Unisinos.
Revista Consultor Jurídico, 16 de
fevereiro de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário