JUSTIÇA TRIBUTÁRIA
As vítimas do IRPF e as despesas com saúde
Por Raul Haidar
O Regulamento do Imposto de Renda — o Decreto 3.000,
de 26 de março de 1999 —, em seu artigo 80, trata das deduções relacionadas com
despesas necessárias à saúde do contribuinte, ali denominadas como despesas
médicas. As deduções podem ser feitas, ou seja, pode o contribuinte não
considerá-las para efeitos fiscais. Assim, algumas pessoas optam por pedir
descontos quando pagam diretamente aos médicos em dinheiro, ao que parece, incentivados
pelo tratamento injusto que sofrem por parte da Receita. Isso pode ser crime e
deve ser evitado. Mas agentes do fisco também cometem crime, quando o
lançamento altera a verdade dos fatos.
Tais despesas não estão sujeitas a qualquer limite,
uma vez que a Constituição assegura no caput do artigo 6º que a saúde é um dos
direitos sociais. Tanto assim que a pessoa pode obrigar o poder público a
custear-lhe tratamento médico de custos elevadíssimos, por medidas judiciais.
O artigo 73 do regulamento afirma que todas as
deduções se sujeitam a comprovação ou justificação perante o fisco. O parágrafo
1º menciona a possibilidade de que deduções exageradas ou se não forem cabíveis
possam ser glosadas sem a audiência do contribuinte.
Na prática, porém, temos visto diversos casos de
injustiças contra o contribuinte, tratado como se fosse um marginal, a quem se
atribui prática de crime do qual é presumidamente tido como culpado, sem
direito a defesa.
Tal comportamento, além de gerar conflitos que melhor
seria se fossem evitados, impede que o contribuinte tenha respeito pelo fisco,
que faz questão de se travestir de animal irracional, predador, cujo único
desejo é fazer vítimas, a merecer o ridículo apelido de leão.
Já ocorreu recentemente que um contribuinte foi
intimado para exibir relatórios médicos, pareceres e laudos clínicos, relativos
a grave enfermidade que o acomete e por conta da qual fez pagamentos
expressivos, comprovados de forma idônea, não só com recibos e cópias de
cheques, mas com declarações expressas dos profissionais que receberam os
pagamentos em face dos serviços efetivamente prestados.
Desejava o auditor fiscal que o contribuinte
fornecesse: “orçamento com indicação dos procedimentos realizados, relatórios,
laudos e/ou documentos probatórios da realização dos serviços, bem como
identificação do paciente”.
Tal informação não pode nem deve ser prestada. O
artigo 928 do RIR obriga a pessoa física a prestar informações sobre seus
rendimentos e sobre os aspectos fiscais e tributários de sua vida econômica,
mas não sobre sua vida íntima, sobre o que faz parte de sua privacidade, honra
e imagem, nos termos do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. Eis o que
diz o texto da Carta Magna:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;
Portanto, não existe obrigação, em relação a
tratamentos médicos, especialmente de doenças que atingem até mesmo a honra das
pessoas, que o contribuinte forneça informações sobre “procedimentos
realizados, relatórios, laudos e/ou documentos probatórios da realização dos
serviços...”. Se o contribuinte já forneceu os recibos e esses foram
confirmados pelo profissional como verdadeiros e os serviços lhe foram
prestados, a “glosa” é absolutamente ILEGAL e a dedução é legítima.
O artigo 80 do RIR em nenhum momento condiciona a
dedução dessas despesas a qualquer pesquisa sobre os “procedimentos realizados,
relatórios, laudos e/ou documentos probatórios da realização dos serviços...”.
Não pode o fisco ir além do limite determinado pelo regulamento. Se o fizer,
estará agindo contra a lei e, em evidente abuso de direito, lançando presunção
de fraude não só sobre o contribuinte, mas também sobre os profissionais que
lhe prestaram serviços e assinaram os recibos, declarando ainda que são eles
verdadeiros.
O Decreto 1.171, de 22 de junho de 1994, que trata do
Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo
Federal, ordena que:
VIII - Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor
não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria
pessoa interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou
estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão ou da
mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto mais a de uma
Nação.
Ademais, a Constituição Federal, em seu artigo 37,
ordena:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência...
Ora, se toda pessoa tem direito à verdade e o
servidor não pode omiti-la ou falseá-la, é inadmissível que despesas dedutíveis
sejam “glosadas” com o uso de uma tentativa pouco sutil de alterar a verdade ou
inverter o ônus da prova.
Não cabe ao contribuinte provar que não sonegou. Cabe
ao fisco provar a suposta sonegação ou dedução indevida. Nesse sentido é a
doutrina.
HUGO DE BRITO MACHADO, referência mundial em Direito
Tributário, publicou inúmeros livros, dentre os quais Mandado de Segurança em
Matéria Tributária (Ed. Dialética, S.Paulo, 2003) em cuja página 272 dá-nos
preciosa lição:
O desconhecimento da teoria da prova, ou a ideologia
autoritária, tem levado alguns a afirmarem que no processo administrativo
fiscal o ônus da prova é do contribuinte. Isso não é, nem poderia ser correto
em um estado de Direito democrático. O ônus da prova no processo administrativo
fiscal é regulado pelos princípios fundamentais da teoria da prova, expressos,
aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas são aplicáveis ao processo
administrativo fiscal. No processo administrativo fiscal para apuração e exigência
do crédito tributário, ou procedimento administrativo de lançamento tributário,
autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de provar a ocorrência do fato
gerador.
O lançamento de que foi vítima esse contribuinte tem
todas as características do crime de excesso de exação. Já está na hora de
pessoas honradas serem tratadas como tal pelos servidores públicos. Sem isso,
não haverá respeito entre as partes.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista,
ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do
Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2013.
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