EMBARGOS CULTURAIS
Os Custos dos Direitos, parte I
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Os Custos dos Direitos — Por que a liberdade depende
dos tributos (The Cost of Rights — Why liberty depend on Taxes)[1], de Stephen
Holmes e Cass Sunstein é provavelmente um dos mais importantes livros de
Direito e políticas públicas publicado nos Estados Unidos no fim do século
passado. Stephen Holmes leciona em Nova Iorque (New York University Law School)
e Cass Sunstein é professor em Chicago (University of Chicago). São autores de
primeira grandeza, gozam de muito respeito internacional, tem muito a nos
ensinar. Transformam o familiar em estranho.
Ainda que seus autores tenham derivado e avançado
para outros campos temáticos[2], persiste, como livro de referência, esse
interessantíssimo texto. Holmes e Sunstein influenciaram vários pesquisadores
brasileiros, a exemplo de Cristiano Carvalho, Paulo Caliendo, Flávio Galdino e
Gustavo Amaral. Tanto quanto sei, não há, ainda, tradução para o português
dessa valiosa obra.
Invocam, ainda que indiretamente, o tema da reserva
do possível, do ponto de vista estruturalmente orçamentário, assunto estudado
por autores muito importantes no Brasil, a exemplo de Fernando Facury Scaff. A
matéria também foi discutida por nosso Supremo Tribunal Federal, que no caso
centrou-se no mote da força normativa da constituição, de feição alemã, Die
Normative Kraft der Verfassung, título de obra de Konrad Hesse, traduzida para
o português pelo ministro Gilmar Mendes e publicada em Porto Alegre por Sérgio
Antonio Fabris.
Para Holmes e Sunstein “direitos são serviços
públicos que o Governo presta em troca de tributos”[3]. O livro é dividido em
sete partes. A introdução sumariza observações relativas a algum senso comum,
no sentido de que titularidade e fruição de direitos são realidades
convergentes (Common sense about rights). No primeiro capítulo do livro os
autores argumentam que um Estado sem recursos não teria como proteger direitos
(Why a penniless State cannot protect rights). A parte seguinte trata da
impossibilidade que direitos sejam absolutos (Why rights cannot be absolute). Em
seguida os autores discorrem sobre o fato de que direitos demandam
responsabilidades (Why rights entail responsabilities). Na quarta parte os
autores exploram o tema da compreensão dos direitos como barganhas
(Understanding rights as bargains). A sessão conclusiva explora a natureza
pública das liberdades privadas (The public character of private freedoms). Um
apêndice, com indicativos dos custos de alguns direitos nos Estados Unidos, dá
fim a este portentoso livro. No presente ensaio cuidarei, tão somente, da parte
introdutória.
Sunstein e Holmes começam com referência a incêndio
que ocorrera no estado de Nova York, em 26 de agosto de 1995. Ao que consta,
fora o pior incêndio acontecido naquela unidade federada norte-americana, na
segunda metade do século XX. O combate ao sinistro custou quase US$ 3 milhões
ao contribuinte norte-americano. Não se registrou nenhum óbito[4].
Sem que se tenha a intervenção do Estado, argumentam
os autores, o combate àquele incêndio seria impossível. Com alguma ironia, lembraram-se
de Ronald Reagan, para quem “o governo não era a solução, era o problema”[5].De
igual modo, criticaram os libertários, pensadores contemporâneos que refutam a
presença do Estado, defendendo que este último deveria intervir o mínimo
possível na vida das pessoas[6].
Charles Murray[7] e David Boaz[8] são os pensadores
libertários criticados por Holmes e Sunstein. Murray e Boaz publicaram vários
textos de combate a governos intervencionistas, bem como militam em think
thanks norte-americanos. Para Boaz e Murray o grande problema dos Estados
Unidos consiste no excesso de atividades governamentais. Defendem governos
mínimos, com poucas responsabilidades. Entendem que assim, entre outros,
poder-se-ia diminuir a carga fiscal.
Holmes e Sunstein observam que em 1996 o contribuinte
norte-americano teria gasto mais de US$ 11 milhões para proteção de propriedade
privada, o que se faz mediante ajuda direta governamental a pessoas atingidas
por desastres, ou ainda mediante o pagamento de seguros e alívios fiscais[9].
Argumentam também que, ainda que os índices criminais
sejam relativamente altos nos Estados Unidos, os norte-americanos vivem de modo
relativamente seguro. Essa segurança é financiada pelo contribuinte: paga-se
para se viver em paz. Assim, continuam Holmes e Sunstein, “os norte-americanos
parecem que se esqueceram facilmente que direitos e liberdades individuais
dependem fundamentalmente de uma vigorosa ação estatal”[10]. Acentuam o papel e
a importância do Estado, na proteção dos direitos e liberdades.
O argumento central do livro é o de que “direitos
custam dinheiro”[11]; é que “direitos não podem ser protegidos sem apoio e
fundos públicos”[12]. Holmes e Sunstein, para efeitos do livro aqui estudado,
tratam dos custos enquanto custos orçamentários e de direitos, como “interesses
que podem ser protegidos por indivíduos ou grupos mediante o uso de
instrumentos governamentais”[13]. Direitos somente existiriam quando
efetivamente passíveis de proteção.
Para Holmes e Sunstein direitos podem ser definidos
de dois modos: de uma perspectiva moral ou de uma percepção descritiva. Esta
última é característica do positivismo jurídico. Do ponto de vista moral os
direitos são definidos a partir do que o ser humano seria titular, pelo simples
fato de ser humano. É uma compreensão metafísica, conceitual, e não mero jogo
de palavras.
A tradição descritiva, por outro lado, remonta a
Jeremy Bentham, Oliver Wendell Holmes Jr., Hans Kelsen e H. L. A. Hart, autores
que comungam a ideia de que o direito não precisa ser justificado. Deve-se
apenas explicar como os arranjos institucionais de fato funcionam[14]. Essa
linha é empírica, não indaga causas, apenas persegue resultados. Não é
ontológica, isto é, não se resume a definir naturezas jurídicas.
Nesse sentido pragmático, prosseguem Holmes e
Sunstein, “um interesse é qualificado como um direito quando um sistema
jurídico efetivo o reconhece como tal, mediante o uso de recursos coletivos
para defendê-lo”[15]. Direitos, segundo Holmes e Sunstein, têm dentes, isto é,
não são inofensivos ou inocentes. Por isso, na medida em que não garantidos por
arranjos institucionais, jurídicos e políticos — inclusive pela força — os
diretos morais seriam por definição desprovidos de qualquer validade fática:
isto é, não tem dentes[16]. Pode-se motejar que direitos desprovidos de
eficácia ensejariam mero banguelismo jurídico...
Ainda que se imponham obrigações morais para toda a
humanidade, direitos que se sedimentam tão somente em premissas conceituais não
são obrigações legais para pessoas que vivam em território específico. Tais
direitos não existiriam, por absoluta falta de reconhecimento[17].
No entanto, temperam Holmes e Sunstein, direitos de
justificativa moral e direitos de explicação descritiva não necessariamente
seriam opostos ou excludentes. O que os diferencia, entre outros, seria a
agenda de seus defensores. Para um moralista, não haveria direito de poluir.
Para um positivista, por outro lado, pode um interessado comprar esse
direito[18]. É o que ocorre, por
exemplo, no comércio de cessão de créditos de carbono. Moralistas e positivistas
aparentemente se oporiam, no entanto, apenas porque estariam respondendo
questões diferentes[19].
O tema dos custos dos direitos é assunto descritivo e
não de filosofia moral. Direitos de fundo moral, todavia, decorrem de custos
orçamentários apenas quando juridicamente reconhecidos[20]. Além do que,
prosseguem, “direitos são exigidos e obtidos em tribunais”[21]. Não havendo o
reconhecimento de um direito, por agência governamental ou tribunal, não se
pode considerar a prerrogativa efetivamente um direito, no contexto da
discussão orçamentária[22].
Insistem os autores aqui estudados que um “direito
existe, tão somente, quando pode se revelar seus custos orçamentários”[23].
Esse critério pode redefinir nossa compreensão tradicional de direitos
objetivos e subjetivos. O poder de invocar a aplicação de uma norma seria
aferido pelos custos orçamentários que a aplicação da regra possa exigir. A
alocação de recursos, ao fim, é o que permitiria a integração entre a regra
jurídica e seu titular.
Holmes e Sunstein argumentam também que há diferenças
entre valor “liberdade” e o valor “da liberdade”. Isto é, liberdades de nada
valem se o interessado não tenha recursos para torná-las efetivas[24]. Direitos
individuais, assim, seriam bens públicos. Os autores ilustram o argumento com a
atuação dos advogados da ACLU (American Civil Liberties Union, ou Sindicato
Norte-Americano das Liberdades Civis) que cobram honorários abaixo do que
demandariam em outras situações, quando atuam na defesa de direitos
fundamentais.
Nesse caso, tem-se um custo privado, isto é, o
advogado abdicou do valor de seus ganhos. Por outro lado, a ACLU é isenta de
impostos. Por isso, sua atividade é financiada parcialmente com dinheiro
público[25]. Imunidade e isenção fiscais, não nos esqueçamos, são suportadas
por toda comunidade, e por isso devem ser deferidas com cautela.
Argumentam também que os direitos têm custos sociais
além dos custos orçamentários. Exemplificam a premissa com as medidas que se
tomam para proteger direitos de acusados, em suposto desfavor do bem estar do
cidadão que não teria contas para acertar com o Estado policial[26]. Premissa
problemática, à luz de nossas concepções de Justiça.
No entanto, alguns direitos, ainda que custosos para
o contribuinte, de alguma forma, podem ser autofinanciados. O direito à
educação, por exemplo, na medida em que custeado pelo Estado, também projeta
ganhos para toda a população. Países que concedem imunidades e isenções para
gastos com educação, nesse sentido, poderiam exemplificar o modelo. Holmes e
Sunstein ilustram o argumento com os gastos com programas de proteção de
mulheres vítimas de violência doméstica: as beneficiárias desses programas
podem ser incorporadas e assimiladas pelas forças produtivas[27]. Tem-se um
ganho social.
Todos os direitos demandam financiamento. Holmes e
Sunstein sustentam esse argumento com a 3ª Emenda à Constituição
norte-americana[28]. Esta emenda desonerou o cidadão norte-americano de abrigar
soldados em sua casa, ainda no século XVIII. Como consequência, o contribuinte
daquele país precisou de financiar barracas e quartéis[29]. É difícil
compreendermos essa nefasta lógica, porém, para Holmes e Sunstein, um sistema
que escrupulosamente protegesse direitos de suspeitos de práticas de crimes
tornaria mais difícil a prisão destes e, consequentemente, a prevenção de
crimes[30].
Holmes e Sunstein reconhecem problema metodológico
que se deve enfrentar. Referem-se à dificuldade que se tem no cálculo dos
custos dos direitos que o Governo se obriga a garantir. Não se pode saber, por
exemplo, se despesas de treinamento de policiais se revertem, especificamente,
para a humanização da atividade policial ou para a segurança geral da
população[31].
Reconhecem, porém, que, embora seja um truísmo a
concepção de que direitos tenham custos, pode-se invocar malicioso paradoxo: o
cálculo dos custos dos direitos pode ameaçar a realização dos direitos cujos
custos são calculados. Resumidamente, o reconhecimento dos custos dos direitos
poderia explicitar que em troca de direitos deveríamos necessariamente pagar alguma
coisa[32]. Nós nos recusamos, no entanto, a precificar tudo que nos cerca.
O direito ao júri demanda custos. De igual modo, e
com mais intensidade, compensações que são pagas por desapropriação. Holmes e
Sunstein argumentam que quando alguém chama a polícia está se impondo que a
comunidade contribua para o pagamento de demanda individual[33].
A judicialização de boa parte das discussões públicas
faz com juízes decidam exatamente onde alocar o dinheiro dos contribuintes. Por
isso, quando magistrados insistem numa conciliação, reconhecem que buscam
economizar para o Estado[34]. É essa a lógica que rege o modelo conciliatório
norte-americano.
A 11ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos[35],
que proíbe que se ajuízem ações contra unidades da federação em cortes federais
é reconhecimento institucional de que se deve preocupar com o direito
irrestrito de se litigar contra o governo[36]. E ainda, quando um magistrado
determina a ampliação de instalações prisionais, firme no argumento de que a
superpopulação carcerária é violação à 8ª Emenda à Constituição norte-americana
(que proíbe punições cruéis) tem-se como consequência que o Judiciário está
enviando a conta da decisão para o contribuinte[37].
Holmes e Sunstein invocam que setores do Judiciário
são orgulhosos de certo insulamento político, no sentido de que guiam suas
decisões apenas pela razão[38]. Porém, com poucas informações (porque
informações também têm custos) magistrados decidem sobre alocação de recursos,
com o pálio da imunidade eleitoral (não são eleitos), num contexto da mais
absoluta responsabilidade no que se refere à alocação ótima de escassos
recursos públicos[39]. Por isso, muitas vezes, a questão não consiste tão
somente em se saber quanto custam os direitos. Substancializa-se, também, em se
determinar quem é que decide pela alocação dos recursos[40].
Holmes e Sunstein surpreendem porque nos afastam do
lugar comum, da lógica serafínica de que direitos dependem tão só de uma
determinação legal e do voluntarismo de alguns. Holmes e Sunstein são realistas
até a medula. Não discutem aspartame jurídico, não se perdem em intermináveis
questões de regras, princípios e proibições imaginárias de retrocesso onde
nunca houve avanço real. O Direito não é um toque de Midas que nos confere a
redenção.
[1] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, The Cost of
Rights- Why Liberty Depends on Taxes, New York and London: W. M. Norton, 1999.
[2] Conferir interessante estudo de Stephen Holmes,
entre outros, sobre Carl Schmitt e Roberto Mangabeira Unger, a propósito do
anti-liberalismo, The Anatomy of Antiliberalism, Cambridge: Harvard University
Press, 1996. Quanto a Cass Sunstein, entre outros, Free Markets and Social
Justice, New York: Oxford University Press, 1997.
[3] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit. p. 151.
[4] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
13.
[5] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit, loc.
cit.
[6] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[7] Autor, entre outros, de A Curva de Bell,
discutidíssimo livro que, entre outros assuntos, defende a existência de uma
elite cognitiva, identificada pela inteligência de seus membros, e pelo papel e
liderança que exerceriam no meio social e político.
[8] Presidente do Instituto Cato, conhecida
organização norte-americana defensora do Governo mínimo.
[9] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.
cit.
[10] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 14.
[11] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 15.
[12] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[13] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
16.
[14] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[15] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 17.
[16] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[17] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[18] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
18.
[19] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[20] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[21] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
19.
[22] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[23] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[24] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
20.
[25] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
21.
[26] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
22.
[27] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.
cit.
[28] “Nenhum soldado poderá, em tempo de paz, ser
aquartelado em qualquer casa, sem o consentimento do proprietário, nem em tempo
de guerra, mas de forma a ser prescrita pela lei”.
[29] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
23.
[30] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.
cit.
[31] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
24.
[32] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.
cit.
[33] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
26.
[34] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit.,
loc.cit.
[35] “O poder judiciário dos Estados Unidos não se
entenderá a qualquer demanda baseada na lei ou na equidade, iniciada ou
processada contra um dos Estados Unidos por cidadãos de outro Estado, ou por
cidadãos ou súditos de qualquer potência estrangeira”.
[36] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
27.
[37] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
28.
[38] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
29.
[39] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
39.
[40] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p.
31.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em
Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 7 de abril de 2013
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