OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL
Abuso de princípios no Supremo Tribunal Federal
Por Marcelo Neves
Um ministro do Supremo Tribunal Federal, em voto
memorável, no julgamento, em 26 de maio de 2011, da ADI 1.856/RJ (DJe
14/10/2011), em que se declarou a inconstitucionalidade de lei estadual
autorizadora da briga de galo com base no artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII,
da Constituição Federal, afirmou: “A briga de galo ofende [...] a dignidade da
pessoa humana porque, na verdade, ela implica de certo modo um estímulo às
pulsões mais primitivas e irracionais do ser humano [...]. A proibição também
deita raiz nas proibições de todas as práticas que promovem, estimulam e
incentivam essas coisas que diminuem o ser humano como tal e ofende, portanto,
a proteção constitucional, a dignidade do ser humano.”
Foi elogiado em seu voto esdrúxulo e despropositado
(o caso já estava sendo solucionado com base no artigo 225, parágrafo 1º,
inciso VII, da Constituição Federal) por dois outros ministros. Entretanto,
esse exemplo permanece no plano do folclore jurídico supremo.
Uma situação que deve ser levada mais a sério, por
suas implicações potencialmente danosas, ocorreu mais recentemente, no
julgamento da ADI 4.638/DF, em 2 de fevereiro de 2012, referente às
competências do Conselho Nacional de Justiça. O apelo à dignidade da pessoa
humana e à autoridade de Dworkin para justificar a manutenção de dispositivos
da Loman que impunham o julgamento secreto dos magistrados (Lei Complementar
35/1979, artigo 27, parágrafos 2º e 6º, artigos 45, artigo 52, parágrafo 6º,
artigo 54 e artigo 55) em contraposição a regras constitucionais claras,
introduzidas pela Emenda Constitucional 45/2004 (Constituição Federal, artigo
93, incisos IX e X).
Dessa maneira, a inferência natural seria a seguinte:
a dignidade da pessoa humana pertence aos magistrados, não aos cidadãos comuns,
julgados publicamente.
Outro caso cujas consequências poderiam ter sido
desastrosas, pois teria possibilitado a eventual instauração de processo penal
contra a então corregedora do CNJ, ministra Eliana Calmon, diz respeito ao MS
31.085/DF. É surpreendente que um ministro do STF tenha concedido liminar, em
19 de dezembro de 2011 (revogada por outro ministro em 29/02/2012), admitindo,
preliminarmente, que teria havido quebra do sigilo bancário no ato em que a
Corregedoria Nacional de Justiça solicitou, para facilitar a estratégia
investigatória, informações genéricas ao Coaf sobre movimentações financeiras
atípicas no universo de cerca de “216.000 servidores e magistrados”, sem
identificação de nome.
Dessa maneira, deu-se um caráter principiológico à
exigência do sigilo bancário, desconsiderando que a regra legal é clara no
sentido de que a quebra do sigilo bancário envolve a “identificação dos
titulares das operações”. Trata-se de um tipo penal, que não pode ser ampliado
arbitrariamente. E extinguir o Coaf com base nessa princiopiologia, como
insinuou outro ministro, é desviar-se de acordos internacionais em que o Brasil
se comprometeu a lutar contra a lavagem de dinheiro e a criminalidade
financeira em geral.
Em outras situações, prevalece uma clara
inconsistência do STF em relação à aplicação dos princípios. No caso Ellwanger
(HC 82.424/RS, julg. 17/11/2003, DJ 19/03/2004), por exemplo, negou-se caráter
absoluto à liberdade de expressão para afirmar a prevalência do princípio da
dignidade da pessoa humana, conforme um modelo de sopesamento. Já no julgamento
da ADPF 130/DF (julg. 30/04/2009, DJe 06/11/2009), prevaleceu, nos termos do
voto do relator, a tese com essa incompatível, ou seja, a de que a liberdade de
expressão não é norma-princípio e, portanto, não é sopesável.
Por seu turno, observe-se que esta decisão, ao
declarar a Lei 5.250/1967 (Lei de Imprensa) inteiramente não recepcionada pela
ordem constitucional de 1998, com base no argumento de que ela fora editada no
período autoritário, mostrou-se contraditória, pois remeteu a solução dos
conflitos referentes à liberdade de expressão e de imprensa ao CPC, aprovado em
1973, no período mais autoritário do regime militar, assim como CP e o CPP,
ambos originários do Estado Novo.
Antes, caberia sempre observar quais os dispositivos
seriam compatíveis com a nova ordem, especialmente aqueles que, naquela Lei de
Imprensa, pudessem servir para a defesa dos cidadãos contra o poder das
organizações empresariais que controlam a imprensa. A liberdade de expressão
pertence aos cidadãos, não às organizações midiáticas.
Esses casos apontam para a trivialização e a
inconsistência no tratamento dos princípios constitucionais por parte do STF.
Tal situação de confusão jurisprudencial relaciona-se com o fascínio
doutrinário, que se expressa no lugar comum do chamado “neoconstitucionalismo”,
ao relacionar os princípios com a democracia e as regras com a postura
autoritária.
Uma opção mais acentuada por princípios ou regras não
tem nenhuma relação com o binômio “democracia/autocracia” ou
“constitucionalismo/autoritarismo”. Especialmente quando vinculamos os
princípios a modelos axiológicos, teleológicos ou morais. A experiência
histórica é contundente a esse respeito. Durante o nacional-socialismo, foram
precisamente os juristas que proclamaram a importância de princípios orientados
por valores e teleologias, especialmente nos termos da tradição hegeliana, que
pontificaram nas cátedras (por exemplo, o festejado Karl-Larenz). Autores ditos
“formalistas”, os quais Hauke Brunkhorst relacionou sugestivamente ao
“positivismo jurídico democrático”, destacando-se Hans Kelsen, foram banidos de
suas cátedras ou não tiveram acesso ao espaço acadêmico.
Evidentemente, para o “Führer”, um modelo com ênfase
em regras constitucionais e legais seria praticamente desastroso. Uma teoria de
princípios referentes ao desenvolvimento do povo alemão na “história universal”
como “realização do espírito geral” ou “aprofundamento do espírito do mundo em
si” (Hegel) apresentava-se muito mais adequada aos “fins” do nazismo.
Mas os exemplos não se restringem à experiência
alemã. Também não houve domínio de uma teoria formalista da argumentação
jurídica e constitucional no regime militar brasileiro. Miguel Reale, talvez o
teórico e filósofo do Direito mais influente no período autoritário, adotava um
modelo axiológico nos termos da tradição hegeliana, tendo sido, com base em sua
“teoria tridimensional do Direito”, um forte crítico das vertentes ditas
“formalistas”.
Naquele contexto, não se conteve nas abstrações
teóricas, mas argumentou substantivamente, em nome do “realismo objetivo”, a
favor do autoritarismo imposto pelos militares em 1964 (cf. Revista de
Informação Legislativa, ano 20, nº 77, pp. 57-68). É claro que qualquer modelo
rigoroso de regras constitucionais seria inoportuno para um regime político de
“exceção”, ou seja, um regime em que as exceções definidas ad hoc para a
manutenção da eventual estrutura de dominação constituem a “regra”.
O fato de que o autoritarismo distanciou-se de um
modelo de regras torna-se mais patente na experiência latino-americana em
virtude da falta de consistência ideológica dos regimes, o que tornava
imperiosa uma maleabilidade às pressões particularistas de grupos e pessoas,
implicando a ruptura casuística das regras por eles mesmos impostas, ao sabor
das conveniências políticas concretas.
Em 2003, ao retornar ao Brasil após alguns anos de
atividade de pesquisa e ensino na Europa, deparei-me com uma ampla recepção do
debate em torno de princípios e regras, ponderação e otimização,
principiologia, constitucionalização do Direito e temas conexos. Um tanto
surpreso, observei que essa linguagem não se restringia à teoria do Direito e
da Constituição, mas se espraiava na dogmática jurídica e na prática
jurisprudencial, sem limites.
Procurei ser atento à discussão. Passei a observar
que, salvo algumas exceções, tratava-se, mais uma vez, de importação acrítica
de construções teóricas e dogmáticas, sem o crivo seletivo de uma recepção
jurídico-constitucionalmente apropriada. Em grande parte, configurava-se a
banalização de modelos principiológicos, desenvolvidos consistentemente no
âmbito de experiências jurídicas bem diversas da nossa.
Por um lado, a invocação aos princípios (morais e
jurídicos) apresentava-se como panaceia para solucionar todos os males da nossa
prática jurídica e constitucional. Por outro, a retórica principialista servia
ao afastamento de regras claras e “completas”, para encobrir decisões
orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto os
advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se
exitosamente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização
emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um tom de respeitabilidade.
Isso tudo, parece-me, em detrimento de uma concretização jurídica
constitucionalmente consistente e socialmente adequada.
Mas a minha posição não se restringe a uma
“desmistificação” ou, para usar um termo em voga, a uma “desconstrução” da
teoria, da dogmática e da prática jurídicas e constitucionais que, sob a
rubrica do princípio, da ponderação, da otimização e de rótulos afins, passou a
ser não apenas dominante, mas também sufocante no Brasil da última década.
Apesar de tomar como objeto de crítica o abuso de princípios em nossa doutrina
e prática jurídico-constitucional, levo a sério os princípios constitucionais,
apontando para a sua relação de complementaridade e tensão com as regras.
Os princípios servem para abrir e enriquecer a cadeia
argumentativa. Eles envolvem argumentos primariamente substantivos, referentes
à adequação social do Direito. Eles têm um caráter reflexivo em relação às
regras. Eles atuam em forma de Hidra.
As regras é que servem ao fechamento da cadeia
argumentativa. Envolvem argumentos primariamente formais, referentes à
consistência do sistema jurídico. Elas é que têm um caráter hercúleo.
A relação entre princípios e regras importa,
portanto, um paradoxo da busca incessante de um equilíbrio instável entre
consistência jurídica e adequação social. O mero principialismo leva a um
realismo com capa moral, deixando o Direito afogar-se nos particularismos dos
interesses de grupos e pessoas. O puro modelo de regras conduz ao formalismo e
à rigidez, tornado o direito insensível aos problemas sociais.
A rotinização e a trivialização dos princípios na
jurisprudência do STF e do Judiciário em geral têm levado a uma metamorfose
perigosa para o Estado constitucional: ao abusarem dos princípios, que podem
atuar como remédios contra a insuficiência das regras em casos jurídicos e
constitucionais controvertidos, transformam-nos em venenos.
Nesse contexto, os princípios tornam-se
“significantes flutuantes” ou “valores simbólicos zero” (Lacan, Lévi-Stauss).
Atuam analogamente a estes no xamamismo, no qual, segundo Lévi-Strauss, o valor
simbólico zero pode ser aplicado a qualquer situação, comportando todos os
sentidos, conforme o contexto do ritual ou da magia.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho
Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto
Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC
(www.idp.edu.br/observatorio).
Marcelo Neves é professor titular de Direito Público
da Universidade de Brasília. Membro do Conselho Editorial do Observatório da
Jurisdição Constitucional.
Revista Consultor Jurídico, 27 de outubro de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário