Conexão entre moral e Direito nas
escolhas sobre a vida
POR RAFAEL TOMAZ DE OLIVEIRA
Durante as férias escolares, principalmente
neste último mês de janeiro, ocupei boa parte do meu tempo com estudos sobre
filosofia moral. A última coluna que escrevi (clique aqui para ler) dava conta
daquilo que foram os primeiros passos deste estudo, através de uma comparação
entre as propostas de Richard Posner e Ronald Dworkin. Apontei, na ocasião,
para aquilo que seria o cerne das propostas de cada um desses dois importantes
autores da teoria contemporânea do Direito.
Por um lado, Posner se alinha a um
pensamento que ele mesmo classifica como “relativismo moral moderado”,
concluindo que o estudo da filosofia moral, bem como a análise dos argumentos
morais que podem ser usados no momento de interpretar determinados conceitos
jurídicos, não contribui em nada para a solução dos problemas práticos que
surgem da atividade cotidiana do Direito. Em lugar de uma análise moral do
fenômeno jurídico, Posner propõe uma análise profissional, ancorada em métodos
da sociologia.
De outra banda, para Dworkin, a
interpretação de conceitos que são utilizados diuturnamente pelos juristas no
desempenho de suas práticas, tais como, liberdade, igualdade, democracia etc.,
são conceitos controversos e, precisamente por isso, a sua efetiva articulação
no momento de construir respostas para os casos jurídicos implica o
enfrentamento de problemas morais. Daí a sua tese de que o argumento jurídico é
um tipo específico de argumento moral, havendo, entre moral e Direito, uma
interconexão.
Já na coluna desta semana, pretendo
lançar argumentos um pouco mais abrangentes sobre essa discussão. Usarei como
referência o texto de três autores que considero emblemáticos para compreensão
das posições que se pode ter com relação à moral no mundo contemporâneo. Dessa
vez, nenhum dos autores é jurista de formação. Mas, todos eles, refletem sobre
problemas que possuem íntima relação com o Direito.
Considerarei os argumentos de Luiz
Felipe Pondé, filósofo brasileiro e colunista semanal do jornal Folha de
S.Paulo. Depois, analisarei pontos do livro Um Mundo Iluminado, de autoria de dois
filósofos estadunidenses, Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly. Entre esses
dois últimos autores, certamente, Hubert Dreyfus é o mais conhecido (embora
Dorrance Kelly ocupe um posto importante no contexto da filosofia
estadunidense, uma vez que é professor na Universidade de Harvard). Dreyfus é
professor na Universidade da Califórnia, Berkeley, e estudioso da corrente
filosófica chamada fenomenologia. Seus estudos encontram na obra de Martin
Heidegger um ponto de referência e os seus trabalhos publicados são, em grande
medida, dedicados à estética literária e, recentemente, às questões relativas à
inteligência artificial (os computadores e a internet) e as suas implicações
filosóficas e sociais.
Vejamos de que modo cada um desses
autores pode contribuir para o nosso objetivo: posicionar as possibilidades de
enquadramento das questões morais em nosso mundo contemporâneo.
O texto de Pondé
A coluna da última segunda-feira
(4/2) de Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo, apresenta uma reflexão
interessante.[1] A questão é colocada no contexto da filosofia moral, mas, como
poderemos perceber, nela existem também consequências jurídicas. No caso, o
articulista nos chama a refletir sobre a questão — que desembarcou há pouco
tempo em solo brasileiro — a respeito do exame que pode identificar, com algum
grau de certeza científica e já no início da gestação, se o feto é portador de
síndrome de Down. De forma provocatória, Pondé pergunta: “Você vai ao médico,
ele pede um exame de sangue e você descobre que seu filho terá síndrome de
Down. O que você faria?”
Trata-se de um problema de escolha
existencial, típica de nosso tempo histórico.
A pergunta, por certo, já indica por
qual sentido o texto vai seguir: desenha-se uma série de questões, v.g. os
custos financeiros envolvidos na criação de uma criança com condições
especiais; o tempo que os cuidados com uma criança especial tomaria dos pais; a
necessidade de acompanhamento profissional especializado e constante etc.
Argumenta Pondé que o conhecimento prévio acerca dessa condição do feto e a
inevitável reflexão envolvendo as questões descritas acima poderiam levar os
pais a colocar em dúvida se, nestas condições, desejariam realmente ter um
filho.
Frisa-se: o texto faz a ressalva de
que esse estágio de dúvidas não se aplica àqueles que já têm filhos nessa
situação. “Não se trata de amar ou não os filhos que já se tem, mas sim de
escolher os filhos que teremos.”
Eis o ponto em que a navalha cínica
de Pondé pretende efetuar o corte: se nós pudéssemos escolher os filhos que
queremos, qual atitude teríamos diante de uma situação limítrofe como essa?
Por óbvio, Pondé não desconhece o
fato de que o Direito Penal brasileiro puniria pela prática do crime de aborto
aqueles que escolhessem o caminho da interrupção da gravidez. Mas, ao mesmo
tempo, não demonstra dúvidas ao afirmar que, com a chegada entre nós desse tipo
de exame, o aumento do aborto ilegal seria uma tendência inescapável. De fato,
o simples fato de criminalizar uma conduta não significa que a sua prática irá
desaparecer do convívio social.
Acredito que Pondé esteja certo
quanto a isso. É provável que algumas pessoas, talvez até em um número maior do
que aquele que gostaríamos de imaginar, tomem a decisão de interromper a
gravidez diante da notícia de que seu desejado filho sofre de um mal que o
tornará diferente daquilo que eles imaginavam e idealizavam em seus sonhos e
expectativas.
Todavia, essa provável verdade não
retira a necessidade de continuarmos a nos perguntar se uma tal conduta seria
correta ou não em termos morais. E, nesse ponto, aparece a grande questão que
perpassa o pensamento cético com relação às questões morais: responder a essa
questão é inútil, visto que não será o suficiente para impedir a prática do ato
analisado.
Pondé segue provocativamente
enfatizando a tensão que existe entre a ciência e a ética. Ou seja, a ciência
parece sempre criar condições que aumentam as possibilidades de escolha do ser
humano e, nesse momento, coloca em xeque determinados tabus morais arraigados
no imaginário social.
No caso, o filósofo alemão Peter
Sloterdijk, em seu polêmico livro, Regras para o Parque Humano, já havia
chamado a atenção para os problemas que podem ser levantados quando a
emergência de novas possibilidades de intervenção biotécnica aparecem em nosso
horizonte de ação. Na época da publicação desse texto, Sloterdijk sofrera
críticas pesadíssimas, principalmente por parte da imprensa, porque o seu
argumento acabava por mostrar que a eugenia não é um ideal presente apenas em
terríveis regimes totalitários, mas que pode aparecer, também, em cada ser
humano, em sua manifestação individual.
Nesse sentido, para Pondé, a única
oposição — além da lei — à decisão de não ter o filho, em um caso de
diagnóstico precoce de Síndrome de Down, seria oferecida pela moral católica.
“Os católicos dirão que a vida pertence a Deus. Quem não crê nisso, tem diante
de si a seguinte questão: por que devo me submeter ao mero acaso? Afinal, a
criança não foi fruto de um orgasmo (masculino, no mínimo)? Se o acaso decidiu
qual óvulo e espermatozoide que estariam a postos, por que devo eu me submeter
a tamanho capricho cego?”
A abertura de um espaço ampliado de
escolha criada pela informação biotécnica levaria, segundo o autor, a um
progressivo processo de artificialização da reprodução humana. Caminhamos,
nesse sentido, na direção de um controle, cada vez mais intenso, dos resultados
da atividade reprodutiva. E isso é “tão inevitável como a ampliação dos
direitos civis, tais como o voto das mulheres, casamentos gays, direitos da
mulher sobre o seu corpo e afins. (...) Num futuro próximo, ter filhos pelo
método do acaso será como negar vacina aos filhos. Um ato de irresponsabilidade
reprodutiva”.
A posição de Pondé quanto à moral e
às suas possibilidades limitadoras em casos como esse é a de um niilismo
radical: é inútil tentar encontrar um sentido que possa constituir entre nós
laços comuns. A pergunta pela vida boa; pelo tipo de vida que vale a pena ser
vivida; pelo tipo de sociedade que queremos ter e na qual gostaríamos de viver,
cede diante da implacável constatação de que as transformações apontadas são
inevitáveis e que é impossível encontrar, na sociedade, um significado comum,
compartilhado por todos, e que represente a forma correta de conduzir as ações
das pessoas.
Escolhas como essas, ter ou não um
filho que se sabe especial, seria sempre uma escolha individual. Portanto, ela
poderá variar de indivíduo para indivíduo de acordo com a percepção pessoal de
cada um, do sistema de crenças no qual aquele que decide está inserido, no modo
como ele encara a própria vida etc.
O niilismo de Pondé se aproxima ao
de Posner. É conhecida a polêmica afirmação de Posner de que, por razões de
ordem político-econômicas, a venda de bebês deveria ser considerada lícita e
funcionar segundo as regras do mercado.[2] Ele, na verdade, faz um exercício
retórico para justificar sua posição: pretende separar a “coisa” dos direitos
que se exerce sobre ela. Afirma que a venda de bebês é juridicamente
impossível.
“O” bebê seria um “bem” que estaria
fora do comércio. Todavia, não haveria nenhum tipo de empecilho para que a mãe
colocasse à venda os direitos decorrentes do poder familiar que possui sobre a
criança. Assim, o comércio realizado, o ato de tradição, se daria com relação
aos direitos derivados do poder familiar e não com relação à criança. Posner
não deixa de justificar a sua opção com argumentos que procuram apontar para um
incremento nas condições de bem-estar tanto da criança quanto da comunidade.
Muito provavelmente, se alguém
impugnasse o argumento de Posner, não apenas do ponto de vista da juridicidade,
mas também mencionando o erro inescusável de uma decisão como essa em face de
nosso ethos civilizatório, teria como resposta uma consideração parecida com
aquela feita por Pondé: quem se revolta diante de um tal argumento, o faz
porque, na verdade, acredita em uma moral cristã e no correlato conceito de
dignidade humana. No fundo, o cético moral contemporâneo sempre encontra algum
tipo de resquício de religiosidade (católica, no mais das vezes) nos argumentos
daqueles que defendem uma posição positiva — no sentido da possibilidade — em
relação à moral.
Todavia, é necessário perguntar: em
uma sociedade altamente secularizada como a nossa, é possível continuar a
identificar a defesa da moral como um ato de profissão de fé religiosa? E, mais
do que isso, nós teríamos uma vida melhor se a nossa comunidade tolerasse as
práticas descritas acima?
Dreyfus e Dorrance Kelly
As questões com que encerrei o
tópico anterior são complementares. Na verdade, poderíamos sintetizá-las em uma
terceira questão que seria a seguinte: é possível encontrar algum sentido que
nos auxilie a praticar escolhas existenciais — como aquela de ter ou não um
bebê que se sabe portador de Síndrome de Down — em um mundo “desencantado”?
Para Dreyfus e Kelly, esse “encontro
com o sentido” não só é possível como também inevitável. Como seres humanos,
nós somos construtores de sentido, dizem. Por certo, esse sentido será
construído no horizonte das configurações culturais nas quais o agente humano
está inserido. As “orientações” para a realização desse encontro estão
inscritas em grandes obras da literatura, da filosofia e demais disciplinas que
produzem certas “pirâmides do espírito”, como quer Gumbrecht.
É certo que os processos modernos de
secularização e de “desencantamento do mundo” tornou esse encontro do sentido
mais difícil de acontecer. Em contextos pré-modernos, a simples inserção do
agente humano em uma ordem ou corporação já lhe trazia a receita pronta de como
deveria levar a sua vida. Não há espaço para a escolha existencial. A
secularização, o desencantamento do mundo, trazem consigo o bônus da libertação
dos seres humanos das amarras tradicionais que os prendiam a Deus e aos seus
“intermediários” terrenos — o clero e os reis — no horizonte da cultura
medieval.
Todavia, um ônus que não compunha as
expectativas humanas passa a compor agora o contexto de ação: a escolha. “O
fardo da escolha é um fenômeno peculiarmente moderno. Prolifera num mundo onde
já não há Deus ou deuses, nem mesmo o sentido do que é sagrado e inviolável,
para centrar nossa compreensão daquilo que somos.”[3] Os processos modernos de
secularização da política e do Direito, de desencantamento do mundo,
transportaram os problemas morais de um contexto religioso/transcendente para o
âmbito humano/imanente.
É somente em um contexto como esse
que o agente humano se vê confrontado com um problema de escolha existencial.
Nas configurações medievais, a escolha não era um problema porque sequer
existia. As ordens estavam prontas; os papéis definidos. Ninguém precisava
imaginar qual seria a melhor forma de levar a vida ou o que gostaria de fazer
com a sua. Ambas as respostas já lhe eram dadas. Sem opção de escolha.
Mas, o fato de existir um processo
de secularização não retira de cada agente humano a tarefa de perguntar pelo
sentido de uma vida boa e de como a sua ação poderá contribuir ou oferecer um
prejuízo a isso. Dreyfus e Kelly lembram que “sempre foi difícil agir, em
certas situações, segundo os padrões de uma vida boa — os filósofos gregos
chamavam a esta dificuldade de akrasia, ou fraqueza da vontade; consiste na
incapacidade de fazer o que sabemos ser mais correto”.[4]
Não há dúvidas de que os processos
de modernização e as constantes e frenéticas descobertas que a ciência nos
oferece contribuem significativamente para aumentar a complexidade existente no
modo como nos compreendemos e no modo como interpretamos nossas vidas. Uma escolha
existencial como aquela que diz respeito aos filhos que queremos ter — se nos
for possibilitado assim escolher — manifesta uma ocorrência de akrasia.
Mas, se voltarmos nossa atenção para
as questões subjacentes às nossas ações e que constituem uma espécie de
fundamento comum de convívio, se nos esforçarmos para compreender os
significados que nos permitem responder quais são os laços que nos constituem
como comunidade, começaremos a encontrar um sentido do que seja uma vida boa. A
escolha existencial é sempre difícil. Mas assim o é porque a dificuldade se
manifesta no fato de que o ato escolhido para ser praticado pode ser correto ou
errado. Portanto, ainda que em um universo secularizado, mesmo em um mundo no
interior do qual as configurações morais não contam com uma régua transcendente
que permita aos agentes morais medir as suas ações e verificar o acerto ou o
erro de suas condutas, existe a possibilidade de afirmação do sentido e da
correção do ato em termos morais.
Afinal, em que tipo de sociedade
queremos viver e queremos que nossos filhos vivam? Seria uma sociedade em que
as pessoas escolhem os filhos que gostariam de ter? Você, leitor amigo,
responderia o que para essas indagações?
[1] Pondé, Luiz Felipe. O Relojoeiro
Cego. Folha de S. Paulo. 04.02.2013, Caderno Ilustrada, p. E8
[2] Cf. Posner, Richard. Sex and
Reason. Massachusetts: Harvard University Press, 1992, passim.
[3] Dreyfus, Hubert. Kelly, Sean
Dorrance. Um Mundo Iluminado. Alfragide: Lua de Papel, 2011, Kindle Edition,
pos. 180.
[4] Dreyfus, Hubert. Kelly, Sean
Dorrance. op. cit., pos. 325.
RAFAEL TOMAZ DE OLIVEIRA é mestre e
doutorando em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
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