E Kelsen se virou na
tumba diante da simplificação!
POR LENIO LUIZ STRECK
O consumidor de ilusões
Já em 1967, o francês Guy Debord
escreveu La Societé du Spectacule (A sociedade do espetáculo), antecipando as
mazelas da fragmentação da cultura ocorrida nestas últimas duas décadas. Como
bem lembra Vargas Llosa — que, de certo modo, “revisita” a temática 45 anos
depois, em seu La Civilización del Espetáculo —, Debord qualifica de espetáculo
o que Marx chamou de alienação decorrente do fetichismo da mercadoria. É quando
o indivíduo se “coisifica”, entregando-se sistematicamente ao consumo de
objetos, muitas vezes inúteis e supérfluos, destruindo sua consciência de
classe. Com isso, o indivíduo se desproletarizaria. E não lutaria. Na
proposição 212 de seu livro, Debord chama de espetáculo a ditadura efetiva da
ilusão na sociedade moderna.
Debord dizia que, na sociedade do
espetáculo, a vida deixa de ser vivida para ser representada, vivendo-se “por
procuração”, como os atores da vida fingida que encarnam uma peça: “O
consumidor real se torna um consumidor de ilusões”. Guardadas as desafinidades
ideológicas entre Debord e Llosa, é possível dizer que ambos têm razão. Ou, no
mínimo, o que Debord dizia e o que diz agora Llosa têm tudo a ver com a
sociedade “pós-moderna” (com todos os problemas que o termo acarreta) que
vivemos.
Llosa produz um livro em que denuncia
a vulgarização da cultura, repetindo algo que T. S. Eliot já dizia, ou seja,
que a cultura está a ponto de desaparecer; na verdade, talvez já tenha
desaparecido. Llosa chama de “civilização do espetáculo” ou de um mundo em que
o primeiro lugar na tábua de valores vigente é ocupado pelo entretenimento e em
que se divertir, fugir do aborrecimento, é a paixão universal.
O novo lumpesinato cultural
Llosa critica fortemente aquilo que
chama de “literatura light”, que propaga o conformismo, a complacência e a
autossatisfação. Diz também — isso em uma entrevista — que a internet
democratizou a informação, mas não a cultura. Foi uma grande revolução, muito
positiva, do nosso tempo. Mas essa informação, se não há uma cultura que
discrimine, pode também naturalizar completamente a informação, porque o
excesso de informação pode ser um excesso de confusão. Por isso, a cultura é
muito importante, pois permite distinguir o que é relevante do que não é
relevante.
Aí está. O retrato que Llosa
apresenta, apenas diferente do de Debord pelo suporte ideológico de cada um,
cabe como uma luva ao que se pratica no Brasil em termos de jornalismo, ensino
e práticas jurídicas (doutrina e jurisprudência – lato sensu falando). Trata-se
da fabricação cotidiana de “lumpens pós-modernos”. Esse “indivíduo” fruto desse
processo não reivindica. Não luta. Apenas reproduz. O que ele faz é
alienar-a-sua-ação-ao-outro. Trata-se do novo homem, o que substitui o homo
sapiens: É o homo simplifier ou o homo facilitator.
Juristas, estagiários, publicitários,
jornalistas e jornaleiros... Ninguém está livre desse novo homem. Tenho
denunciado aqui nesta coluna — mas já há mais de uma década em Hermenêutica
jurídica e(m) crise — o modo como os jornalistas fazem a cobertura dos
noticiários. Nesta pós-modernidade (sic), a linguagem se aproxima cada vez mais
da imagem. Isto é, “imagem é tudo”. E, portanto, tudo vira espetáculo. O
repórter não consegue falar de um assunto sem mostrar a imagem. É como se
construísse a cada momento uma “isomorfia” entre palavras e coisas. Ou seja:
parte-se da premissa de que todos são imbecis e não possuem capacidade maior
que a do Homer Simpson. Logo, só entendem o que é uma coisa se a coisa for
mostrada. Eis o “poder da imagem”. Não há espaço para se pensar. A enchente é contada
pelo repórter quando está com água pelos joelhos. O nascimento do primeiro bebê
do ano somente “pode” ser mostrado se o repórter estiver vestido de enfermeiro.
Já se sabe como será a reportagem. Ou de forma “dedutiva”, com um “conceito” do
qual o repórter tirará o “particular”; ou de forma indutiva, entrando na casa
da senhora com vários filhos na escola para discutir a notícia sobre o preço do
material escolar: “Dona Fulana tem três filhos...” e a câmara mostra a casa, as
crianças, close na lista de material escolar... e assim vai.
As metáforas perdem sua função nessa
sociedade do espetáculo, eis que a pretensa metaforização é mostrada
isomorficamente. Por exemplo, para que metaforizar uma situação se, para
explicar a “explicação”, demonstra-se a metáfora? Ou seja, se o repórter quer
demonstrar que um time de futebol quer jogar rápido e diz que “está voando”, a
câmara mostra... um pássaro. Qual é, então, a função da metáfora? Nem vou falar
nas metonímias e outras questões “representacionais”... Ora, se se quer dizer
que um time de futebol está “na ponta dos casos”, por qual razão o repórter tem
de mostrar um cavalo se preparando para correr?
“Gosto” de conceder entrevistas em
que o entrevistador vai “anotando tudo o que eu falo”. Principalmente tratando
de notícias jurídicas. O resultado é quase sempre mais que desastroso. A
desculpa é que quem lê jornal não entende termos jurídicos. Nivelamos tudo por
baixo. Logo, substitui-se a palavra por outra, que nada tem a ver com o
conteúdo. Concedi uma entrevista sobre a teoria do domínio do fato... O que
acham os leitores? Como explicar isso ao jovem repórter, para o qual tentei
explicar isso durante mais de 15 minutos por telefone. Resultado: quatro linhas
e meia, dizendo que se trata de uma teoria que estende a coautoria e alguns blá
blá blá.
Nada está tão ruim que não possa
piorar (?)
A prova de que o iluminismo estava
errado com relação à sua crença no progresso e na sua “pregação” quase
religiosa de que o império da razão faria a humanidade melhor, talvez esteja no
âmbito do lumpesinato cultural que se produz no campo do direito.
Há determinadas posições que me
fazem crer que o ser humano não melhora. Pelo contrário, a tendência é ficar
patinando sobre erros do passado. Vejo por aí, no âmbito da teoria do direito,
uma resistência de certos setores que tendem a manifestar — over and over again
— coisas velhas e empoeiradas como se fossem algo natural no mundo do Direito.
Transformam a filosofia em dogma. Alocam determinados pontos de partidas
indiscutíveis, tidos necessariamente por verdades universais, para “facilitar
as coisas” (eis o homo facilitador) para os candidatos nos mais variados
certames da área do direito. A tarefa pedagógica do ensino jurídico — em tempos
de sucesso absoluto da “metodologia simplificadora” (sic) — é encher os
receptáculos das consciências dos candidatos, alunos etc. com conteúdos fáceis
de memorizar (eis o homo simplifier) e que irão garantir sucesso nas provas.
Esta semana, tive conhecimento — por
meio de um e-mail enviado por um atentíssimo leitor, Raphael Peixoto,
doutorando da UnB — de uma matéria veiculada pelo portal UOL, que retrata bem
aquilo que estava pressuposto na minha fala do parágrafo anterior. Trata-se de
notícia que apresenta uma alerta para aqueles que irão participar do 10º Exame
de Ordem Unificado: “professores alertam que o candidato deve se preparar nesse
período que antecede a 10ª edição”, destaca em negrito o texto.
O “alerta” dos professores está
dirigido para as questões de Filosofia — ou do que vem sendo, de forma até
certo ponto acrítica, colocado como “formação humanística” — que passarão a
incorporar o Exame a partir desta edição (para ler, clique aqui). A matéria
afirma, ainda, que saiu à cata de posições abalizadas de notáveis professores
que lecionam a referida matéria nos mais diversos cursinhos preparatórios
existentes no país.
É espantoso o que se lê ali. Num
primeiro momento, tive a impressão de ser um cidadão transeunte do século XIX.
A maior parte das teorias que os professores consideram inescapáveis de serem
cobradas na prova não são contemporâneas e estão milhas e milhas distantes das
discussões que povoam o ambiente da teoria e da Filosofia do Direito no nosso
contexto atual. O ápice mesmo desse acontecimento da sociedade jurídica do espetáculo
ocorre quando os professores entrevistados pela matéria pretendem explicar o
positivismo jurídico, levando em consideração a obra de seu principal
arquiteto: Hans Kelsen (vejam: não é culpa minha. Está na internet. Foram os
professores que explicitaram o que vou relatar). Assim, segundo um dos
professores “o positivismo jurídico tem como ápice a doutrina de Hans Kelsen
que visa demonstrar uma fórmula de aplicação do direito que pura e simplesmente
declare a vontade do legislador sem criar nada novo, reduzindo o seu conteúdo
às leis escritas" (sic, sic e sic!!!). Já escrevi tanto sobre isso que um
posicionamento como esse chega a me dar acídia. E não apenas eu. Luis Alberto
Warat, Leonel Severo Rocha, Marcelo Cattoni, Tércio Ferraz Jr. também já trataram
da questão. Faço, então, aqui um alerta do alerta. A posição externada pelos
professores signatário das dicas no UOL não está no Hans Kelsen que li. O velho
Hans não disse nada disso. Aliás, de tanto que já escrevi sobre isso e de tanto
que Warat, Rocha e outros já escreveram explicando Kelsen e sua complexidade,
permito-me não explicar aqui, remetendo o leitor a, no mínimo, Verdade e
Consenso (Saraiva, 4ª edição), além dos livros e textos de Warat e dos antes
citados. Minha curiosidade é: de onde os professores encarregados das dicas
tiraram essa explicação sobre Kelsen? Talvez eu saiba. Simples. O senso comum
teórico dos juristas sempre fala mais alto. E o pior: constrói mitos sobre
autores. Vejam o mito que se criou em torno de Kelsen e de sua afirmação de um
direito puro, ou de que Kelsen propõe uma teoria da aplicação do direito
estritamente escrito. E que história é essa do “sem criar nada”? O que é isto —
“reduzindo o seu conteúdo às leis escritas”? Como vai mal o ensino jurídico de
terrae brasilis. Mal. Muito mal! Ah: ia esquecendo da explicação sobre a
diferença entre Constituição e Norma Fundamental (kelseniana). Diz um dos
professores que a Constituição é uma norma posta “porque estabelecida (imposta)
de acordo com a norma pressuposta. Exemplo: a Constituição Federal de 1988 foi
imposta ao povo brasileiro (promulgação, a imposição aceitável), mas a norma
fundamental que a antecede, por exemplo, é a pressuposição de que havia se
encerrado o ciclo da ditadura militar no país". Não vou falar muito sobre
isso. Apenas lembro que a Grundnorm é uma construção
epistemológico-metodológica e, como tal, só pode ser postulada
retrospectivamente, sob a condição de eficácia geral do ordenamento jurídico.
Em outras palavras, só se pode pressupor a norma fundamental a um ordenamento
em pleno funcionamento. Não é uma Constituição que é imposta com base na norma
fundamental, mas a norma fundamental que é pressuposta a uma Constituição
eficaz. Em outras palavras, a "antecedência" é da Constituição, não
da norma fundamental. Assim, ao contrário do que constou na dica... Portanto,
muita calma nessa hora...
E quanto à hermenêutica? Bem, quanto
a esta especialidade basta dizer que — vingando as teses constante na(s)
dica(s) — ficaremos ainda com os pés grudados nos lamaçais teóricos do século
XIX. Diz um dos professores que a hermenêutica “é a ciência que estuda a
interpretação, que se dá no próprio trabalho do juiz intérprete ao exprimir a
sua decisão. Dentro desses contextos, o candidato deve estudar as espécies
clássicas de interpretação, em gramatical, sistemática, lógica, histórica,
teleológica e sociológica e seus modos: declarativo, restritivo e extensivo.”
Sério?! Assim? Uma mistura do velho
Frederico Carlos von Savigny (que foi professor do velho Carlos Marques ou,
melhor dizendo, Karl Marx) e algumas invenções metodológicas como “declarativo,
restritivo...”? Diretamente das pantectas aos nossos dias? É mesmo isso que os
Exames de Ordem irão exigir dos candidatos? É assim que se pretende avaliar a
“formação humanística” (sic) dos nossos futuros advogados? Se assim for, vou
afirmar solenemente: melhor que tais conteúdos fiquem fora do exame. Essas
questões todas retratadas na matéria do UOL são mitos teóricos. Muitos já
sepultados. Métodos de interpretação? Aqueles do Savigny, que, por sinal, era
contra a codificação? Não preciso nem falar de Gadamer ou Heidegger para
desconstruir isso. Falemos de jusfilósofos como Dworkin; Alexy (com todas as
diferenças que tenho com a sua teoria); Friedrich Muller, entre outros...
No final, se as provas do Exame de
Ordem cobrarem os conteúdos do modo como foram explicados nas dicas, penso que
aquilo que está ruim poderá/deverá piorar. Ah... o iluminismo e sua vã utopia
de progresso. Coisas do humanismo, esse Outro tão incompreendido... o que faz o
ser humano melhor? O que faz a humanidade melhorar? Perguntas sem respostas,
indeed. Mas, com relação ao Exame de Ordem – e me perdoem pelo meu pessimismo
realista –, parece que as coisas tendem mesmo a piorar.
Não é implicância minha. Não tenho
culpa se o Direito é um fenômeno bem mais complexo do que se pretende que ele
seja. Faço estas críticas longe de qualquer fulanização. Trata-se de uma
questão acadêmica. Imaginemos se estivéssemos tratando de medicina ou de
química. Não dá para dizer que o antibiótico X se destina a tratar a dengue,
quando o remédio adequado é outro; e não se pode dizer que o ácido sulfúrico
não é H2SO4. Embora o Direito não seja uma ciência desse mesmo jaez, trata-se
de uma ciência social aplicada. E não se pode, sobre ela, fazer um livre
exercício adivinhatório.
As expropriações de sentido
Sob saraivadas de críticas, tenho
chamado a atenção da comunidade jurídica para essa “cultura da facilitação”.
Mas, mais do que das facilitações (não preciso lembrar da literatura fast food
que é vendida hoje até em supermercados e aeroportos), há um imaginário que se
contenta com os “restos de sentido” dessa civilização do espetáculo.
Quando vou a congressos e
seminários, por vezes assisto a algumas conferências. E constato que, para além
do escrito, há um falatório desenfreado que mistura conceitos e produz “expropriações
de sentido”, sem qualquer indenização significativa-significante. Quando
falamos sobre um texto — e recordo-me de recente artigo que discuti com meu
Amigo, Professor Ernildo Stein — fazemos desapropriações de sentido. É o que,
com Harold Bloom, podemos chamar de “desleituras”. Mas o perigo é quando, a
pretexto de falar sobre doutrinas e autores, o palestrante faz uma
expropriação, uma “mais valia” da significação minimamente condizente com
aquilo que devemos ter como uma “tradição autêntica acerca do que significa a
doutrina”.
Assim, por exemplo, a crítica ao
“juiz boca da lei” não pode faltar nas conferências mais requisitadas de terrae
brasilis. Faz-se um espetáculo contra essa “maldita” figura. O que se ouve
(vejam, estou só falando de congressos, agora; não estou me referindo ao que
dizem os livros, mormente os simplificadores e quetais)? Devemos rejeitar o
juiz boca da lei e, no lugar dele, temos a ponderação de princípios feitos por
um “novo juiz”. Outra coisa que “adoro” — e tenho visto muito isso por aí — é
quando o conferencista enche o peito para dizer que “regras é no tudo ou nada”
e “princípios é na ponderação”, e citam de boca cheia Dworkin e Alexy, como se
ambos fossem sócios da teoria.
Enfim, são os tempos de
espetacularização. Tempos de Power Point. De animação gráfica. Do “doctor
Google”, que substitui qualquer possibilidade de cultura por um conjunto de
informações, no mais das vezes de quinta categoria. No Direito, então, essa
questão assume ares de dramaticidade. Basta entrar no Google para ver o que
quer dizer, por exemplo, “juiz boca da lei”. E ali aparece a Revolução Francesa
e, depois... o juiz dos princípios. No Google, também descobri que o Judiciário
ganhou autonomia com a Revolução Francesa. Uau. Há artigos no Google misturando
Gadamer com.... nada mais, nada menos que Hans Kelsen. Sim. Meninos e meninas,
eu vi. Li um artigo em um site jurídico, no qual alguém fala de Gadamer e
emenda Kelsen quando este abre o flanco para o decisionismo. “Tudo a ver” essa
mistura de Gadamer com Kelsen. Pois é. Algaravias conceituais passaram a ser
lugar comum.
Outro dia passei os olhos em um
livro simplificado (ou algo do gênero ou espécie) de Direito Administrativo.
Poucas fontes. Poucas citações. Ao final, uma lista dos livros que seriam as fontes.
Mas, no interior do livro, passagens que esquecem as fontes originais. Ora, se,
por exemplo, alguém fez uma pesquisa sobre os tribunais da Relação, mas aquele
que quer falar sobre isso não quer ir a essas fontes e se encher de pó e
alergias, deve citar a fonte do infeliz que se esfalfelou fuçando nas velhas
bibliotecas.
Perdemos o DNA (que eu chamo de
mínimo “é”) entre as palavras e as coisas. Como dizia minha poeta Hilde Domin
(cito de cabeça), “antes palavras e coisas dormitavam juntas; depois se
separaram”. E eu me permito acrescer: e nunca mais de “ajuntaram”. Perdemos a
noção de cópulas significativas mínimas para, digamos assim, a reprodução e,
portanto, a sobrevivência do homo culturalis. O homo juridicus é, agora, o homo
simplifier, o homo standard, perdendo-se no entremeio de extorsões de sentido,
expropriações sem qualquer “indenização de sentido”. As palavras vão perdendo o
seu significado de base (para lembrar, aqui, algumas noções sempre oportunas da
velha filosofia da linguagem). Claro que um texto não carrega o seu
significado. Não dá para fazer uma Auslegung dele (arrancar de dentro dele o
sentido; afinal, interpretar não é fazer lipoaspiração!). Mas, como bem diz
Gadamer, se queres dizer algo sobre ele (o texto), deixe que ele te diga algo.
O que quer dizer a palavra “princípio”? O quer dizer “positivismo”? Façam o
teste com seus colegas (alunos e professores). Cada um dirá algo diferente. E,
pelo andar da carruagem, um alto percentual estará equivocado. O quer dizer
“protesto”? É ir à rua reivindicar? Ou fazer “onda” pelas redes sociais? O que
é “amizade”? É olhar nos olhos do “amigo”(a) ou ter milhares de “amigos” pelo
“face”?
Um registro alvissareiro: de tanto
que tenho reclamado sobre a algaravia que se formou sobre “a ponderação”, o
“placar” no Google tem se modificado substancialmente. Para termos uma ideia,
há um ano atrás havia cerca de 30 mil incidências para “princípio da
ponderação” e menos de 600 para “regra da ponderação”. Com satisfação noto que
a coisa vai mudando... Hoje a “regra da ponderação” ganhou alguns milhares de
“alimentações” no Google. Já passa de 14 mil, embora a incidência do
“princípio” esteja quase em 37 mil. Penso que, em mais um ano, finalmente a
correção será feita. E constaremos que a correta acepção da ponderação como
regra terá mais incidência no Google do que como algo que ela nunca foi, isto
é, “princípio” (despiciendo lembrar o que penso sobre a tal “ponderação”... nem
vou repetir aqui o que penso sobre isso para não me irritar e nem causar
irritação naqueles meus leitores fiéis que já sabem de tudo o que penso sobre
essa “pedra filosofal da interpretação” e os malefícios que produziu aqui em
terra de Vera Cruz-Santa Cruz).
No apagar das luzes da feitura da
coluna, recebi e-mail informando que há, no mercado, nova literatura. Trata-se
de um resumo de Direito Constitucional descomplicado. Ora, se a matéria já está
descomplicada, por que o resumo? Hein? Efetivamente, a criatividade é tanta em
termos de simplismo que, em breve, não duvido surja o “Mapa mental do resumo
descomplicado de direito X, Y ou Z” e depois, uma espécie de “resumo
fundamental”. Isto é, um resumo do resumo do resumo..., para aqueles que não
entenderam o primeiro e o segundo resumos... Nem vou explicar, aqui, que estou
tentando fazer uma blague com a questão do fundamento de validade (por exemplo,
o Trilema de Münschausen)... Corro o risco de fazer como o repórter que explica
a metáfora. Mas, vai lá: falo do fundamento do fundamento do fundamento... Ou
seja: no andar da carruagem, se se fizer sempre um resumo do resumo, a pergunta
que fica(rá) é: qual é o resumo fundamental, isto é, o Grundresumo?
Mas tem mais. Em tempos de
prevalência de simplificações, até mesmo fazer ironias em terrae brasilis pode
se configurar no semeio de nefasta semente. Me recordo que, em 2010, na bela
cidade de Natal, durante o evento da Ebec (Escola Brasileira de Estudos
Constitucionais), sugeri jocosamente que ainda veria criado uma espécie de
“Direito twittado”. Até escrevi aqui! Só não pensei que isso seria levado “a
sério”! Com efeito, um orientando high tech me mostrou (advirto: não tenho
Twitter; meu mundo não cabe em 140 caracteres) um exemplo disso. Conhecido
professor anuncia “bomba: durante a semana postarei no twitter 100 dicas sobre
controle de constitucionalidade. A cada meia hora, uma nova dica.” Bingo! 100
dicas, cada uma em 140 caracteres. Boa sorte. É o tipo da notícia que dispensa
maiores elaborações... quase como as palavras cruzadas já à venda nas boas
casas do ramo. Não penso que necessito comentar a notícia, pois não? O próprio
professor disse que era uma “bomba”.
A proibição de anamnese
A leitura de Llosa e Debord é
lancinante. Cortante. Abre sulcos na significância ao mesmo tempo em que vai
expondo a(s) insignificância(s). Soco no estômago, para ser mais direito.
Devemos refletir sobre tudo isso. O que os autores denunciam — em épocas tão
diferentes — pode ser visto no Jornalismo, no Direito, na Publicidade, nas
escolas etc. Vivenciamos tempos duros de perda de sentidos (na ambiguidade da
expressão). Neste novo “princípio epocal” (de epoché – e refiro-me a
Heidegger), há uma espécie de “proibição de anamnese dos fenômenos”. Nesse novo
“princípio”, vive-se o império dos simples, do standard, transformado em
d(en)ominador comum do “real”, proporcionando, assim, um domínio soberano desse
mundo de ficções. O homo simplifier veio para ficar. Acho, sinceramente, que
fomos derrotados.
LENIO LUIZ STRECK é procurador de
Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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