OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL
A atuação dos juízes e a teoria
constitucional
Por Jorge Octávio Lavocat Galvão
Em meio ao julgamento do caso da
demarcação da reserva indígena “Raposa Serra do Sol”, um fato inusitado passou
quase despercebido por aqueles que acompanham o cotidiano da Suprema Corte.
Após o voto do ministro Menezes Direito, segundo a votar, o ministro Marco
Aurélio, que seria o penúltimo, adiantou pedido de vista. Contrariando sua
tradição, o Supremo Tribunal Federal deliberou, em questão de ordem, prosseguir
no julgamento, independentemente do pedido de vista do ministro Marco Aurélio,
vencido no ponto o ministro decano Celso de Mello, que se pronunciou no sentido
de aguardar-se o retorno do processo à pauta. Ao final do julgamento, o
ministro Marco Aurélio foi o único vencido no mérito, decretando a nulidade do
procedimento administrativo que demarcou a reserva indígena em questão.
Já no julgamento da Reclamação 383,
célebre caso que sedimentou as hipóteses de cabimento de Ação Direta de
Inconstitucionalidade no âmbito estadual, o ministro Moreira Alves, então
decano da Corte e último a votar, antecipou pedido de vista logo após o voto do
relator, ministro Carlos Velloso, interrompendo, assim, o julgamento do caso.
Quando do retorno do processo ao plenário, a Corte, por maioria, acompanhou o
voto do ministro Moreira Alves e modificou a jurisprudência firmada, poucas
semanas antes, na Reclamação 370, julgamento esse do qual o decano não havia
participado. Enquanto neste caso se decidiu, por 9 a 1, que não seria cabível
Ação Direta de Inconstitucionalidade estadual em face dos preceitos das Cartas
locais que reproduzem normas de observância obrigatória da Constituição
Federal, por configurar usurpação de competência da Corte Constitucional;
naquele processo, por 7 a 4, o tribunal entendeu que a apreciação pelos
Tribunais de Justiça de ações diretas em face das Constituições estaduais —
independentemente da natureza da norma-parâmetro — não violaria a autoridade do
Supremo Tribunal Federal, uma vez ser cabível recurso extraordinário contra o
acórdão local. Na Reclamação 383, portanto, o voto-vista do ministro Moreira
Alves gerou um amplo debate entre os membros do tribunal e foi determinante
para mudar a orientação de cinco deles.
Alguns questionamentos interessantes
sobre o instituto do voto-vista despontam da análise desses julgados. Por que
os ministros decidiram, no caso da “Raposa Serra Sol”, não interromper o
julgamento após o pedido de vista? Em contrapartida, por que na Reclamação 383
o tribunal decidiu esperar o voto do decano? Quais seriam os propósitos de se
adiantar um pedido de vista por parte de ministros mais antigos? E quais razões
levariam os magistrados mais novos a proferir seu voto antes da suspensão do
julgamento? Com relação ao primeiro caso, haveria alguma mudança no resultado
final se o ministro Marco Aurélio apresentasse seu voto antes dos demais
ministros? Aumentaria o ônus argumentativo desses magistrados caso o voto
divergente fosse apresentado em terceiro lugar? Já no que tange ao segundo
caso, o precedente firmado na Reclamação 370 teria sido mantido se os ministros
mais novos tivessem adiantado seus votos? De maneira geral, como o voto-vista
influencia a estratégia dos julgadores em órgãos colegiados?
É interessante notar que, na
literatura estrangeira, há vários estudos sobre o padrão comportamental dos
juízes[1]. Levando em consideração as especificidades do modelo de votação
empregado nos tribunais americanos, em que os magistrados conhecem de antemão o
voto dos demais colegas, o constitucionalista Lawrence Sager, por exemplo,
chegou à conclusão de que os juízes tendem a adotar um posicionamento muito
mais radical quando são vencidos do que quando compõem a maioria.[2] No caso do
voto-vista, instituto característico dos tribunais brasileiros, não há notícia
de qualquer estudo aprofundado por parte dos constitucionalistas pátrios quanto
aos seus efeitos sobre o agir dos magistrados. É de indagar-se o porquê dessa
lacuna em terrae brasilis.
Recentemente, o debate sobre o
comportamento estratégico dos juízes voltou à tona na academia estadunidense. O
julgamento que confirmou a constitucionalidade do Obamacare — certamente o caso
de maior repercussão nos Estados Unidos no ano de 2012 — surpreendeu grande
parte dos estudiosos do direito constitucional.[3] Isso em razão de o Chief
Justice Roberts ter desempatado o julgamento contrariamente ao posicionamento
da ala conservadora da Corte, à qual ele normalmente se associa. Uma questão
intrigou os analistas: o que teria levado um juiz marcadamente reconhecido por
suas posições conservadoras a mudar de lado em caso de tamanha relevância?
Em uma de suas últimas colunas no
The New York Review of Books, Ronald Dworkin fez um estudo quantitativo de
todos os casos decididos por 5 a 4 desde 2005, para demonstrar que,
diferentemente do Justice Kennedy, que se uniu aos liberais em 25 casos, e dos Justices
Scalia e Thomas, que mudaram de lado duas vezes cada, o Chief Justice Roberts
jamais havia tomado posição semelhante.[4] A partir dessa constatação, Dworkin
procurou compreender o motivo que teria levado o magistrado a agir de forma
diferente no caso Obamacare. Analisando uma série de dados — como o resultado
de uma pesquisa de opinião que indicou que a maioria dos americanos passou a
considerar a Corte um mero órgão político em razão de sua nítida divisão entre
juízes liberais e conservadores — Dworkin articulou, em tom crítico, uma
justificativa para tal decisão: o Chief Justice Roberts teria agido
estrategicamente a fim de aumentar a credibilidade da Corte para, no futuro,
ter condições de votar favoravelmente aos conservadores em casos de maior relevância
para os Republicanos, como, por exemplo, nos que dizem respeito a cotas em
universidades e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Qual a importância de estudos como
esses acerca do voto-vista e da atuação do Chief Justice Roberts, que reconhecem
espaços institucionais à ação estratégica por parte dos magistrados? Na coluna
do Observatório Constitucional do último dia 30 de março, argumentei que os
constitucionalistas brasileiros deveriam gastar menos tempo discutindo teorias
da decisão e prestar mais atenção em estudos como esses, com o fito de aumentar
nossa compreensão sobre o funcionamento da Suprema Corte e, em última análise,
contribuir para o aprimoramento de nosso arranjo institucional[5]. Defendi que
a ênfase na interpretação constitucional por parte dos pesquisadores pátrios
tem ofuscado outras análises também relevantes a respeito do modo como a Corte
opera dentro da engrenagem estatal. Sugeri, então, uma agenda de pesquisa mais
voltada para a análise do contexto decisório e de suas consequências para a
definição dos casos do que para a decisão judicial em si.
Minha proposta recebeu a atenção do
professor Lênio Luiz Streck[6], que concordou em parte com meu diagnóstico e
instigou-me a aprofundar um pouco mais o argumento. De início, registro que
acredito ter havido uma má compreensão de alguns aspectos de meu artigo pelo
colunista, proporcionada, penso eu, pela leitura do texto a partir de seu
título[7]. Aproveito, pois, a oportunidade para esclarecer alguns pontos e
avançar no tema.
Defendi um “choque de realidade” no
estudo do direito constitucional. O que isso significa? Estudos sobre teorias
da interpretação e da argumentação têm sido a tônica do debate constitucional
nos últimos anos. Pouco se tem produzido, contudo, sobre o arranjo
institucional no qual a Corte está inserida. A decisão judicial depende não só
do juiz e de seus argumentos, mas das condições em que ela é tomada. Julgar no
Brasil é o mesmo que nos Estados Unidos, local em que a teoria de Dworkin foi
desenvolvida? Quais as principais diferenças? A transmissão pela TV Justiça
modifica o comportamento dos juízes? A ordem de colheita dos votos tem impacto
no resultado dos casos? Qual a relevância do voto-vista? São questões práticas
como estas, relacionadas ao contexto decisório, que, a meu sentir, demandam
maior atenção dos constitucionalistas.
Afirmei, ademais, que os debates
filosóficos sobre, por exemplo, a melhor interpretação de um ou de outro autor,
ou da diferença entre regras e princípios, não mais avançam o nosso conhecimento
sobre o funcionamento da Corte. Sofisticamos bastante a pesquisa sobre a teoria
da interpretação sem que sejamos capazes de responder a questionamentos
corriqueiros, como: por que alguns processos demoram a entrar em pauta e outros
são rapidamente apreciados? Quais são os processos que entram rapidamente em
pauta e quais são os seus interessados? Quais são os principais beneficiários e
prejudicados pelo exercício da jurisdição constitucional? Que fique claro: não
foi a teoria de Dworkin, de Alexy ou de qualquer outro teórico que encobriu
aspectos relevantes do processo decisório, mas o estudo obcecado dessas
teorias, cujo foco está em responder como os juízes devem decidir os casos
difíceis. Se, ao final, o máximo que se consegue afirmar sobre as aparentes
contradições entre julgamentos do Supremo Tribunal Federal é que os ministros
não seguem de maneira adequada essa ou aquela teoria, a limitação desse tipo de
pesquisa parece-me mais do que evidente.
Não pretendo “reinventar a
interpretação constitucional”. O ponto é exatamente o oposto: foquemos menos
nos juízes e seus argumentos e mais nos arranjos institucionais nos quais eles
estão inseridos. Ao sugerir a mudança de abordagem não menosprezei o que foi
construído na área da filosofia constitucional nas últimas décadas. Longe
disso! O que procurei demonstrar é que esses estudos teóricos seriam
enriquecidos com análises sobre o funcionamento da Corte e sobre a atuação de
seus membros.
Compreender o modo como os tribunais operam
dentro da engrenagem estatal revela-se importante não apenas para se ter
conhecimento sobre o que esperar de nossos juízes (afinal, não podemos ter
ilusões), mas também para diagnosticar o que pode ser aprimorado. Acredito que
essa tenha sido a intenção de Dworkin ao fazer a análise do comportamento do
Chief Justice Roberts na coluna mencionada, o que certamente não o posiciona
“com um pé em Hart e outro no realismo”.
Ao contrário do sugerido pelo colunista, a adoção de uma perspectiva
mais próxima à ciência social não necessariamente mina o caráter normativo de
uma concepção jurídica, desde que tal análise esteja imbricada à interpretação
construtiva da prática na qual o observador — que obviamente não se pressupõe
neutro — está inserido.
Em minha coluna anterior elaborei
diversas questões que considero relevantes. Nesta coluna acrescento a tal rol
mais uma sobre o intrincado instituto do pedido de vista e seus reflexos sobre
a decisão judicial. Não considerá-las — ou apenas afirmar sua relevância em vez
de pesquisá-las a sério — tem levado a abordagens que superestimam e romantizam
o papel das Cortes, sem indicar alternativas institucionais que promovam o
aperfeiçoamento da atuação judicial. Ganharíamos muito se esses temas fossem
trabalhados por alguém tão talentoso como o professor Lênio Streck. Tal esforço
engrandeceria, em vez de “jogar por terra”, a sua já conhecida teoria da
decisão.
[1] Cf., por exemplo, Robert Dahl,
Decision-Making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker, 1
Journal of Public Law (1958).
[2] Cf., Lewis A. Kornhauser and
Lawrence G. Sager, The One and the Many: Adjudication in Collegial Courts, 81 Cal.
L. Rev. 1 (1993).
[3] Sobre a decisão, confira o
artigo de Sérgio Antônio Ferreira Victor publicado na coluna do Observatório da
Jurisdição Constitucional de 25/08/12. In:
http://www.conjur.com.br/2012-ago-25/observatorio-constitucional-construcao-health-care-act-eua.
[4] Ronald Dworkin, A Bigger Victory
than We Knew. In:
http://www.nybooks.com/articles/archives/2012/aug/16/bigger-victory-we-knew/?page=2.
[5] Cf.
http://www.conjur.com.br/2013-mar-30/observatorio-constitucional-teoria-juridica-reinventada.
[6] Cf.
http://www.conjur.com.br/2013-abr-04/senson-incomum-observatorio-observatorio-ou-circulatura-quadrado.
[7] Como o professor Lênio Streck
bem sabe, os títulos dos artigos da ConJur são editados.
Jorge Octávio Lavocat Galvão é
procurador do Distrito Federal, mestre em Direito pela New York University e
doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 13 de
abril de 2013
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