Revista Época: É urgente recuperar o sentido de
urgência
Nós, que podemos ser acessados por celular ou internet 24 horas, sete
dias por semana, estamos vivendo no tempo de quem?
ELIANE BRUM
jornalista, escritora e
documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de
reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que
ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em
busca da literatura da vida real (Globo).
elianebrum@uol.com.br
Twitter: #brumelianebrum
Dias atrás, Gabriel
Prehn Britto, do blog Gabriel quer viajar, tuitou a seguinte frase: “Precisamos
redefinir, com urgência, o significado de URGENTE”. (Caixa alta, na internet, é
grito.) “Parece que as pessoas perderam a noção do sentido da palavra”,
comentou, quando perguntei por que tinha postado esse protesto/desabafo no
Twitter. “Urgente não é mais urgente. Não tem mais significado nenhum.” Ele se
referia tanto ao urgente usado para anunciar notícias nada urgentes nos sites e
nas redes sociais, quanto ao urgente que invade nosso cotidiano, na forma de
demanda tanto da vida pessoal quanto da profissional. Depois disso, Gabriel
passou a postar uns “tuítes” provocativos, do tipo: “Urgente! Acordei” ou
“Urgente: hoje é sexta-feira”.
A provocação é
muito precisa. Se há algo que se perdeu nessa época em que a tecnologia tornou
possível a todos alcançarem todos, a qualquer tempo, é o conceito de urgência.
Vivemos ao mesmo tempo o privilégio e a maldição de experimentarmos uma
transformação radical e muito, muito rápida em nosso ser/estar no mundo, com
grande impacto na nossa relação com todos os outros. Como tudo o que é novo, é
previsível que nos atrapalhemos. E nos lambuzemos um pouco, ou até bastante.
Nessa nova configuração, parece necessário resgatarmos alguns conceitos, para
que o nosso tempo não seja devorado por banalidades como se fosse matéria
ordinária. E talvez o mais urgente desses conceitos seja mesmo o da urgência.
Estamos vivendo
como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para
exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do “outro” fosse,
por direito, também o “meu” tempo. E até como se o corpo do outro fosse o meu
corpo, já que posso invadi-lo, simbolicamente, a qualquer momento. Como se os
limites entre os corpos tivessem ficado tão fluidos e indefinidos quanto a
comunicação ampliada e potencializada pela tecnologia. Esse se apossar do
tempo/corpo do outro pode ser compreendido como uma violência. Mas até certo
ponto consensual, na medida em que este que é alcançado se abre/oferece para
ser invadido. Torna-se, ao se colocar no modo “online”, um corpo/tempo à
disposição. Mas exige o mesmo do outro – e retribui a possessão. Olho por olho,
dente por dente. Tempo por tempo.
Como muitos, tenho
tentado descobrir qual é a minha medida e quais são os meus limites nessa nova
configuração. E passo a contar aqui um pouco desse percurso no cotidiano, assim
como do trilhado por outras pessoas, para que o questionamento fique mais
claro. Descobri logo que, para mim, o celular é insuportável. Não é possível
ser alcançada por qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Estou lendo
um livro e, de repente, o mundo me invade, em geral com irrelevâncias, quando
não com telemarketing. Estou escrevendo e alguém liga para me perguntar algo que
poderia ter descoberto sozinho no Google, mas achou mais fácil me ligar, já que
bastava apertar uma tecla do próprio celular. Trabalhei como uma camela e, no
meu momento de folga, alguém resolve me acessar para falar de trabalho,
obedecendo às suas próprias necessidades, sem dar a mínima para as minhas. Não,
mas não mesmo. Não há chance de eu estar acessível – e disponível – 24 horas
por sete dias, semana após semana.
Me bani do mundo
dos celulares, fechei essa janela no meu corpo. Mantenho meu aparelho, mas ele
fica desligado, com uma gravação de “não uso celular, por favor, mande um
e-mail”. Carrego-o comigo quando saio e quase sempre que viajo. Se precisar
chamar um táxi em algum momento ou tiver uma urgência real, ligo o celular e
faço uma chamada. Foi o jeito que encontrei de usar a tecnologia sem ser usada
por ela.
Minha decisão não
foi bem recebida pelas pessoas do mundo do trabalho, em geral, nem mesmo pela
maior parte dos amigos e da família. Descobri que, ao não me colocar 24 horas
disponível, as pessoas se sentiam pessoalmente rejeitadas. Mas não apenas isso:
elas sentiam-se lesadas no seu suposto direito a tomar o meu tempo na hora que
bem entendessem, com ou sem necessidade, como se não devesse existir nenhum
limite ao seu desejo. Algumas declararam-se ofendidas. Como assim eu não posso
falar com você na hora que eu quiser? Como assim o seu tempo não é um pouco
meu? E se eu precisar falar com você com urgência? Se for urgência real – e
quase nunca é – há outras formas de me alcançar.
Percebi também que,
em geral, as pessoas sentem não só uma obrigação de estar disponíveis, mas
também um gozo. Talvez mais gozo do que obrigação. É o que explica a cena
corriqueira de ver as pessoas atendendo o celular nos lugares mais absurdos
(inclusive no banheiro...). Nem vou falar de cinema, que aí deveria ser caso de
polícia. Mas em aulas de todos os tipos, em restaurantes e bares, em encontros
íntimos ou mesmo profissionais. É o gozo de se considerar imprescindível. Como
se o mundo e todos os outros não conseguissem viver sem sua onipresença. Se não
atenderem o celular, se não forem encontradas de imediato, se não derem uma
resposta imediata, catástrofes poderão acontecer.
O celular ligado
funciona como uma autoafirmação de importância. Tipo: o mundo (a empresa/a
família/ o namorado/ o filho/ a esposa/ a empregada/ o patrão/os funcionários
etc) não sobrevive sem mim. A pessoa se estressa, reclama do assédio, mas não
desliga o celular por nada. Desligar o celular e descobrir que o planeta
continua girando pode ser um risco maior. Nesse sentido, e sem nenhuma ironia,
é comovente.
Por outro lado, é
um tanto egoísta, já que a pessoa não se coloca por inteiro onde está, numa
aula ou no trabalho ou mesmo em casa – nem se dedica por inteiro àquele com
quem escolheu estar, num encontro íntimo ou profissional. Está lá – mas apenas
parcialmente. Não há como não ter efeito sobre o momento – e sobre o resultado.
A pessoa está parcialmente com alguém ou naquela atividade específica, mas
também está parcialmente consigo mesma. Ao manter o celular ligado, você
pertence ao mundo, a todo mundo e a qualquer um – mas talvez não a si
mesmo.
Me parece descortês
alguém estar comigo num restaurante, por exemplo, e interromper a conversa e a
comida para atender o celular. Assim como me parece abusivo ser obrigada a
aturar os celulares das pessoas ao redor tocando em todas as modalidades e
volumes, invadindo o espaço de todos os outros sem nenhuma consideração. Ou
ainda estar em um lugar público e ter de ouvir a narração de uma vida privada,
uma que não conheço nem quero conhecer. Será que isso é realmente necessário?
Será que uma pessoa não pode se ausentar, ficar incomunicável, por algumas
horas? Será que temos o direito de invadir o corpo/tempo dos outros direta ou
indiretamente? Será que há tantas urgências assim? Como é que trabalhávamos e
amávamos antes, então?
Bem, eu não sou
imprescindível a todo mundo e tenho certeza de que os dias nascem e morrem sem
mim. As emergências reais são poucas, ainda bem, e para estas há forma de me
encontrar. Logo, posso ficar sem celular. Mas tive de me esforçar para que as
pessoas entendessem que não é uma rejeição ou uma modalidade de misantropia,
apenas uma escolha. Para mim, é uma maneira de definir as fronteiras simbólicas
do meu corpo, de territorializar o que sou eu e o que é o outro, e de
estabelecer limites – o que me parece fundamental em qualquer vida.
Tentei manter um
telefone fixo, com o número restrito às pessoas fundamentais no campo dos
afetos e também no profissional. Mas o telemarketing não permitiu. É
impressionante como as empresas de todo o tipo – e agora até os candidatos numa
eleição – acham que têm o direito de nos invadir a qualquer hora. Considero uma
violência receber uma ligação ou gravação dessas dentro de casa, à minha
revelia. E parece que sempre encontram um jeito de burlar nossas tentativas de
barrar esse tipo de assédio. Assim, também botei uma gravação no telefone fixo
– e ele virou um telefone só para recados, porque foi o único jeito que
encontrei de impedir o abuso do mercado.
Minha principal
forma de comunicação é hoje o e-mail, porque sou eu que escolho a hora de
acessá-lo. E, ao procurar alguém, seja por motivo profissional ou pessoal,
tenho certeza de não estar invadindo seu cotidiano em hora imprópria. É assim
que combino encontros e entrevistas ao vivo, que são os que eu prefiro. Ou
marco horário para conversas por Skype com quem está em outra cidade ou país. E
quando viajo ou preciso desaparecer do mundo, para ficar só comigo mesma, ou me
dedicar a um outro por completo, ou à escrita de um livro, basta deixar uma
mensagem automática. Tento me disciplinar para acessar o Twitter, que para mim
é hoje uma ferramenta fundamental para dar, receber e principalmente
compartilhar informações, em horários específicos. E desligo o computador antes
de dormir, como gesto simbólico que diz: fechei a porta.
Uma amiga foi
assaltada por uma insônia persistente. Ao despertar, na madrugada, tinha a
sensação de que o mundo se movia em ritmo veloz enquanto ela dormia. Parecia
que estava perdendo algo importante, que ficaria para trás. E parecia até que
estava morta para o mundo, “offline”. Às vezes não resistia e saía da cama para
caminhar até o escritório, onde ficava o computador, e entrar no Facebook e no
Twitter, dar uma circulada nos sites de notícias, manter-se desperta, presente
e alinhada ao mundo que não parava, correndo atrás dele. Depois, passou a
deixar o notebook ao lado da cama e já acessava a internet dali mesmo, apesar
dos protestos do marido.
Quando a insônia já
estava comprometendo seriamente os seus dias, ela procurou um psiquiatra em
busca de remédio. O médico perguntou bastante sobre seus hábitos, e ela
descobriu que o pesadelo que a deixava insone era aquele computador ligado, com
o mundo acontecendo dentro dele num ritmo que ela não podia acompanhar nem
mesmo se mantendo acordada por 24 horas. Bastou desligar o computador a cada
noite para que passasse a despertar menos vezes e menos sobressaltada nas
madrugadas. Aos poucos, voltou a dormir bem. O mundo estava onde devia estar –
e ela também, na cama. Estava offline, mas viva.
Conheço pessoas que
botam fita adesiva sobre a câmera do computador. Foi o meio encontrado para se
protegerem da sensação de que estavam sendo espiadas/monitoradas 24 horas por
dia por algum tipo de Big Brother – no sentido do 1984, do George Orwell (não
no do reality show da TV Globo). A câmera tinha se tornado uma espécie de olho
do mundo, que podia abrir as pálpebras mesmo à revelia, como nas histórias
fantásticas e nos filmes de terror.
Conto minhas
(des)venturas, assim como as de outros, apenas porque acho que não somos os
únicos a ter esse tipo de inquietação. É um momento histórico bem estratégico
de redefinição de limites, de territórios e também de conceitos. Que tipo de
efeito terá sobre as novas gerações a ideia de que não há limites para
alcançar, ocupar e consumir o tempo/corpo dos pais e amigos e mesmo de
desconhecidos? Assim como não há limites para ter o próprio tempo/corpo
alcançado, ocupado e consumido?
Ainda acho que o
gozo de ser imprescindível a quase todos os outros – no sentido de não poder se
ausentar ou se calar – e também de ser onipotente – no sentido de alcançar, a
qualquer hora, o corpo de todos os outros – é maior do que o incômodo. Mas
talvez só aparentemente, na medida em que é possível que não estejamos
conseguindo avaliar o estrago que esses corpos/tempos violáveis e violados
possam estar causando na nossa subjetividade – e mesmo na nossa capacidade
criativa e criadora.
A grande perda é
que, ao se considerar tudo urgente, nada mais é urgente. Perde-se o sentido do
que é prioritário em todas as dimensões do cotidiano. E viver é, de certo modo,
um constante interrogar-se sobre o que é importante para cada um. Ou, dito de
outro modo, uma constante interrogação sobre para quem e para o quê damos nosso
tempo, já que tempo não é dinheiro, mas algo tremendamente mais valioso. Como
disse o professor Antonio Candido, “tempo é o tecido das nossas vidas”.
Essa oferta 24 X 7
do nosso corpo simbólico para todos os outros – e às vezes para qualquer um –
pode ter um efeito bem devastador sobre a nossa existência. Um que sequer é
escutado, dado o tanto de barulho que há. Falamos e ouvimos muito, mas de fato
não sabemos se dizemos algo e se escutamos algo. Ou se é apenas ruído para
preencher um vazio que não pode ser preenchido dessa maneira.
Será que não é este
o nosso mal-estar?
Viver no tempo do
outro – de todos e de qualquer um – é uma tragédia contemporânea.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
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