Independência das esferas administrativa e penal é mito
POR PIERPAOLO CRUZ BOTTINI
Um mantra sempre repetido em doutrina e jurisprudência:
processo administrativo e penal são independentes, autônomos, seguem princípios
distintos, e as decisões em um deles não se comunicam com o outro.
Com base nisso, é comum que a absolvição de investigado na
seara administrativa seja ignorada na seara penal, e vice-versa, como se cada
segmento do Poder Público fosse uma unidade hermética e indevassável a
valorações feitas em outros terrenos. Isso ocorre nos crimes financeiros,
concorrenciais, ambientais, e em outros, em que eventuais decisões dos órgãos
que apuram ilícitos administrativos (Banco Central, Cade, Ibama) são
praticamente desconsideradas na esfera penal. Ocorre que a cada dia se constata
que tal independência é relativa.
Em primeiro lugar, a própria legislação e a jurisprudência
têm conferido efeitos cada vez mais relevantes a atos praticados no âmbito
administrativo, em especial em relação ao processo penal. Apenas para fins
ilustrativos, podemos citar a conhecida Súmula 24 do STF, que faz depender a
“materialidade típica do crime fiscal da constituição administrativa do crédito
tributário”, e a Lei 12.259/11, que determina a extinção da punibilidade dos crimes
de cartel quando cumprido do acordo de leniência, firmado no âmbito do Cade.
Mas, mesmo que a lei não estabeleça relação direta entre as
instâncias administrativa e penal, os princípios consagrados neste último
impõem uma ligação importante entre elas, em especial nos casos em que o
comportamento seja considerado lícito na seara administrativa.
Nessas hipóteses, o princípio da subsidiariedade tem
interferência central. Se o direito penal é a ultima ratio do controle social,
se é tratado como o instrumento que age apenas diante de ineficácia de outros
mecanismos de inibição de condutas, como explicar a legitimidade da pena para
uma ação ou omissão considerada lícita na seara cível ou administrativa? Como
justificar a necessidade da repressão penal a uma conduta supostamente
anticoncorrencial considerada lícita pelo Cade? Ou uma gestão temerária de
instituição financeira reputada insignificante pelo Banco Central do Brasil?
É evidente que os valores protegidos pelo Direito
Administrativo são distintos daqueles presentes na esfera penal. Ocorre que, a
existência de justa causa para a persecução penal exige a verificação do
desvalor da conduta para todas as outras esferas de controle social. Do
contrário restará subvertido o princípio mais caro ao sistema: a ultima ratio
da intervenção penal e sua fragmentariedade.
É sempre oportuno frisar que os valores protegidos pelo
Direito Penal são os mais relevantes e importantes para o funcionamento de
determinada sociedade. A lógica do princípio da fragmentariedade impõe que a
norma penal declare injusto apenas aquele comportamento absolutamente
inaceitável, insuportável para o convívio em sociedade, e rechaçado pelo
ordenamento jurídico como um todo.
Aceitar que um ato tolerado na esfera administrativa ou
cível seja reconhecido como injusto penal seria inverter completamente o
princípio da fragmentariedade, que, nas palavras de Roxin “sería una
contradiccion axiológica insoportable, y contradiria además la subsidiariedad
del Derecho penal como recurso extreo de la política social, que una conducta
autiruzada em cualquier campo del Derecho no obstante fuera castigada
penalmente”[1]. Na mesma linha, explica Bittencourt:
“Por isso, um ilícito penal não pode
deixar de ser igualmente ilícito em outras áreas do direito, como a civil,
administrativa, etc. No entanto, o inverso não é verdadeiro: um ato licito
civil não pode ser ao mesmo tempo um ilícito penal. Dessa forma, apesar de as
ações penal e extrapenal serem independentes, o ilícito penal, em regra,
confunde-se com o ilícito extrapenal. Em outros termos, sustentar a
independência das instâncias administrativa e penal é uma conclusão de natureza
processual, ao passo que a afirmação que a ilicitude é única implica uma
conclusão de natureza material”[2]
Não é diferente o entendimento do STF nesta seara:
“1. De acordo com o
artigo 20 da Lei n° 10.522/02, na redação dada pela Lei n° 11.033/04, os autos
das execuções fiscais de débitos inferiores a dez mil reais serão arquivados,
sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional,
em ato administrativo vinculado, regido pelo princípio da legalidade. 2. O
montante de impostos supostamente devido pelo paciente é inferior ao mínimo
legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a
referência a outros débitos em seu desfavor, em possível continuidade delitiva.
3. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta
administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. Princípios da
subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima
que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente
tutelado. 4. O afastamento, pelo órgão fracionário do Tribunal Regional Federal
da 4ª Região, da incidência de norma prevista em lei federal aplicável à
hipótese concreta, com base no art. 37 da Constituição da República, viola a
cláusula de reserva de plenário. Súmula Vinculante n° 10 do Supremo Tribunal
Federal. 5. Ordem concedida, para determinar o trancamento da ação penal. (STF,
HC 92438 / PR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Julgamento: 19/08/2008, Órgão
Julgador: Segunda Turma, Publicação DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008
EMENT VOL-02346-04 PP-00925, sem grifo no original).
Cumpre destacar o seguinte trecho do voto do E. Ministro Joaquim
Barbosa nos autos do Habeas Corpus supra mencionado (HC 92438)
“Torno a dizer: não é possível que uma
conduta seja administrativamente irrelevante e não o seja para o Direito Penal,
que só deve atuar quando extremamente necessário para a tutela do bem jurídico
protegido quando, quando falham os outros meios de proteção e não são
suficientes as tutelas estabelecidas nos demais ramos do direito.”
Também nesse sentido:
“(...) I. - No caso, tendo a denúncia
se fundado exclusivamente em representação do Banco Central, não há como dar
curso à persecução criminal que acusa o paciente de realizar atividade
privativa de instituição financeira, se a decisão proferida na esfera
administrativa afirma que ele não pratica tal atividade. Inocorrência,
portanto, de justa causa para o prosseguimento da ação penal contra o paciente.
II. – HC deferido. (STF, HC 83674, Relator(a):
Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 16/03/2004, DJ 16-04-2004
PP-00088 EMENT VOL-02147-13 PP-02629)
Em caso bastante similar, o STJ reconheceu a relatividade da
independência das instâncias:
“ (...) No Estado
Democrático de Direito, o devido (justo) processo legal impõe a temperança do
princípio da independência das esferas administrativa e penal, vedando-se ao
julgador a faculdade discricionária de, abstraindo as conclusões dos órgãos
fiscalizadores estatais sobre a inexistência de fato definido como ilícito, por
ausência de tipicidade, ilicitude ou culpabilidade, alcançar penalmente o
cidadão com a aplicação de sanção limitadora de sua liberdade de ir e vir.
5. É certo que esta
independência também funciona como uma garantia de que as infrações às normas
serão apuradas e julgadas pelo poder competente, com a indispensável liberdade;
entretanto, tal autonomia não deve erigir-se em dogma, sob pena de engessar o
intérprete e aplicador da lei, afastando-o da verdade real almejada, porquanto
não são poucas as situações em que os fatos permeiam todos os ramos do direito.
(...) (STJ, HC 77228/RS (2007/0034711-6), Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA
FILHO, 5ª T., DJ 07/02/2008 p. 1, sem grifo no original)
Ou o seguinte julgado:
“(...) 1. O
trancamento da ação penal por ausência de justa causa, medida de exceção que é,
somente cabe quando a atipicidade e a inexistência dos indícios de autoria se
mostram na luz da evidência, primus ictus oculi. 2. Em resultando manifesta a
atipicidade da conduta atribuída ao agente, como nas hipóteses em que,
descomprometido com o aferimento de lucro, quanto mais ilícito, tomou medidas
urgentes e necessárias ao bom funcionamento do órgão que geria, o trancamento
da ação penal é medida que se impõe. 3. Carece de justa causa a ação penal
fundada em representação de Autarquia Federal, quando ela própria vem a
considerar como lícita a conduta do agente (Precedente do STF). 4. Recurso
provido”. (STJ, RHC 12192/RJ (2001/0184954-7), Rel. Ministro HAMILTON
CARVALHIDO, 6ª T., DJ 10/03/2003 p. 311)
Ora, se determinado comportamento é reconhecido por um
sistema de controle social menos grave que o direito penal como aceitável — ou
ao menos como não intolerável — não há legitimidade para a incidência da norma
penal, caracterizada como intervenção de ultima ratio, cuja incidência é mais
restrita e limitada. Como atesta Figueiredo Dias: “se uma ação é considerada
lícita (sc. conforme ao 'Direito') pelo direito civil, administrativo ou por
qualquer outro, essa licitude – ou ausência de ilicitude – tem de impor-se a
nível do direito penal” [3].
Por isso, a decisão administrativa que reconhece a licitude
do comportamento — se isenta de vícios e cercada das formalidades legais —
interfere diretamente na seara criminal, porque afasta a necessidade deste
último controle, pelo principio da subsidiariedade.
[1] ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. 2.
ed. Madrid: Civitas,1997. p.570
[2] BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal.
p.297, sem grifo no original
[3] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral.
Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora,
2004. p. 388, sem grifo no original
PIERPAOLO CRUZ BOTTINI é advogado e professor de Direito
Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da
Justiça.
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