SENSO INCOMUM
Ah, as palavras e as
coisas na Sereníssima República
Por Lenio Luiz Streck
Dia desses em uma aula para os
alunos de uma disciplina especial do curso de graduação em Direito da Unisinos,
os alunos perguntaram: Professor, o que quer dizer o enunciado “mato no peito”?
Refleti a respeito, procurando disfarçar a circunstância de ter sido pego de
surpresa. A questão, efetivamente, mostrava-se complexa. Mas, tinha de
enfrentá-la. Duela a quien duela, para usar um castellano castiço.
Entonces, comecei escrevendo na
lousa o verso de Hilde Domin: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche
Körperwärme bei Ding und Wort.” Embaixo, a explicação: “Palavra e coisa jaziam
juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra...”! E complementei:
Sim, no início era assim. Mas, depois, palavra e coisa se separaram. E, com
certa melancolia, acrescentei: E nunca mais se encontraram...
A partir desse poema, fiz uma
reconstrução da história institucional da filosofia, da linguagem e do direito.
Dos sofistas até os nossos dias. A voo de pássaro, contando histórias, para
ganhar a atenção dos meninos e meninas do segundo período do curso. Essa tarefa
não é fácil. Quando escrevi o poema na lousa com la tiza, já notei a
impaciência da ala dos fundos da aula. O que teria isso a ver com o enunciado
“mato no peito”? “Esse professor, por certo, está tentando enrolar a gente”,
deviam estar pensando.
Sigo. Caminhante. Y haciendo el
caminho al andar, com Antonio Machado.
Se palavras e coisas jaziam juntas e
depois se separaram, parece que a grande dificuldade é encontrar um “ponto de
estofo” para a atribuição dos sentidos, que não podem depender nem das coisas e
nem do intérprete (atribuidor de sentidos). Isto é, não devemos acreditar em
uma “colagem” entre texto e sentido do texto ou entre palavra e coisa e,
tampouco, em um livre “dar sentido”. Sem realismo, nem idealismo; nem
objetivismo, nem subjetivismo. Isso para ser bem sencillo.
No caminho dos gregos até a viragem
linguística (preocupo-me mais com o que se chama de “giro
ontológico-linguístico), algumas paradas podem ser feitas no campo da
analítica. Embora entenda que as teorias analíticas lato sensu se mostrem
insuficientes para dar conta da complexidade do Direito na contemporaneidade,
reconheço que dá para fazer interessantes discussões com os atos de fala
(Searle), a relação conotação-denotação, os usos pragmáticos da linguagem, etc.
Aliás, isso é velho para quem trabalha teoria crítica no Direito. Hoje, até a
empedernida dogmática pedestre já “descobriu” que a lei contém imprecisões
linguísticas...
Assim, o “segundo Wittgenstein” pode
ser muito importante para deslocar o problema dos sentidos da sintaxe e da
semântica para (o nível (d)a pragmática. Ou seja, Wittgenstein descobriu, de
forma ruptural, que o sentido está no uso dos enunciados. Assim, dizer que a
água ferve a 100º não é falso e nem verdadeiro; depende do contexto de uso. Do
mesmo modo, uma lei que proíba fazer topless na praia terá um sentido
absolutamente invertido se aplicado em uma praia de nudismo... Quem é a da
crítica do Direito “brinca” com isso desde os bons tempos de Warat no Brasil.
O que quero dizer — e poderia fazer
esse recorrido por dezenas e dezenas de páginas — é que o enigma do poema de
Domin longe está de ser resolvido. A teoria do direito cometeu vários equívocos
na tentativa de superar o formalismo próprio do positivismo clássico (ou
primitivo). Várias posturas coloca(ra)m no lugar do juiz boca-da-lei um “juiz
dos princípios”, “um juiz dono da lei”, um juiz da ponderação”, etc. No meio
disso, não esqueceram de colocar um pé (ou nunca tirar) do velho positivismo fático,
forma rebuscada de chamar o realismo jurídico, coisa muito comum e que pode ser
encontrada nos pronunciamentos de juízes e tribunais (por exemplo, a frase
caracterizado: “o direito é aquilo que os tribunais dizem que é”). E assim a
coisa foi. E vai.
Chegamos, assim, entre sístoles e
diástoles, ao caos. Cada um “dá sentidos” como quer. Já que palavras e coisas
estão cindidas, a ordem parece ser: “Esbaldemo-nos no ‘paraíso do estado de
natureza da atribuição de sentidos’”. Basta ver como o próprio sistema jurídico
construiu uma resposta darwiniana a esse caos, estabelecendo as súmulas
vinculantes e repercussão geral. Parece que não deu certo. Mas disso já
sabemos. Mas nem isso dá certo para segurar o “dizer qualquer coisa”!
Se eu fosse buscar na literatura um
modo de tentar metaforizar esse “estado de natureza hermenêutico” que se
instaurou no Direito e nos “operadores” (odeio essa palavra), convocaria — como
de fato convoco — o nosso Flaubert, Machado de Assis, com seu conto A
Sereníssima República, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas
falantes, que se organizaram politicamente”. O Cônego lhes ofereceu um sistema
eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos
candidatos em sacos. O inusitado ocorreu quando da eleição de um magistrado:
“Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de
nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco
assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Feito
o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a
última letra. Mas as cinco testemunhas resolveram o problema. Caneca, o
derrotado, impugnou o resultado. Trouxe um grande filólogo, um bom metafísico,
que apresentou a sua tese: “Em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da
letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi
intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”,
desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa.
Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que
é “ne”. Tem-se, assim, “cané”. Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a
esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do
mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e
sintáticas, dedutivas e indutivas... Aí está a prova: a primeira afirmação mais
as silabas “ca” às duas “Cane, dando o nome Caneca.”
Não se sabe se a tese do grande
filólogo colou, mas uma coisa se fez: Eliminaram a possibilidade desse tipo de
parecer! Nunca mais o chamaram. E ninguém desse jaez!
Continuo. E, ao contrário do poema,
sin volver la vista atrás!
Pois é. De fato, não se pode
atribuir qualquer sentido às palavras. E, portanto, às coisas. Já não é
suficiente, hoje, invocar os atos de fala, os usos contextuais, etc. É muito
pouco — e pobre, do ponto de vista filosófico — invocar as vaguezas e
ambiguidades dos textos legais. Alguns enunciados até que tem “salvação”, como,
por exemplo, “chamar alguém de cão”, que, longe de ser uma grave ofensa, pode
ser um elogio (cão é um animal fiel, etc.). O enunciado “chove lá fora”... pode
ser uma mentira sem conserto, mas, se o enunciado é pronunciado por um
professor ensinando o funcionamento do neopositivismo lógico (empirismo
contemporâneo), basta colocar a palavra “não” que o problema estará resolvido.
Há “regiões” intermediárias, como é
o caso de um grupo de juristas (qualquer semelhança com a realidade, não é mera
coincidência) discutindo se prevalece a “vontade da norma” ou o “espírito do
legislador”. Neste caso, há que se discutir se “norma tem vontade”. Eu, por
exemplo, tenho uma tia chamada “Norma”, que tem sempre boa vontade para fazer
saborosos bolinhos de chuva... Portanto, eu saberia dizer qual a “vontade da
norma”... Já o espírito do legislador eu deixaria para quem tem essa expertise
de invocação transcendental... De todo modo, há que ter muito cuidado, porque
não existe um Nomoteta ou um Onomaturgo (dador de nomes platônico) na
contemporaneidade, com o que podemos dizer que as palavras não refletem a
essência das coisas (e nem delas podemos extorquir sentidos). Fomos condenados
a interpretar. E a fazer pilhérias, nos momentos propícios ou quando “a ré não
se ajuda”. Quem é a ré, aqui? Simples: A cotidianidade das práticas jurídicas e
a politica. Ouve-se cada coisa...[1]
Ou seja, foi bom que as aranhas
expulsassem aquele “metafísico” filólogo, que fazia fantasmagorias com a
linguagem. Caso contrário, poderíamos provar, por exemplo, que o enunciado “eu
mato no peito” poderia apenas querer dizer “eu cometo homicídio na região
central do tórax” ou, ainda, alguém que canta, por partes, a música que
homenageou Garrincha, em que o cantor diz “mato (a saudade) no peito” driblando
a emoção... Ou dois homens disputando a quantidade de pelos na região peitoral,
em que um diz “eu chego a ter mato no peito” (mais difícil essa, é claro —
aqui, teríamos que pedir auxílio ao metafísico do conto da Sereníssima
República, do nosso Flaubert brasileiro).
Mato é verbo. E também substantivo.
Prefiro o substantivo. Como a palavra “lenha”. “Mato” pode ser “lenha”. Porque
lenha era o antigo nome que se usava para dizer “floresta”. Como no poema
heideggeriano, traduzido por Ernildo Stein:
“Lenha é um antigo nome para
floresta. Na floresta há caminhos que o mais das vezes, invadidos pela
vegetação, terminam subitamente no não-trilhado. Eles se chamam caminhos da
floresta.
Cada um segue um traçado separado,
mas na mesma floresta. Muitas vezes parece que um se assemelha ao outro.
Contudo, apenas assim parece. Lenhadores e guardas da floresta conhecem os
caminhos. Eles sabem o que quer dizer estar num caminho da floresta”.
Na nossa Sereníssima República,
faltam bons lenhadores e bons guardas da floresta. De novo invocando Heidegger
— e me reporto ao meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, cuja primeira edição é
lá dos anos 1990 — é necessário estabelecer uma “clareira” (Lichtung) no mundo
jurídico. Clareira vem do verbo “clarear”. O adjetivo “claro” (licht) é a mesma
palavra que “leicht” (leve), lembra-nos Heidegger.
Daí que clarear algo significa
tornar algo leve, livre e aberto, como, por exemplo, tornar a floresta, em um
determinado lugar, livre de árvores. A dimensão livre (e leve) que assim surge
é a clareira (die Lichtung). A clareira “é o aberto para tudo que se apresenta
e ausenta”. É o clarear da clareira que institui a possibilidade de a floresta
manifestar-se “como” floresta. E, como muito bem diz Heidegger,
“para além do que é, não longe
disso, mas anterior a isso, existe ainda algo que acontece. No centro dos seres
como um todo ocorre um espaço aberto. Há uma clareira, uma iluminação... Este
centro aberto é... não rodeado pelo que é...; em vez disso, o próprio centro de
iluminação engloba tudo o que é... Apenas esta clareira garante e certifica aos
seres humanos uma passagem para aqueles entes que não somos nós próprios, e
acesso ao ser que nós próprios somos” (Gesamtausgabe, v. 5: Holzwege. Frankfurt
am Main, Klostermann, 1977, p. 39-40).
Sim, a clareira é essa região na
claridade da qual pode aparecer tudo o que é. A clareira (Lichtung) é essa
abertura para a claridade, essa “região livre”, desbastada, um terreno tornado
livre, enfim, um espaço desbravado, liberto de suas árvores, que pode, agora,
receber e reenviar a luz.
A clareira é o espaço que
possibilita(rá) olhar em volta. A clareira vem a ser, nesse sentido, a condição
de possibilidade da própria floresta. Abrir uma clareira é, assim, propiciar a
alétheia (a não ocultação, “o isto aí que foi arrancado da ocultação”) no campo
jurídico.
Olhei o relógio e aula estava no
fim. Ainda deu tempo de dizer: Sim, precisamos abrir uma clareira... em nossa
SERENÍSSIMA REPÚBLICA!
Saí esperançoso de que os alunos —
aqueles que desligaram o Facebook e não ficaram bulinando o Iphone durante a
aula, enfim, sem trocadilho, aqueles não “mataram a aula” — tenham entendido um
pouco da relação entre palavras e coisas.
E que tenham se dado conta da
profundidade do enunciado objeto da pergunta...!
[1] Nos últimos tempos, tenho sido
acompanhado, em aulas ou conferências, por estagiários albinos, que carregam
várias placas, com os dizeres “ironia”, “sarcasmo”, “irritação”, “humor”, etc.
Dependendo da reação da plateia, eles levantam as tais placas. Com um lembrete
que faço aqui: também isso que eu disse pode necessitar de uma placa, dizendo
“que a própria explicitação de que algo é ironia ou um sarcasmo” pode também
ser uma ironia ou sarcasmo de segundo nível. O perigo é o sarcasmo do sarcasmo
do sarcasmo... o que demandaria uma espécie de parada arbitrária
necessariamente útil, como no Trilema de Münschausen, tão bem trado por Hans Albert.
Não explico esse autor, aqui. Com certeza, haverá alguém que o fará, em alguma
Coluna próxima...
Lenio Luiz Streck é procurador de
Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o
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Revista Consultor Jurídico, 6 de
dezembro de 2012
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