quarta-feira, 1 de maio de 2013

Deu no Noblat


Enviado por Pedro Lago - 
30.4.2013
 | 23h30m

POEMA DA NOITE

Nuvem de calças (trechos) - Vladimir Maiakovski

Vocês pensam que é um delírio de malária ?
Mas aconteceu.
Foi em Odessa.
“Chegarei às quatro”, disse-me Maria.
Oito.
Nove.
Dez.
E a tarde penetrou
no horror da noite
indo-se da janela
para o frio de dezembro.
Às minhas costas, rindo-se,
cintilavam os candelabros.
Ninguém me reconheceria agora.
Este corpanzil,
massa de nervos crispados,
geme.
Quem há de querer um tal corpanzil?
Nele, no entanto, quantos desejos!
É fácil dizer que pouco importa,
que temos o corpo de bronze
e o coração feito de um metal gelado.
À noite, desejamos
abafar os sons metálicos
na almofada terna da mulher.
Eis-me então
imenso
debruçado à janela,
fundindo a vidraça
sob a testa escaldante.
Virá o amor ou não?
Será grande ou pequeno?
Como pode ser grande
com seu corpo tão pequenino?
Talvez lhe baste
tão só um amorzinho
desses que se assustam
com o grito das buzinas
e preferem o tilintar
dos guizos das carruagens.
Espero ainda.
Horas e horas.
Meu rosto toca
o rosto bexiguento da chuva.
Espero ainda
e o bramido ondulante das ruas
me faz estremecer.
A meia-noite
com uma faca nas mãos
me fere, me degola.
Bravo! As doze horas tombaram,
como no cadafalso a cabeça de um condenado.
Nas vidraças
gotas de chuva se torcem
num ríctus
como as quimeras uivantes, noturnas
de uma catedral assombrada.
Maldita!Ainda não estás satisfeita?
Em breve, um grito
vai destroçar-me a boca.
Atentamente, escuto:
qual um doente que do leito
lentamente se ergue,
um nervo salta.
Vem e vai,
lento, lento,
logo se contorce
vibra e galopa.
Logo depois já são três
a dançar infernais
num sapateio louco.
Do teto do andar inferior
caem pedaços de cal.
Os nervos
grandes
pequenos
inumeráveis
enfurecidos saltam
até que, de pernas bambas, tremem.
E noite dentro de meu quarto é espessa paisagem
onde meus olhos turvos não encontram passagem.
Súbito, rangem as portas
como se todo o hotel fossem mandíbulas
a rilhar dente sobre dente.
Entraste. Brusca como um desafio.
E amassando a camurça das luvas
disseste:
- Sabes? Vou me casar.
- É ?
Pois bem, casa-te!
Não faz mal. Agüentarei o golpe.
Não vês como estou calmo?
Dir-se-ia o pulso de um morto.
Te lembras deste teu lema:
“Jack London, dinheiro, amor, paixão” ?
Desde então foi que vi:
tu és uma Gioconda
que é preciso roubar!
E afinal te roubaram.
De novo, cheio de amor,
retiro-me do jogo.
Na curva de minhas pálpebras
acende-se uma aurora dourada.
Por que não?
Numa casa incendiada
se instalam às vezes
vagabundos sem teto.
Pretendes irritar-me?
Dizes que tenho menos
esmeraldas de loucura
que copeques
a bolsa de um mendigo?
Não te esqueças!
Bastou irritar-se o Vesúvio
para que Pompéia num dia se perdesse.
Ah! Senhores
amantes de sacrilégios
carnificinas e crimes,
já viram o mais terrível?
Meu rosto,
quando estou
absolutamente tranquilo.
Eu para mim é pouco.
Algo se empenha em sair de mim
como um louco.
Alô!
Quem fala?
Mamãe?
Mãe!
Teu filho está esplendidamente enfermo.
Tem um incêndio no coração.
Diga às manas Ludmila e Olga
que ele já não sabe pra onde ir.
Que cada palavra
até a mais leve graça
que lhe sai da boca ardente
salta como uma prostituta nua
fugindo de um bordel em chamas.
As pessoas farejam:
-“Cheira a queimado!”
Chamaram a quem?
Brilham capacetes. . .
São inúteis essas botas gigantes. . .
Digam aos bombeiros
que subam ao coração em chamas
com um par de carícias!
Eu mesmo
derramarei de meus olhos
tonéis de lágrimas.
Deixem que me apóie
em meu próprio peito.
Saltarei, saltarei, saltarei!
É inútil. Tudo desaba.
Jamais escaparás de teu próprio coração.
No rosto queimado
pela fenda dos lábios
um beijo carbonizado
assoma
pronto a saltar.
Mãe!
Não posso mais cantar.
O templo de meu coração
tem o altar em chamas!
Palavras e números
figuras ardentes
fogem de meu crânio
como crianças de uma casa em fogo.
Era assim que o pavor
de não poder agarrar-se nas nuvens
erguia os braços-labaredas do Lusitânia.
Ante a gente tímida
que vive na paz caseira
ergue-se um halo de incêndio
de mil olhos.
Ó meu derradeiro grito!
Diz aos séculos futuros
pelo menos isto:
Que eu estou em chamas!!"

Vladimir Maiakovski (Bagdadi, Rússia, 19 de julho de 1893 - Moscou, 14 de abril de 1930) - Poeta e dramaturgo, considerado um dos mais influentes autores do século XX. Foi um dos fundadores do movimento artístico futurista da Rússia. Ao lado de figuras como Meyerhold, participou da criação de um novo teatro russo influenciado pela arte construtivista. As traduções foram feitas por Carrera Guerra, Boris Schneiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos

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