CONSULTOR TRIBUTÁRIO
Limites à modificação da
jurisprudência consolidada
Por Heleno Taveira Torres
Em matéria tributária, a
jurisprudência galgou espaço de capital importância na teoria das fontes do
direito e, ainda que não seja fonte primária, e equipare-se à legalidade na
função de inovar regras para futuro, seus conteúdos são normas individuais e concretas
com eficácia inter partes e, como atos jurídicos públicos, concorrem para a
formação do “direito vivo”, naquilo que concerne à orientação das expectativas
dos destinatários do sistema tributário e à própria reprodução normativa dos
órgãos da administração ou da jurisdição.[1]
Nesse sentido, a
jurisprudência constitui uma garantia contra a instabilidade, na forma de
certeza do direito e meio de “orientação” das condutas individuais. Como diz
Joseph Raz, “o Direito deve ser capaz de guiar o comportamento dos sujeitos”, o
que vale igualmente para a jurisprudência, pois as pessoas aspiram a segurança
quanto ao direito aplicável, para determinar as consequências dos seus atos
(efeito de orientação da certeza do direito).[2]
Embora o Brasil não adote o
common law, nosso sistema jurídico confere relevância aos precedentes
jurisprudenciais e demonstra uma clara tendência a considerá-los vinculantes, a
exemplo do que preconizam as Leis 11.418/2006 e 11.672/2008 que inseriram no
Código de Processo Civil (CPC) a regulamentação a respeito dos recursos
repetitivos e o regime de repercussão geral. As súmulas e os artigos 475,
parágrafo 3º; 518, parágrafo 1º; 543-A; 543-B; 557 e 741, parágrafo único,
todos do CPC, denotam a importância das decisões do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Contudo, questão de extrema
importância é a ausência de regime jurídico para definir as condições para
regular a modificação abrupta da jurisprudência, pelo impacto sobre a segurança
jurídica, haja vista a mutação das relações jurídicas e afetação à “segurança
por orientação” da jurisprudência.
Tomemos aqui como exemplo
possível mudança de jurisprudência do STJ sobre o local do fato jurídico
tributário do Imposto Sobre Serviços (ISS) no caso do arrendamento mercantil,
ou leasing, o que equivale não apenas a uma afetação aos direitos do
contribuinte, mas principalmente a uma mudança do sujeito ativo das obrigações
principais do ISS. Esse tema encontra-se ora sob exame no Recurso Especial
Repetitivo e pode ter grave impacto sobre a receita tributária dos municípios.
Logo, pode ocorrer a retirada daquela exação de um município para transferi-lo
e concentrá-lo em um único ou em poucos municípios. Nesse aspecto, em evidente
afetação ao financiamento do município prejudicado que detinha como certa a
previsibilidade de receitas ao longo de décadas.
Ora, seria extremamente
danoso ao federalismo, com amplo favorecimento à guerra fiscal, caso essa fácil
manipulação do local do estabelecimento, como o de arrendamento mercantil de
bens móveis, pudesse ter sua cobrança vinculada unicamente ao local do
estabelecimento da administração dos contratos, em prejuízo do critério do
local da prestação, como sempre foi admitido pelo STJ, ao longo de toda a
aplicação do artigo 12 do Decreto-lei 406/68, e da LC 116/2003. Ou seja,
verteria graves prejuízos aos municípios e à segurança jurídica uma mudança de
jurisprudência consolidada do STJ e do STF, eventual alteração do critério de
definição do fato jurídico tributário do ISS naquelas referidas operações, em
desfavor da arrecadação dos demais municípios.
A prestação de serviço
derivada do contrato de leasing conclui-se somente com a tradição do bem
arrendado, cuja “causa jurídica” depende do destino ou do uso do bem. Portanto,
será apenas no município em que se concretizam os atos de transferência dos
bens onde se aperfeiçoará o fato gerador do ISS nas operações de leasing. E,
consequentemente, este será o município competente para cobrança do imposto. No
nosso entender, esta é a única proposição normativa que se pode afirmar em
consonância com o artigo 156, III da CF e com a autonomia dos municípios.[3]
No STJ, por mais de 20
anos, têm sido examinadas tanto a questão da incidência do ISS sobre as
operações de leasing, que se afigurava no alcance material da competência do
artigo 156, III, da CF, quanto à identificação do sujeito ativo competente para
cobrança do ISS sobre as operações de leasing.
De fato, a jurisprudência
do STJ sempre foi firme ao determinar que será competente para cobrar o ISS o
município em que ocorre o fato gerador, como pacificado no julgamento dos
Embargos de Divergência 130.792/CE, o qual foi ratificado sucessivamente nas
decisões subsequentes. Confira-se:
“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA.
ISS. COMPETÊNCIA. LOCAL DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. PRECEDENTES.
I — Para fins de incidência
do ISS — Imposto Sobre Serviços —, importa o local onde foi concretizado o fato
gerador, como critério de fixação de competência do Município arrecadador e
exigibilidade do crédito tributário, ainda que se releve o teor do art. 12,
alínea a do Decreto-Lei n. 406/68.
II — Embargos
rejeitados.”[4]
Nos julgados posteriores à
edição da Lei Complementar 116/2003, o STJ sempre manteve sua posição quanto à
cobrança do ISS, inclusive ao julgar casos semelhantes ao presente que
envolviam a cobrança do ISS em operações de arrendamento mercantil (leasing). A
saber:
“TRIBUTÁRIO. ISS.
ARRENDAMENTO MERCANTIL. LEASING. SÚMULA 138/STJ. COBRANÇA. LOCAL DA PRESTAÇÃO
DO SERVIÇO. ART. 12 DO DL N. 406/68. BASE DE CÁLCULO. VALOR DOS SERVIÇOS.
1. ‘O ISS incide na
operação de arrendamento mercantil de coisas móveis’. Inteligência da Súmula
138/STJ.
2. O Município competente
para a cobrança do ISS é aquele onde ocorreu o fato gerador e a base de cálculo
será o valor total dos serviços prestados. Precedentes.
3. Agravo regimental
não-provido.”[5]
O voto do ministro relator
Mauro Campbell Marques, nesta oportunidade, foi contundente ao afirmar que: “Em
relação à competência para a instituir e cobrar o Imposto Sobre Serviços
exigido nas operações de arrendamento mercantil, há entendimento firmado no âmbito
do STJ em sentido idêntico ao sufragado pelo tribunal de origem. Ou seja, o
município competente para a cobrança da exação é aquele onde ocorreu o fato
gerador e a base de cálculo será o valor total dos serviços prestados.”[6]
Deveras, a competência para exigir o ISS sobre operações de leasing foi
examinada em distintas oportunidades, com jurisprudência consolidada pela 1ª e
2ª Turmas em favor do “local da prestação”.
Entrementes, admitida como
pacífica a jurisprudência do STJ no que corresponde ao local da prestação de
serviços, como o critério preponderante, nada foi alterado pela Lei
Complementar 116/2003, ao revogar o artigo 12 do Decreto-lei 406/68. Nesse
diapasão, o acórdão cuja ementa segue transcrita, é assaz oportuno:
“EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL.
ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. SOBRESTAMENTO DO AGRAVO REGIMENTAL.
IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PERÍCIA. SUBSTRATO PROBATÓRIO SUFICIENTE.
SÚMULA N. 7/STJ. FATO GERADOR. MUNICÍPIO COMPETENTE PARA RECOLHIMENTO DA
EXAÇÃO. LOCAL ONDE OCORRE A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. (...)
III — ‘As Turmas que
compõem a Primeira Seção do STJ pacificaram o entendimento de que o ISS deve
ser recolhido no local da efetiva prestação de serviços, pois é nesse local que
se verifica o fato gerador’ (AgRg no Ag 763.269/MG, Rel. Min. João Otávio de
Noronha, DJ 12.09.2006). Na mesma linha: AgRg no Ag 762.249/MG, Rel. Min. Luiz
Fux, DJ 28.09.2006 e REsp 695.500/MT, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ
31.05.2006.
IV — Esta Corte, em
inúmeros julgamentos, tem defendido a orientação de que a controvérsia acerca
da incidência do ISS sobre a operação de arrendamento mercantil envolve a
interpretação e a eficácia do artigo 156, inciso III, da Constituição Federal,
razão pela qual a competência pertence ao Colendo Supremo Tribunal Federal.
Precedentes: AgRg no REsp 876.590/SC, Rel. Min. Humberto Martins, DJ
31.05.2007; REsp 797.948/SC, Rel. p/acórdão Min. Luiz Fux, DJ 01.03.2007; REsp
919.148/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ 28.05.2007 e REsp 886.592/SC, Rel. Min.
Teori Albino Zavascki, DJ 26.03.2007.
V — Agravo regimental
improvido.”[7]
A hermenêutica desta
decisão sintetiza a história jurisprudencial do STJ quanto à incidência do ISS
no caso das operações com leasing.
Trazido para os dias
atuais, verifica-se que dois aspectos fundamentais viam-se prefigurados nas
razões de decidir do STJ:
I) O ISS deve ser recolhido no local
da efetiva prestação de serviços — reconhecimento de Jurisprudência
consolidada, porquanto as “Turmas que compõem a 1ª Seção do STJ pacificaram o
entendimento” no sentido de que a incidência, no caso do leasing, seria no
local onde se verifica o fato gerador.
II) A controvérsia acerca da incidência
do ISS sobre a operação de arrendamento mercantil envolveria a interpretação e
a eficácia do artigo 156, inciso III, da CF. E só para essa matéria caberia
aguardar o pronunciamento do STF.
Como se verifica de ambas
as decisões, o STJ manteve incólume seu entendimento, com alcance às operações
de arrendamento mercantil, como antecipado na sua Súmula 138 (O ISS incide na
operação de arrendamento mercantil de coisas móveis), segundo o qual o ISS será
devido sempre no local da prestação de serviços, em harmonia com sua hipótese
de incidência.[8]
Aguardava desfecho
unicamente o exame de constitucionalidade da qualificação do arrendamento
mercantil como hipótese de incidência do ISS pelo STF. Quanto a esse aspecto, o
Pleno do STF, em 2009, julgou o RE 547.245/SC e declarou constitucional a
referida incidência, como se verifica da ementa a seguir transcrita. In verbis:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING
FINANCEIRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O arrendamento
mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing operacional, [ii] o
leasing financeiro e [iii] o chamado lease-back. No primeiro caso há locação,
nos outros dois, serviço. A lei complementar não define o que é serviço, apenas
o declara, para os fins do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o
inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do
artigo 156 da Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro),
contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma
prestação de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir,
resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing
financeiro e do lease-back. Recurso extraordinário a que se dá provimento.”[9]
O STF firmou, assim,
jurisprudência para essa matéria, ao consolidar o entendimento segundo o qual o
“leasing” financeiro seria equiparado a “serviço”, em conformidade com o artigo
156, III, da CF. E mais não se houve. Não se cuidou da determinação do local do
fato jurídico tributário, mas unicamente da delimitação das condições materiais
necessárias e suficientes à verificação do “fato gerador” do ISS sobre o
leasing.
Essa ressalva é de
fundamental relevo para demonstrar que a declaração de constitucionalidade da
incidência do ISS sobre leasing pelo RE 547.245/SC, por si só, não foi
suficiente para modificar o quadro decisório do STJ quanto ao sujeito ativo do
imposto ou local da prestação.
Dito de outro modo, o
julgamento do STF não se interpõe como motivo suficiente para determinar alguma
mutação jurisprudencial quanto à incidência espacial, assim definida pelo local
da prestação do serviço, desde a vigência do artigo 12 do Decreto-lei 406/68,
assim como ao longo da Lei Complementar 116/2003.
Antes, a jurisprudência do
STF, quanto a este aspecto, também é firme ao determinar que o município
competente para cobrar o ISS será aquele no qual os serviços são executados, o
que se pode aplicar, em plenitude à espécie, a saber:
“(...) CONSTITUIÇÃO DO
CRÉDITO TRIBUTÁRIO — MUNICÍPIO — LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. Em relação à
questão do local competente para o lançamento e recolhimento do ISS, está
pacificado nos tribunais pátrios o entendimento de que “competente para a
instituição e arrecadação do ISS é o Município em que ocorre a efetiva
prestação do serviço, e não o local da sede do estabelecimento da empresa
contribuinte” (...). 7. Agravo regimental desprovido.”[10]
Portanto, confirma-se, assim,
a manutenção da jurisprudência do STF firme no sentido de que somente o local
da prestação do serviço pode ser colhido como critério para incidência do ISS,
mesmo após o RE 547.245/SC. Tudo a confirmar o mesmo entendimento assentado no
STJ de há muito.
Na Constituição, o artigo
156, III qualifica o critério material da regra-matriz de incidência do ISS
(prestar serviços). Entretanto, o critério temporal e espacial devem ser
identificados em coerência com aquele critério material. Assim, para construção
do fato jurídico do ISS, portanto, o critério espacial (lugar) deve ser
compreendido em sintonia com o critério material (prestar serviços) e com o
critério temporal (conclusão dos serviços).
A LC 116/2003, firme nesse
propósito de especificação dos critérios material, temporal e espacial, no
artigo 1º, prescreve que o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza “tem
como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa” e,
conforme o parágrafo 4º, “a incidência do imposto não depende da denominação
dada ao serviço prestado”. Por conseguinte, tem-se a evidência de um regime
baseado na prevalência de substância sobre a forma.
Dessome-se que os serviços
de arrendamento mercantil dependem da ocorrência da operação listada, quer de
“intermediação”, quer de “serviço financeiro” (conexão material), para
assegurar a tributação do estabelecimento prestador conexo com o local da
prestação do serviço (art. 3º, da LC n. 116/2003), ademais da definição do
sujeito ativo.
Pelo princípio de
taxatividade da lista de serviços da LC 116/2003, essas modalidades de
administração não podem servir para modificar os critérios de tratamento de
outras hipóteses igualmente tipificadas. Os serviços listados darão ensejo à
ocorrência do fato jurídico tributário sempre que presentes as situações
qualificadas como “necessárias” e “suficientes”.
Na função estatuída pelo
artigo 146, I e II, a, da CF, a Lei Complementar 116/2003 prescreve que o ISS é
devido ao município em que se localiza o estabelecimento prestador ou, na falta
do estabelecimento, no local do domicílio do prestador. Assim, ao prescrever
norma cogente a todos municípios brasileiros, a LC 116/2003 pretendeu pôr fim à
antiga discussão quanto ao município competente para cobrança do ISS.[11]
Quanto aos serviços
passíveis de tributação, o estabelecimento funcionará sempre como uma espécie
de “força de atração” de todos os serviços prestados em conexão com este, quer
pela atuação dos seus empregados, quer pela aplicação dos seus meios. Nesse
caso, estabelecimento prestador será aquele no qual se verifica a assinatura do
contrato de leasing e onde há a entrega do bem ao arrendatário (logo, local do
estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço).
Somente neste sentido
poder-se-ia falar n’alguma presença do local do estabelecimento prestador, ou
seja, naquele que se configura uma unidade econômica ou profissional na qual o
prestador de serviços de arrendamento mercantil realiza a parte mais relevante
de sua atividade, que se caracteriza pela contratação e pela colocação do bem à
disposição do tomador do serviço.[12] Por conseguinte, entende-se por
estabelecimento prestador o local que é efetivamente utilizado pelo
contribuinte na atividade de prestar serviços (i); ainda que de modo temporário
(ii), e que se possa configurar como unidade econômica ou profissional (iii).
Destarte, a efetiva
prestação de serviços de leasing concretiza-se com a contratação seguida da
entrega do bem arrendado. Logo, no caso presente, o estabelecimento prestador
será aquele onde ocorrer o fato gerador, nos termos do artigo 114 do CTN, onde
se verifica a assinatura do contrato de leasing e houver a entrega do bem ao
arrendatário (ou seja, local do estabelecimento do tomador ou intermediário do
serviço).
A conclusão dos serviços de
arrendamento mercantil, deveras, materializa-se com a assinatura do contrato e
a tradição do bem arrendado. Logo, o critério espacial deve ser o local no qual
são concluídos os serviços, onde se materializam as condições necessárias e
suficientes ao fato gerador, nos termos do artigo 114 combinado com o artigo
116, I, do CTN. Repise-se, a prestação de serviços de leasing concretiza-se com
a conclusão do contrato, mediante a assinatura deste instrumento pelas partes
(a) e estritamente vinculada ao bem arrendado (b),[13] como realçam trechos do
voto do Ministro Joaquim Barbosa, no julgamento do RE 547.245-SC:
“O cerne do negócio
jurídico de arrendamento mercantil consiste na colocação de um bem à disposição
do arrendatário, para uso durante certo prazo, com a opção de compra do bem a
ser exercida ou rejeitada no futuro. Animam ainda a escolha de tal negócio
jurídico as condições legais e contratuais e os respectivos efeitos
tributários. O propósito negocial está vinculado às características da
atividade econômica desenvolvida, como evitar a obsolescência na linha
produtiva e a manutenção de liquidez pela desnecessidade de imobilização total
e imediata de recursos. A arrendadora atua como intermediária na criação de uma
vantagem produtiva e na aproximação de interesses convergentes, ao adquirir o
bem do fornecedor a pedido da arrendatária. O núcleo essencial da atividade de
arrendamento não se reduz, portanto, a captar, intermediar ou aplicar recursos
financeiros próprios ou de terceiros. Não há, pura e simplesmente, a concessão
de crédito àqueles interessados no aluguel ou na aquisição de bens. A empresa
arrendadora vai ao mercado e adquire o bem para transferir sua posse ao
arrendatário. Não há predominância dos aspectos de financiamento ou aluguel,
reciprocamente considerados. O negócio jurídico é uno. Vale dizer, as operações
de arrendamento mercantil pertencem a categoria própria, que não se confunde
com aluguel ou financiamento, isoladamente considerados.”[14]
De fato. A finalidade do
arrendamento mercantil será sempre o uso do bem arrendado pelo arrendatário,
que se perfaz com a tradição. As operações financeiras antecedentes ou
subsequentes (captação de recursos, intermediação financeira, administração do
contrato de leasing) são irrelevantes para configurar a prestação de serviços.
Os serviços de arrendamento mercantil concluem-se com assinatura do contrato
pelas partes (a) e deverão ser mantidos indissociavelmente vinculados ao bem
arrendado (b). Deste modo, o critério espacial — local da prestação de serviços
— deverá ser sempre aquele no qual seja assinado o contrato e entregue o bem
arrendado, em plena coerência com o disposto nos artigo 114 e 116, I, do CTN.
Afora isso, não há motivo
que justifique a mutação de jurisprudência do STJ consolidada ao logo das
últimas décadas, quanto à incidência do ISS sobre o leasing pelo critério do
local da prestação do serviço, em sucessivas confirmações. Fazê-lo, à evidência,
servirá apenas à inovação de mais uma fonte de insegurança jurídica, pelas
anacrônicas afetações às relações jurídicas, ademais de favorecimento à guerra
fiscal e prejuízo inconteste aos direitos fundamentais dos contribuintes. Por
este e outros casos, deve-se buscar com urgência a adoção de medidas para
definir as condições que autorizam a mutação da jurisprudência consolidada nos
tribunais superiores.
[1] A esse respeito, o
nosso: Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança
jurídica do sistema constitucional tributário. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, 758p.
[2] Paulo de Barros
Carvalho destaca, com propriedade, a importância da jurisprudência para criar
expectativas legítimas de direito para os jurisdicionados. “O Poder Judiciário
exerce papel fundamental para a materialização da segurança no interior do
sistema jurídico, pela construção de normas individuais e concretas que fixam
os contornos semânticos das regras gerais e abstratas, possibilitando aos contribuintes
atuarem em função desses vetores postos pelas decisões judiciais. Sobre ser
tarefa indispensável e da maior envergadura no Estado Democrático de Direito, o
exercício da função jurisdicional não se basta apenas na solução de conflitos
intersubjetivos, mas, e principalmente, na demarcação de parâmetros para os
comportamentos futuros, residindo exatamente nessa segunda proposição seu
estreito vínculo e compromisso com o sentimento de previsibilidade e o
princípio da não-surpresa. (...) Afinal, as regras do jogo estão postas
intersubjetivamente nos textos de direito positivo e não podem variar ao sabor
das necessidades de caixa das pessoas políticas.” CARVALHO, Paulo de Barros.
Crédito-prêmio de IPI: estudos e pareceres. Barueri: Manole, 2005, pp. 26-27.
[3] “Esta autonomia vem
assegurada, de modo mais significativo, no art. 30 da CF, que, em suma, garante
ao município governo e administração próprios, no que toca ao seu peculiar
interesse.” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário.
25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 186-187)
[4] EDiv no REsp
130.792/CE, Rel. Min. Ari Pargendler, Rel. p. Acórdão Min. Nancy Andrighi, j.
07.04.2000, DJ 12.06.2001, p. 66. Este precedente do C. STJ. Confira-se,
exemplificativamente, a ementa abaixo transcrita: “AGRAVO DE INSTRUMENTO.
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ISS. COBRANÇA. LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. 1.
‘O Município competente para cobrar o ISS é o da ocorrência do fato gerador do
tributo, ou seja, o local onde os serviços foram prestados’. (REsp 399.249/RS).
2. Adentrar à questão do local no qual foi prestado o serviço, ensejaria
reexame de matéria fático-probatória, impondo a aplicação da Súmula n. 7 do
STJ: ‘A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial’. 3.
Precedentes. 4. Ausência de motivos suficientes para a modificação do julgado.
5. Agravo regimental desprovido.” AgRg no AgIn 516.637/MG, rel. Min. Luiz Fux,
j. 05.02.2004, Primeira Turma, DJ 01.03.2004.
[5] AgRg no AgIn
964.198/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 25.11.2008, Segunda Turma, DJ
17.12.2008.
[6] Excertos do AgRg no
AgIn 964.198/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 25.11.2008, Segunda
Turma, DJ 17.12.2008.
[7] AgRg no REsp
960.492/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 06.12.2007, Primeira Turma.
[8] “Verifico que a questão
foi decidida de acordo com a orientação já pacificada no âmbito deste Superior
Tribunal de Justiça, no sentido de que o ISS é tributo somente exigível pelo
Município onde se realiza o fato gerador, entendido este o local no qual há a
prestação de serviço.” Excertos do AgRg no REsp 960.492/RS, Rel. Min. Francisco
Falcão, j. 06.12.2007, Primeira Turma, DJe 26.03.2008.
[9] RE 547.245/SC, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 02.12.2009.
[10] Segundo AgRg no AgIn 830.300/SC,
Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 06.12.2011, DJe 22.02.2012.
[11] Como exemplo:
“Cinge-se a controvérsia à fixação da competência para cobrança do ISS, se é do
Município onde se localiza a sede da empresa prestadora de serviços, conforme determina
o artigo 12 do Decreto-lei n. 406/68, ou do Município onde aqueles são
prestados. A egrégia Primeira Seção desta colenda Corte Superior de Justiça
pacificou o entendimento de que o Município competente para realizar a cobrança
do ISS é o do local da prestação dos serviços em que se deu a ocorrência do
fato gerador do imposto. Essa interpretação harmoniza-se com o disposto no
artigo 156, III, da Constituição Federal, que atribui ao Município o poder de
tributar as prestações ocorridas em seus limites territoriais.” (AgRg no Ag
607.881/PE, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 20.06.2005, p. 209).
[12] Neste mesmo sentido,
Ives Gandra Martins afirma que o estabelecimento prestador é o local onde são
prestados os serviços: “A Lei Complementar n. 116/2003, procurou, assim,
definir estabelecimento, para efeito de incidência do ISS, com alcance bastante
amplo, considerando ‘estabelecimento prestador’ o local onde o contribuinte
desenvolver a atividade de prestar serviços, podendo ser de modo permanente ou
temporário, sendo irrelevantes as denominações de sede, filial, agência, posto
de atendimento, escritório de representação, contato ou quaisquer outras que
venham a ser utilizadas, desde que configure unidade econômica ou profissional,
a exemplo do conceito de estabelecimento, para efeitos de incidência do ICMS.”
MARTINS, Ives Gandra da Silva; RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. Aspectos
relevantes do ISS. Revista Dialética de Direito Tributário. n. 182. São Paulo:
Dialética, 2010, p. 165.
[13] Como observa Aldo de
Paula Junior: “Partindo-se do pressuposto de ser necessário um ato humano, um
fazer (e não um dar) pode-se concluir que foram identificados no leasing
financeiro ‘fazeres’ que embora individualmente não possam sintetizar o objeto
do contrato, em seu conjunto podem caracterizar um novo serviço. Esses
‘fazeres’ não seriam tributados individualmente como cada serviço autônomo e
independente (ainda que estivesse na lista de serviços) porque são elementos,
parte de um contrato típico qualificado por seu conjunto. Seriam serviços-meio
em um serviço-fim ou contrato-fim.” PAULA JUNIOR, Aldo de. O conceito de
serviço para fins de ISS. Da locação de bens móveis ao leasing financeiro: o
STF mudou de entendimento? In: Direito tributário e os conceitos de direito privado.
São Paulo: Noeses, 2010, p. 16.
[14] Excertos do RE
547.245/SC, Rel. Min. Eros Grau, j. 02.12.2009, Tribunal Pleno.
Heleno Taveira Torres é
advogado, professor e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de
Direito da USP, e membro do Comitê Executivo da International Fiscal
Association.
Revista Consultor Jurídico,
30 de janeiro de 2013
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