O devido processo legal no
âmbito das relações privadas
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Publicado em 02/2013
Analisa-se a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a
aplicação do postulado do devido processo legal no âmbito das relações
privadas.
Resumo: Analisa-se a tese da “eficácia horizontal dos
direitos fundamentais” e a aplicação do postulado do “devido processo legal” no
âmbito das relações privadas.
Palavras-chave: devido processo legal;
dignidade da pessoa humana; Constituição; garantia fundamental.
O princípio da dignidade da pessoa humana corresponde ao núcleo
existencial de todos os direitos nominados fundamentais pelas Constituições
democráticas. Nossa Constituição Federal o classifica como fundamento da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III). É categoria
jurídica-axiológica inspirada no ideal de que o ser humano é a “obra-prima da
criação” e que, dessa forma, as pessoas são iguais e merecem ser tratadas com
respeito pelo simples fato de pertencerem à espécie humana. “Em palavras
outras, a circunstância do humano em nós é que nos confere uma dignidade
primaz. Dignidade que o Direito reconhece como fator legitimante dele próprio e
fundamento do Estado e da sociedade.” (BRITTO: 2007, p.26).
Atualmente está em voga o debate acerca da teoria da
“constitucionalização do direito civil” – na verdade de todo o ordenamento
jurídico –, o que implica uma nova forma de interpretação dos textos normativos
que regulamentam as relações obrigacionais e patrimoniais entre particulares. É
dizer, os dispositivos da legislação civil devem ser interpretados à luz dos
valores consagrados na Constituição. Nesse sentido, há um rompimento com o
clássico modelo civilista romano, ao passo em que se prega a valorização do ser
humano em detrimento do patrimônio.
Trata-se, portanto, de um regresso à teoria elaborada por Kant (BARROSO:
2012, p. 272), no que refere à distinção entre coisa e pessoa, entre preço e
dignidade, entre o ter e o ser: “tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando
uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado,
a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso, não admite qualquer
equivalência, compreende uma dignidade.” (KANT: 2003, p. 65).
Essa “constitucionalização do direito civil” está umbilicalmente ligada
à outra tese que ganha relevo na seara do direito privado da pós-modernidade.
Cuida-se da “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, ou seja, da
aplicação dos dispositivos constitucionais que consagram direitos e garantias
fundamentais dos cidadãos em face do Estado no âmbito das relações privadas.
Segundo DIDIER JR. (2007, p. 28), existem três teorias na doutrina
estrangeira que versam sobre o assunto: a primeira, denominada “state action”,
nega a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas; a segunda,
denominada eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, afirma que não
há uma aplicação direta de tais direitos nas relações entre particulares, sendo
que tais garantias serviriam apenas como referência ao legislador, que estaria
obrigado a observar os parâmetros ditados pela Constituição na elaboração da
legislação ordinária; finalmente, a terceira teoria apregoa a plena e direta
eficácia dos direitos fundamentais nos negócios privados.
Parece não haver dúvidas de que a doutrina nacional elegeu a terceira
teoria – a da aplicação plena e direta dos direitos fundamentais nas relações
privadas. Por oportuno, transcreve-se a lição de Dirley da Cunha Júnior a
respeito do tema:
Esse fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil tem gerado, como
importante consequência, a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações
privadas, tema que atualmente vem ocupando um grande espaço na doutrina, onde é
examinado normalmente com a designação de eficácia horizontal dos direitos
fundamentais (Drittwirkung), para esclarecer que os direitos fundamentais não
são direitos apenas oponíveis aos poderes públicos, irradiando efeitos também
no âmbito das relações particulares, circunstância que autoriza o particular a
sacar diretamente da Constituição um direito ou uma garantia fundamental para
opô-lo a outro particular, o que reduz em demasia o campo da autonomia privada
(CUNHA JÚNIOR: 2011, p. 63).
Da mesma forma, a tese da eficácia horizontal dos direitos privados é
reconhecida pelos Tribunais Superiores:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO
ORDINÁRIO. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO E CORRUPÇÃO PASSIVA. NULIDADE
PROCESSUAL. ILICITUDE DE PROVAS ORIUNDAS DA INTERCEPTAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA.
SIGILO ABSOLUTO. DIREITO FUNDAMENTAL. PONDERAÇÃO. ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO. INEXISTÊNCIA DE DIREITOS ABSOLUTOS. COEXISTÊNCIA ENTRE OS DIREITOS E
AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. ORDEM
DENEGADA.
1. Os direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição
Federal, contemplados na dimensão objetiva, consistem em norte para atuação valorativa
do Estado na realização do bem comum. Já na dimensão subjetiva, permitem ao
indivíduo se sobrepor à arbitrariedade estatal.
2. O Estado tem o dever de proteção dos indivíduos frente
ao próprio poder estatal (eficácia vertical), bem como em face da própria
sociedade, justificando a eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações
particulares.
3. Não há falar em sobreposição de um direito fundamental sobre outro.
Eles devem coexistir simultaneamente. Havendo aparente conflito entre eles,
deve o magistrado buscar o verdadeiro significado da norma, em harmonia com as
finalidades precípuas do texto constitucional, ponderando entre os valores em
análise, e optar por aquele que melhor resguarde a sociedade e o Estado
Democrático.
4. Os direitos e garantias fundamentais, por possuírem característica
essencial no Estado Democrático, não podem servir de esteio para impunidade de
condutas ilícitas, razão por que não vislumbro constrangimento ilegal na
captação de provas por meio da quebra do sigilo de correspondência, direito
assegurado no art. 5º, XII, da CF, mas que não detém, por certo, natureza absoluta.
5. Ordem denegada.
(HC 97.336/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado
em 15/06/2010, DJe 02/08/2010).
Dentre os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição,
destacam-se, por sua estreita relação com o postulado da “dignidade da pessoa
humana”, o devido processo legal e seus consectários, o contraditório e a ampla
defesa (incisos LIV e LV do art. 5º), na medida em que se prestam à proteção da
vida, da propriedade e da liberdade das pessoas. Conforme a abalizada lição de
Nelson Nery Junior, o “princípio constitucional fundamental do processo civil,
que entendemos como a base sobre a qual todos os outros princípios e regras se
sustentam, é o do devido processo legal.” (NERY JUNIOR: 2010, p. 79).
Ainda segundo NERY JUNIOR, o devido processo legal foi mencionado pela
primeira vez na Magna Carta inglesa outorgada por João Sem-Terra, em 1215, mas
teria sido utilizado em lei inglesa apenas no ano de 1315, no reinado de
Eduardo III. Mas foi na “Declaração dos Direitos” de Maryland (1776) que o
princípio do due process of law fora referido segundo a concepção do trinômio
vida-liberdade-propriedade, fórmula consagrada originariamente na Constituição
norte-americana e em praticamente todas as Constituições democráticas da atualidade.
(NERY JUNIOR: 2010, p. 80-81).
Em sua acepção formal-procedimental, o devido processo legal pode ser
traduzido no “direito a ser processado e a processar de acordo com normas
previamente estabelecidas para tanto”. (DIDIER JR.: 2007, p. 37). É mandamento
que deve, obrigatoriamente, ser observado em todas as situações em que se
busque solucionar pendências verificadas nos espaços próprios da sociedade
civil, como em sociedades empresárias, clubes recreativos, associações de
classe, condomínios edilícios, entre outros. Nesse sentido, assim decidiu o
STF:
EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE
COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO
CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.
RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito
das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações
travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os
direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não
apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos
particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem
jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a
possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em
especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto
da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às
liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada
garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos
princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais
de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de
ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos
direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede
constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no
domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as
restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e
força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações
privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS
LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL.
ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO
LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO
CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em
determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações
de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de
espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores -
UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e,
portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e
fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro
social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do
devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual
fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de
suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal
acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O
caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo
associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso
concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido
processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).
IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.(RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN
GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em
11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02
PP-00821)
Com efeito, não é de hoje que a comunidade jurídica reconhece o processo
como instrumento para a realização de direitos nos mais diversos cenários:
Processo é conceito que transcende ao direito processual. Sendo
instrumento para o legítimo exercício do poder, ele está presente em todas as
atividades estatais (processo administrativo, legislativo) e mesmo não-estatais
(processos disciplinares dos partidos políticos ou associações, processos das
sociedades mercantis para aumento de capital etc.). (CINTRA; GRINOVER;
DINAMARCO: 2011, p. 302).
Dentre os pressupostos do devido processo legal, conforme rol elaborado
por NERY JUNIOR (2010, p. 92), é possível identificar aqueles cuja observância
no âmbito das relações privadas é indispensável: a isonomia, o contraditório, o
direito de produzir provas, a paridade de armas, a motivação das decisões, a
presunção de inocência, o direito ao juiz imparcial, o direito de ser
comunicado previamente dos atos processuais, etc.
Como leciona Daniel Sarmento, a observância do devido processo legal no
âmbito das relações privadas “é indispensável no contexto de uma sociedade
desigual, na qual a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma
multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a
família, a sociedade civil e a empresa.” (2004, p. 223).
Assim, o “devido processo legal” é categoria jurídica que tem assento
constitucional e consubstancia-se em garantia fundamental do indivíduo,
intimamente relacionada ao fundamento republicano da “dignidade da pessoa
humana”, na medida em que sua vocação é a proteção da vida, da propriedade e da
liberdade das pessoas.
É postulado que se concilia com as teses doutrinárias da
“constitucionalização do direito privado” e da “eficácia horizontal dos
direitos fundamentais”, amplamente reconhecidas pela jurisprudência pátria e,
portanto, é oponível tanto ao Estado quanto a particulares no âmbito das
relações privadas, na qualidade de instrumento de defesa a ser manejado pelos
oprimidos em face de seus algozes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo.
3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros,
2011.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional.
5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2011.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 8ª ed.
vol. 1. Salvador: Juspodivm, 2007.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785).
Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal.
10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
Autor
Rodrigo Matos
Roriz Procurador Federal em Brasília (DF). Especialista em
Direito Público e em Direito Processual Civil.
Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
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