DIÁRIO DE CLASSE
Um debate sobre o lugar da
Teoria do Direito
Por Rafael Tomaz de
Oliveira
Na coluna desta semana,
pretendo discutir um ponto intimamente ligado à ideia de Diário de Classe: a
revisão de uma certa literatura que cuida dos problemas teóricos do Direito. No
caso, tenho em mente dois eminentes teóricos do Direito estadunidenses que
representam, de forma privilegiada, o modo como a discussão tem sido
encaminhada por lá.
É interessante notar que os
temas da investigação teórica do Direito e sua aplicação prática ocupam lugar
de destaque nesse acalorado debate. Também as questões acerca das
possibilidades de uma Teoria do Direito de corte mais filosófico em face de uma
Teoria do Direito de inspiração sociológica também dão o tom das discussões.
Por fim, as questões envolvendo a distinção entre o Direito e a moral e as
(necessárias?) implicações de uma teoria sobre a outra também representam um
ponto determinante.
É de bom alvitre alertar o
leitor, logo no início, que não pretendo aqui esgotar a temática. Seria uma
pretensão absurda e que, certamente, se encontra fora das minhas possibilidades
atuais de pesquisa. Trata-se, muito mais, de uma introdução a um debate
emblemático e que possui o poder de mostrar como que, nos últimos anos, os
debates teóricos no Brasil têm se aproximado muito mais dos estadunidenses do
que dos europeus, o que era uma tradição entre nós. As questões relativas à
atividade da jurisdição constitucional e a interpretação que o Supremo Tribunal
Federal vem realizando acerca de conceitos jurídicos (como a criminalização da
interrupção da gravidez para fins terapêuticos; a possibilidade de utilização
do amianto na indústria; quais as condições que podem ensejar a inelegibilidade
de um candidato; entre tantas outras) contribui para isso. Com efeito, do mesmo
modo que os europeus, no final da Segunda Guerra Mundial e com a radicalização
dos Tribunais Constitucionais, assistiram a uma “descoberta” jurídico-cultural
dos Estados Unidos, ocorre entre nós um fenômeno similar no momento em que a
atividade da nossa Suprema Corte passa a ficar em grande evidência. Mas isso é
matéria para ser discutida em outra oportunidade. Por enquanto, vamos aos
contentores de nosso debate.
Richard Posner
Ano passado foi publicada
no Brasil uma tradução do livro de Richard Posner, The Problematics of Moral
and Legal Theory, pela editora Martins Fontes de São Paulo [1]. Embora a
tradução seja recente, o livro original existe há mais de uma década. Foi
publicado em 1999 como resultado de um ciclo de palestras proferido por Posner
em 1997, cuja temática girava em torno do ensaio de Oliver Wendell Holmes, The
Path of the Law, que, naquele ano, completava seu centenário de publicação[2].
O autor reescreveu e reorganizou os textos das palestras, incluiu trechos novos
e respondeu a algumas críticas que lhe foram apresentadas. O livro é resultado
de todo esse processo. Apresenta-se como um manifesto pragmaticista no Direito:
afirma-se nele que os métodos de investigação e decisão do Direito não devem
ser tributários de uma teoria moral “metafísica”, mas, sim, devem ser buscados
pragmaticamente, no seio das ciências sociais e do senso comum.
Explicando melhor: os
juízes — ou qualquer outro tomador de decisões no âmbito do Direito — quando se
vêem diante de casos que não encontram uma resposta simples a partir das fontes
corriqueiras de orientação (Constituição, leis, precedentes), “nada podem fazer
além de recorrer a noções derivadas da condução dos negócios públicos, dos
valores profissionais e pessoais, da intuição e da opinião” [3]. Essa seria,
segundo o autor, uma abordagem mais condizente com aquilo que efetivamente se
passa no âmbito das práticas decisórias no Direito. Seria uma perspectiva mais
profissional e menos teórica de aproximação do fenômeno jurídico.[4]
Partindo desse pressuposto,
os argumentos críticos do texto são dirigidos a um alvo definido: aqueles
autores aos quais Posner nomeia como “juristas acadêmicos” e que, de alguma
forma, estabelecem uma aproximação entre a filosofia do Direito e a filosofia
moral ou, melhor ainda, colocam a teoria jurídica para dentro da teoria moral.
Os alvos privilegiados de Posner (os “juristas acadêmicos”) são os seguintes:
Ronald Dworkin, Charles Fried, Anthony Kronman, John Noonan e Martha Nussbaum.
De todos esses nomes, o de
Ronald Dworkin certamente é aquele que aparece com maior frequência diante de
sua artilharia pragmaticista. A concepção de moral que perpassa a obra de
Dworkin é constantemente atacada por Posner. Na verdade, uma de suas pretensões
básicas é realizar uma desmistificação do Direito para libertá-lo das amarras
de qualquer teoria moral. Nas palavras de Posner: “a filosofia moral não tem
nada a oferecer aos juízes e aos estudiosos do Direito no que se refere à
atividade judicial ou à formulação de doutrinas jusfilosóficas ou jurídicas”.
[5]
O jurista da escola de
Chicago segue adiante para dizer que tanto a filosofia moral quanto “algumas de
suas primas-irmãs, como a jusfilosofia e a teoria constitucional, são
impotentes para resolver questões jurídicas concretas”. [6] Para justificar sua
afirmação, Posner recorre a um argumento, por assim dizer, “empírico”. Relembra
de um julgamento da Suprema Corte estadunidense no interior do qual se
discutiam leis que proibiam o suicídio assistido por médicos (uma questão que
tem como pano de fundo um acalorado debate moral). Nesse caso, um grupo de
filósofos morais submeteram à apreciação da Corte um memorial de amici curiae.
Este memorial teria sido, ainda seguindo a argumentação de Posner, ignorado
solenemente pelos juízes daquele Tribunal. In verbis: “os juízes ficam com um
pé atrás quando se procura convencê-los a usar a teoria moral ou constitucional
para decidirem as demandas”. [7]
Note-se que a verdadeira
pretensão de Posner é postular a inviabilidade da teoria do Direito. Sua
intenção, portanto, é metateorética: analisar as condições pelas quais se
considera impossível ou, neste caso, o melhor seria dizer, inútil e
despiciendo, o esforço teórico no Direito. Não que, em seu livro, não se faça
algum tipo de “teoria jurídica”. Aliás, como bem enfatizará Dworkin em um de
seus textos de resposta a Posner, a postura deste último é sempre também
teorética e, em certo sentido, “metafísica”. De todo modo, sua proposta de
abordagem do Direito não é teórica em um sentido filosófico, mas, sim, em um
sentido sociológico: não possui uma matriz filosófico-reflexiva; trata-se de um
referencial sociológico-descritivo. No fundo, portanto, o argumento de Posner
se apresenta como uma crítica das posturas que procuram pensar o Direito a
partir da filosofia para realizar uma defesa das análises sociológicas sobre o
Direito. No caso, da sua peculiar analise sociológica do Direito.
Ronald Dworkin
Em um texto de 1997,
Dworkin escreveu sobre alguns pontos destacados por Posner no livro que
comentei acima. Na verdade, os argumentos enfrentados por Dworkin já haviam
aparecido em um livro anterior do autor, chamado Para Além do Direito
(Overcoming Law). O texto de Dworkin ao qual me refiro foi incorporado ao livro
A justiça de Toga, em capítulo intitulado O Elogio da Teoria. [8] Nesse texto,
Dworkin afirma que a postura teórica — em sentido filosófico — não apenas é
possível como também inevitável. Como já me referi acima, para Dworkin, Posner
também faz teoria do Direito no sentido mesmo sentido em que ele a critica.
O grande atrativo da
proposta de Posner é, sem dúvida nenhuma, seu apelo prático. No modo como
constrói seu argumento, a sua aparentemente, despretensiosa teoria parece dar
notas de grande utilidade e adequação aos problemas contemporâneos do Direito.
Porém, se olhada mais de perto, essa sua análise esconde uma série de elementos
que comprometem toda a argumentação.
O primeiro destes pontos,
certamente, é a sua pretensa assepsia moral. Numa estratégia que não é
exatamente nova (Kelsen, por exemplo, já havia argumentado de forma parecida
para criticar a concepção kantiana de moral e defender a sua tese da separação
entre o juízo moral e o juízo jurídico), Posner se afirma como um “relativista
moral moderado”. Ele critica as concepções universalistas sobre o conteúdo dos
conceitos morais, mas, ao mesmo tempo, não se diz pronto para aceitar as teses
dos relativistas radicais, que pregam um ceticismo completo no que tange à
possibilidade do conhecimento das formas morais. Para ele, é possível ao
investigador mapear certo conjunto de crenças e sentimentos que compõem a
dimensão moral de uma determinada e específica comunidade de indivíduos. Mas,
por outro lado, seria impossível universalizar o conteúdo conhecido dentro
daquelas condições específicas de modo a aplicar suas normas em outro local,
diferente daquele em que tais conteúdos tiveram origem.
Para ele, no momento de
decidir, mais importante do que o juiz conhecer tais conteúdos morais (por
exemplo, qual o valor da democracia no seio de uma comunidade; o que significa
a cláusula de igual respeito; ou se é compatível com a Constituição uma lei que
proíbe o suicídio assistido por médicos), é ele ter o domínio instrumental das
questões econômicas, políticas e sociais envolvidas na questão. É preciso que
ele tenha um domínio, com máxima previsibilidade possível, sob as consequências
geradas por sua decisão, tendo sempre como guia a adoção da medida que traga
maior benefício ou uma melhora nas condições gerais observadas pelas pessoas
envolvidas no caso.
Desse modo, Posner faz uma
admoestação a Dworkin, dizendo que sua preocupação, quase realista, com os
conceitos morais acaba por desvencilhá-lo dessas questões consequencialistas,
produzindo, assim, um tipo de teoria da decisão que desconsidera totalmente as
condições reais que determinam in concreto o Direito.
Em sua avassaladora
resposta, Dworkin inicia argumentando que sua abordagem teórica difere substancialmente
da descrição oferecida por Posner. Sua proposta não se desenha a partir de um
emaranhado de conceitos morais e jurídicos abstratos. O argumento moral não é
construído pelos juízes apenas nos casos limítrofes, de decisões “difíceis”. Na
verdade, qualquer interpretação jurídica implica uma argumentação moral. Em sua
proposta, Dworkin afirma que conceitos como os de democracia, liberdade,
igualdade, devido processo legal etc., são conceitos jurídicos que estão
impregnados pela moralidade política e que, no momento em que são discutidos
judicialmente, eles são, necessariamente, interpretados. Nesse sentido, a sua
proposta teórica é interpretativa e construtivista. Melhor seria dizer, quem
interpreta o Direito, deve fazê-lo de modo a construir argumentos que se
ajustem, de melhor forma, às práticas jurídicas da comunidade política. Nessa
medida, sua abordagem teórica “alega que há princípios de tal modo inseridos em
nossa prática jurídica que, quando os aplicamos ao caso em questão, eles dão
(ou não) o direito” [9] à parte que o reivindica. Vale dizer: “justificamos as
alegações jurídicas ao demonstrar que os princípios que as sustentam também
oferecem a melhor justificação de uma prática jurídica mais geral na área do
direito em que se situa o caso”. [10]
Por certo, haverá
discordância com relação a qual conjunto de princípios oferece a melhor solução
para o caso. Mas essa discordância, antes de ser o retrato da improcedência da
tese é, ela mesma, o que a torna mais atraente (para usar uma expressão dworkiniana).
A controvérsia sobre esse conjunto de princípios — que é uma questão moral —
será resolvida a partir do confronto dos vários argumentos lançados para o caso
sendo que, prevalecerá aquele que, de forma mais responsável, demonstrar o
melhor ajuste às praticas jurídicas.
Na mesma linha, a questão a
respeito do consequencialismo deve ser colocada em devidos termos. Na verdade,
Dworkin afirma que também sua proposta é consequencialista. Mas o é em um
sentido diferente daquele retratado por Posner. Nos termos propalados por
Dworkin, sua proposta é consequencial no seguinte sentido: “cada argumento
jurídico interpretativo tem por finalidade assegurar um estado de coisas que,
de acordo com princípios incorporados à nossa prática, seja superior às alternativas”.
[11]
Uma palavra final
Por fim, a proposta de
Posner, com toda a sua aparente indiferença às questões morais, acaba sendo
portadora de certa concepção de moralidade: aquela que se verifica no
utilitarismo. No fundo, o debate sobre os conteúdos morais dos conceitos
jurídicos é inescapável. Do mesmo modo que a reflexão teórica também o é. E
isso por um motivo muito simples: todo aquele que estiver comprometido com
alguma ambição de igualdade e democracia terá melhor sucesso se enveredar pelos
caminhos da teoria. Nas palavras do próprio Dworkin:
Nossas divisões são de
natureza cultural, étnica, política e moral. Não obstante, aspiramos viver
juntos e iguais, e parece crucial para essa ambição que também aspiremos que os
princípios que nos governam nos tratem como iguais. (...) Só poderemos
perseguir essa indispensável ambição se tentarmos, sempre que necessário, nos
colocar em um plano elevado [vale dizer: teórico, acrescentei] nossas decisões
coletivas, inclusive em nossas decisões judiciais, de modo a pôr à prova nosso
progresso em tal direção. Devemos nos incumbir desse dever soberano se
pretendemos alcançar um Estado de Direito que não seja apenas instrumento de
avanço econômico e paz social, mas um símbolo e espelho da igual consideração
pública, que nos dá o direito de afirmar a comunidade.[12]
[1]Posner, Richard A. A
Problemática da Teoria Moral e Jurídica. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São
Paulo: Martins Fontes, 2012, 507 p.
[2]Cf. Holmes, Oliver
Wendell. The Path of Law. Kindle Book: Public Domain, 1897. Registre-se que o
referido ensaio encontra-se em domínio público sendo que o site Amazon.com o
disponibiliza gratuitamente para os usuários da plataforma Kindle(clique aqui)
. O texto é um programa de uma teoria pragmática do direito, que fez história
sob o epíteto “realismo jurídico”. É nele que se encontra a frase de Holmes que
entraria definitivamente para a posteridade: The propheciesofwhatthecourtsto do
in fact, are what I meanbythelaw. Holmes, Oliver Wendell. Idem, Ibidem, pos.
58.
[3]Cf. Posner, Richard A.
op. cit., p. VIII.
[4]Para conhecerosdetalhes
da proposta “profissionalista” de Posner, ver: Posner, Richard A. op., cit.,
pp. 291 e segs.
[5]Posner, Richard A. op.,
cit., p. IX.
[6]Idem, Ibidem.
[7]Posner, Richard A. op.,
cit., p. XII.De se consignarque Ronald Dworkinmenciona o mesmocasoemseuA
Justiça de Toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 71 e segs.
[8]Ronald Dworkin, op.,
cit., pp. 71 e segs.
[9]Dworkin, Ronald. op.,
cit., p. 74.
[10]Dworkin, Ronald. op.,
cit., p. 75.
[11]Dworkin, Ronald. op.,
cit., p. 89.
[12]Dworkin, Ronald. op.,
cit., p. 105-106.
Rafael Tomaz de Oliveira é
mestre e doutorando em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico,
12 de janeiro de 2013
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