domingo, 14 de agosto de 2011


LIQUIDAÇÃO DE INVERNO


Carlos Drummond de Andrade


Olha o ajuntamento na calçada,
o bolo humano denso, silencioso,a paralisia coletiva...
Que foi que aconteceu?Crime, suicídio, bomba, um novo deus?
Calma, não te assustes.Precisas acostumar-te com a cidade
e seus ritos pendulares.Não viste nos jornais aquele grito
e nas vitrinas as vermelhas tirasanunciando em voz e cifra
LiquidaçãoLiquidação?

Agora vejo que esse grupoindecifrado logo se esclarece.Homem nenhum, ou quase. Só mulheres,pois só mulheres sabem quando é horade (formigas) comprar para guardar.A porta está fechada? Mas no aquáriode lãs tricôs camurças courosquatro consumidoras são servidas,outras quatro, cá fora, esperam vez.Esperar resignadode quem sabe que tudo anda difícile até os ossos do festim ,têm que ser disputados como pérolas.Outras quatro mais quatro vão entrandono longo dia lento, frio.O casaco de acrílico de 1000961 por 900e 84, uma pechincha. A calça jeanspara menina, a camisola, a jardineira,meu Deus, o casacão, o plush,tudo ficou barato de repenteou dá a ilusão de ser barato,convida, chama, intima:Me compra rapidinho, enquanto o invernofaz que vai mas não vai, e está geladoo corpo, o quarto, o amor e tudo mais.Liquidação, palavra mágica,seu fundo de negrume e seu clarão.Liquida-se um império,uma política, um chefe, uma doutrina,e nas vazias prateleiras outras formasse acumulam, aguardamo tempo de murchar, o desapreçodo preço baixo, a remarcadavoga da estação, como se tudodurasse um quarto de ano: juramentos,códigos, angústias, braceletes,sandálias, planos...E dura, e dura mais?...e seu clarão.Liquidadas as modas sazonais,restaura-se a esperança na vitrina.O jogo do futuro nos cativa.A primavera, juro, vai trazero inolvidável prêmio de existir.Seremos todos jovens. Ninguém maisse lançará da ponte, ou traficânciasfará contra a sorte dos humildes.Todos serão humildes, na alegriade um tempo verdejante...Calma, não sonhes tanto.Liquidação é apenasporta deixando passarcompradores de saldos.Se queres o brinquedode jogar com palavras, preferívelesta, que te dou entre dois golesde papo vespertino: liquidâmbar.Gostaste? Seu olor resinosoo nariz te penetra e reconfortaa poluída garganta? Esquece, esqueceas liquidações que não liquidama carga de injustiça e desamorpairante sobre a vida,seja inverno ou verão, outono ou primavera.(Carlos Drummond de Andrade (31 de Outubro de 1902 — 17 de Agosto de 1987), in Amar se Aprende Amando, 22ª edição, Editora Record, 1999, pp. 166-168).

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