SENSO INCOMUM
As fontes de Direito e os
rótulos de água mineral
Por Lenio Luiz Streck
Um case antigo e sua
novação
A coluna desta semana
aborda um tema que há muito venho trabalhando em meus escritos: a cegueira
seletiva de nossa práxis jurídica quanto ao tratamento dado aos crimes contra o
patrimônio em relação àqueles tipos penais que atingem interesses metaindividuais,
como a sonegação fiscal, a apropriação indébita previdenciária e o descaminho
(para falar só destes).
Saiu no blog de um renomado
magistrado a sentença de uma juíza (leia aqui) na qual ela extingue a
punibilidade dos fatos atribuídos a um acusado que subtraiu uma determinada
quantia em dinheiro e em cheque e que depois, espontaneamente, restituiu os
valores.
Alegrou-me muitíssimo ver o
que só posso conceber como um fruto da boa semente que há tempos plantamos,
primeiramente, na 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul
e depois na 5a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS (e aqui homenageio
os que compunham esse front: Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif, Luis
Gonzaga Moura da Silva, depois a Genaceia Alberton). Fazíamos esse debate antes
mesmo da lei que instituiu o famoso Refis! Buscando em meus arquivos,
verifiquei que minha primeira publicação abordando a questão data de 1990,
portanto, há 23 anos, como veremos na sequência. Sou antigo nisso, pois não?
Uma das grandes alegrias
que a academia proporciona — especialmente em tempos de câmbio paradigmático —
é a possibilidade de intervir positivamente na construção (e na desconstrução)
das estruturas fundantes da vida jurídica e política da República.
Especialmente quando se trabalha numa perspectiva crítica como venho defendendo
ao longo dos anos. Não me canso de lembrar que a boa nova constitucional pegou
despreparada a comunidade jurídica em Terrae Brasilis. Tal qual na Marcondo, de
Garcia Marquez, onde aos habitantes faltava palavra para nomear um novo mundo
que se desvelava após o longo sono, também aqui o despertar para a democracia e
para o Estado Democrático de Direito emudecia, obrigando-nos quase a ter que
apontar o dedo quando queríamos indicar o desconhecido.
Compreender a importância
de uma nova teoria para um novo paradigma é passo fundamental para que este se
estabeleça e crie raízes. Do contrário, assistir-se-á o ancien régime perdurar
travestido de uma nova roupagem. Romper com a tradição inautêntica (no sentido
gadameriano), é, pois, o primeiro passo. Consolidar a autêntica, um segundo
igualmente necessário. Por óbvio isso não se dá sem dor ou luta. Muitas vezes
se grita sozinho ou acompanhado de outros poucos que se dispõem ao bom combate.
Ter por fruto a consolidação disso é bastante alentador.
Fundamentos e resultados
De se destacar, contudo,
que embora concorde com a conclusão (da aludida sentença) de que deve ser
reconhecida a extinção da punibilidade, entendo que a referida decisão merece
reparos nos fundamentos utilizados. Ah, alguém dirá: estou sendo muito exigente
e, quiçá, chato. Não é nada disso. Não é nenhum diletantismo de minha parte. O
raciocínio é de princípio e não circunstancial. Embora tenhamos chegado ao
mesmo destino, os caminhos foram divergentes — e nessa viagem importa muito o
trajeto. Há alguns atalhos que não podem ser admitidos, sob pena de se
comprometer a integridade e a coerência do Direito, pois abrem frestas para
que, em outros casos, resultados contrários ao Estado de Direito sejam
buscados, sob as mesmas circunstâncias. E, pior, alcançados. Como diz o ditado
popular, mesmo um relógio parado acerta as horas duas vezes por dia... Todo
argumento circunstancial tem suas razões fincadas no utilitarismo e, como tal,
instrumentaliza-se. E o que isso quer dizer? Que, como todo instrumento, pode
ser usado para construir ou destruir... É aí que reside o perigo. E este foi o
motivo pelo qual desenvolvi a Crítica Hermenêutica do Direito. Em todo caso,
vamos, primeiramente, aos pontos de contato.
De há muito venho
denunciando o fenômeno da baixa constitucionalidade. Desde as primeiras edições
do Hermenêutica Jurídica (e)m Crise, nos idos dos anos 1990. E especificamente
acerca da seletividade penal e das disparidades de tratamento entre os delitos
individuais (em especial nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência
à pessoa) e os metaindividuais (sonegação fiscal, apropriação indébita
previdenciária, crimes contra o sistema financeiro e por aí vai), ainda no
longínquo ano de 1990 publiquei um texto[1] em que abordei o paradoxo criado
entre a minorante do artigo 16 do Código Penal[2] e a Súmula 554 do STF, [3] um
flagrante caso de ferimento do princípio constitucional da isonomia. A
Constituição estava ainda quentinha.
Com o advento da lei
9.249/95, ainda no ano de 1996, emiti parecer que foi integralmente transcrito
no voto do relator de uma apelação criminal em que opinei pela extinção da
punibilidade da prática de um furto, fundamentado no princípio constitucional
da isonomia, apontando que deveria a patuleia receber o mesmo benefício dado ao
sonegador fiscal pelo artigo 34 da lei 9.249/95 (leia aqui).[4] Vejam: no caso,
nem houve a devolução espontânea. Já dizia eu, então, que isso era irrelevante
(o artigo e o acórdão explicam as razões disso).
Não estamos a lidar com
nenhuma “descoberta da pólvora”! Essa foi descoberta juntamente com Amilton
Bueno de Carvalho, o Alfredo Foerster (que transcreveu integralmente meu
parecer acima citado em seu voto) e o Clademir Missaggia (o juiz do caso, à
época, que, faço justiça, no primeiro grau foi o primeiro no Brasil a aplicar a
minha tese). Poucos sabem das dificuldades de sermos pioneiros em teses como
essa em meados da década de 90 do século passado, agora abordada na referida
sentença. Eram duros tempos (para quem tem dúvida, basta ver como “a dogmática
penal avançou” — estou sendo irônico, é claro!). Fica aqui o registro para que
não esqueçamos que a filtragem hermenêutico-constitucional é algo que advém de
uma construção que já tem um bom tempo.
No mesmo instante em que
aplaudimos e nos filiamos à denúncia da seletividade do sistema penal, fica em
nós a convicção de que teses assim como a que eu e o Amilton Bueno de Carvalho
desenvolvemos há quase vinte anos — por nostalgia, remeto o link para um
instante em que debatíamos a tese em um Congresso do Instituto de Direito —
ainda causem surpresas ou pareça algo inovador (veja foto). E, o pior: a
sentença referida “esqueceu” de mim e do Amilton (e do Forster e do Clademir).
De todo modo, parece que a dogmática jurídica tem dificuldade em realizar a
Constituição. Depois disso desses primeiros casos, exarei inúmeros pareceres em
muitos acórdãos, um deles citando meu nome na ementa do julgado, que assim
dispõe:
ESTELIONATO. ÔNUS DA PROVA.
No estelionato, mesmo que
básico, o pagamento do dano, antes do oferecimento da denúncia, inibe a ação
penal. O órgão acusador deve tomar todas as providências possíveis para
espancar as dúvidas que explodam no debate judicial, pena de não vingar
condenação (Magistério de Afrânio Silva Jardim).
Lição de Lênio Luiz Streck:
os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei
9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra
prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso
provido para absolver o apelante. (BRASIL. TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação
criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do
julgamento: 25 de Setembro de 1997). (íntegra aqui)
Bingo! A patente, por assim
dizer, está registrada de há muito! Seu aspecto é, fundamentalmente, simbólico.
Ou seja, serve muito mais para mostrar as possibilidades do novo e denunciar as
idiossincrasias do sistema. Observe-se: em artigo de 1996,[5] eu abordava a
problemática relacionada as possibilidades de aplicação do artigo 34 da Lei
9.249/95 aos delitos contra o patrimônio nas hipóteses em que houver ausência
de prejuízo à vítima e que não tenha, a evidência, havido violência contra a
mesma.
No referido texto já
enfrentava, de início, o tópico relacionado com a concepção de bem jurídico e
as “antinomias” do ordenamento jurídico, a partir da análise e discussão do
artigo 16, do Código Penal, de 1984, a Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal —
de edição anterior ao artigo 16 —, bem como da Lei n. 9.249 de 26 de dezembro
de 1995, que permite àquele que sonegar impostos ou contribuições sociais
escapar da punição, com o simples pagamento do valor sonegado antes do
recebimento da denúncia. Mais do que isso, sempre sustentei que: ou se aplica o
favor legis também para quem furta ou se declara a inconstitucionalidade.
A sentença da juíza — que
ora comento, muito mais por ter omitido a origem da tese —, além de não ser
inovadora, como já destacado, contém erros que precisam ser apontados. Há uma
baixa compreensão do significado do que seja princípio da isonomia dentro de um
paradigma de Estado Democrático de Direito.
Diz ela, em uma passagem,
que “o princípio da isonomia é um princípio geral de todo o ordenamento
jurídico, que tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores do
direito. Segundo ele, todos são iguais perante a lei, não se admitindo
privilégios e distinções em situações que se assemelham.”
Não. O princípio da
isonomia não é um princípio geral. É importante anotar, neste particular, a
confusão que se faz entre o conceito de princípio jurídico, o de ordenamento e
suas consequências para o caso. E desde já aproveitando o ensejo para sugerir a
leitura da obra de Rafael Tomaz de Oliveira, que magistralmente aborda o tema
em uma dissertação sob minha orientação e que se tornou referência no Brasil
sobre o tema.[6] Façamos essa análise por partes:
a) em primeiro lugar, a
utilização da ideia de isonomia como um princípio geral remete-nos para o caso
dos velhos princípios gerais do direito que, no Direito brasileiro, assumem a
condição de determinação legislativa, sendo expressamente estabelecido como
critérios de solução para as “lacunas” do ordenamento no artigo 4º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ao lado da analogia — também
utilizada no esforço hermenêutico da julgadora — e dos costumes. Isso é um
sintoma! Na verdade, o senso comum teórico dos juristas trata do problema como
se estivéssemos, ainda, sob a égide da metodologia novecentista que operava com
um sistema em que os princípios gerais eram chamados para atuar nos casos em
que o modelo de regras não fosse suficiente para resolver os problemas da
realidade.[7] Não deixa de ser sugestivo o fato de que este tipo de estratégia
legislativa tenha sido utilizada, pela primeira vez, nos códigos dos
oitocentos. Tais códigos tinham uma feição nitidamente privativista. Mas, o
mais emblemático é que esses velhos axiomas — que foram chamados no século XIX
de Princípios Gerais do Direito — continuam a ser aplicados em pleno
Constitucionalismo Contemporâneo, como se houvesse apenas uma mera continuidade
entre a nova Constituição e o ancién regime jurídico. Portanto, é preciso ter
presente, desde já, que no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo os
princípios assumem uma dimensão normativa de base.
b) A associação da ideia de
princípio geral com o conceito de ordenamento jurídico, por outro lado, oferece
uma ótima amostra do anacronismo que acomete o direito brasileiro. Com efeito,
o conceito de ordenamento jurídico foi inaugurado por Kelsen e, depois,
difundido nos países de línguas latinas por Norberto Bobbio, a partir de seu
clássico Teoria do Ordenamento Jurídico — de confessadas inspirações
kelsenianas —, cuja publicação remonta ao final da década de 50 e ao início da
década de 60. Para Bobbio, a teoria do ordenamento representava uma integração
da teoria da norma jurídica, cuja premissa elementar pode ser traduzida na
seguinte passagem: “as normas jurídicas nunca existem sozinhas, mas sempre num
contexto de normas que tem relações específicas entre si”.[8] Certamente, no
início da segunda metade do século XX, a ideia de ordenamento representava uma
grande novidade, principalmente nos termos trabalhados pelo jusfilósofo italiano.
O ponto determinante para a
questão que aqui se ventila é que o ordenamento jurídico é uma construção
teórica específica. Não é um conceito que surge, por assim dizer,
“naturalmente”, na experiência jurídica. No mais, quando emprega o princípio da
isonomia, ao mesmo tempo, como um princípio geral e um princípio do
ordenamento, cria uma estranha simbiose: enquanto princípio geral seria a
isonomia um axioma de justiça, apto a preencher os vácuos deixados pelo sistema
codificado; enquanto princípio do “ordenamento” funcionaria a isonomia como uma
instância epistemológica de legitimação do conhecimento jurídico. Em verdade e
contexto, por exemplo, demonstro a inadequação da “continuidade” entre
princípios gerais e princípios constitucionais. Só isso já dá uma tese.
No caso, está correto dizer
que a isonomia impõe uma decisão igualitária no que tange ao tratamento
repressivo que se dá ao furto e aos crimes tributários. Todavia, há que se ter
em mente que isso se dá em face de a isonomia se apresentar como um princípio
constitucional que apresenta como um fator que resolve, “pragmaticamente” o
caso apresentado. A invocação da isonomia como um “princípio geral do
ordenamento” enfraquece o argumento na medida em que traria para o julgador uma
espécie de abertura interpretativa quando, na verdade, o que ocorre é um
fechamento: a interpretação constitucionalmente adequada do caso impõe que o
tratamento dos casos se dê de forma igualitária.
Vê-se, também, que a
sentença em várias passagens diz estar aplicando “analogia in bona partem”. Que
podemos dizer sobre a propalada figura da analogia em tempos pós-virada
linguística e sob o paradigma da Crítica Hermenêutica do Direito? Demandar o
artigo 3º do Código de Processo Penal também me preocupa profundamente (para usar
a analogia, esta deveria estar acompanhada de interpretação conforme ou
nulidade parcial sem redução de texto).[9] Isto porque a analogia remete a uma
escolha. Isto é, ao juiz para garimpar o fundamento por meio de um processo que
fica ao seu alvedrio, à sua vontade (vontade essa que é “do poder”, lembrando
sempre o último princípio epocal da modernidade, a Wille zur Macht — pelo qual
se institucionalizou o decisionismo judicial). Trata-se de uma postura
positivista atrelada, ainda, ao positivismo exegético ou legalista, como
costuma chamá-lo Castanheira Neves. Assim, conceitos como o de analogia e
princípios gerais do direito (axiomas do século XIX) devem ser encarados também
nessa perspectiva de construção de um quadro conceitual rigoroso, que representaria
as hipóteses — extremamente excepcionais — de inadequação dos casos às
hipóteses legislativas. Dispositivos como o do artigo 3º do CPP funcionariam
como uma espécie de fechamento autopoiético do sistema jurídico, mas, na
verdade, permitem discricionariedades e decisionismos, em frontal
incompatibilidade com uma leitura hermenêutica do sistema jurídico, superadora
do esquema sujeito-objeto (filosofia da consciência). Nesse ponto, na medida em
que não há uma referência à normatividade constitucional, a analogia — feita
nestes moldes — é tecnicamente inconstitucional.
Com efeito, na era dos
princípios, do constitucionalismo e do Estado Democrático de Direito, não é
mais possível falar em “omissão da lei” que pode ser “preenchida” a partir da
analogia [e também dos costumes (quais, por sinal?) e dos princípios gerais do
Direito].
Numa palavra final
Fazer teoria crítica no
Brasil é uma tarefa extremamente difícil. Mormente nos anos 1980 e 1990. Isso
deveria ser lembrado e reconhecido em decisões contemporâneas que, por vezes,
esquecem o que se passou (e como se hoje vivêssemos o nirvana!). E,
fundamentalmente, elaborar decisões críticas ou propagar a crítica do direito
(penal ou processual) requer coerência e integridade. Por exemplo, se alguém
gosta da tese que inventei lá nos anos 1990 e apliquei já em 1996 sobre a
isonomia entre a Lei da Sonegação e os crimes patrimoniais sem violência,
deveria também aplicar a inconstitucionalidade da reincidência (também
sufragada por Amilton e outros — embora a tese esteja sob repercussão geral
ainda não julgada, não há efeito vinculante e, portanto, não há óbice de ser
aplicada), a pena abaixo do mínimo (há súmula do STJ, mas que não há efeito
vinculante), a rejeição dos princípios-que-não-são-princípios como os da “confiança
no juiz da causa”, enfim, outras teses que foram sendo construídas e
reconstruídas por mim nestes anos todos. Veja-se que, por exemplo, a 5ª Câmara
Criminal do TJ-RS ficou sozinha anulando ações penais nas quais, antes da lei
de 2004, não havia sido assegurada a presença de advogado no interrogatório (à
época, solitariamente, a 5ª Câmara e eu sustentávamos "solo", sem nem
mesmo o apoio, na maioria das vezes, dos próprios advogados, que nem se davam
conta do problema). E, hoje, entre tantas teses garantistas que devem ser
professadas, a pergunta que faço é: quem está aplicando o artigo 212 do CPP que
explicita o sistema acusatório no processo Penal? Não seria o artigo 212 uma
regra de procedimento que assegura direitos fundamentais (leia aqui)? Insisto:
quem está, efetivamente, aplicando o artigo 212 do CPP?
Uma outra dificuldade para
se falar em garantismo no Brasil — que deve ser bem compreendido como
instrumento de limitação do poder estatal — está ligada a peculiaridade de o
sistema criar adaptações darwinianas para problemas que são derivados de
excessos praticados por algum órgão do Estado. Veja-se o caso dos embargos —
sejam eles declaratórios ou infringentes — que são, de algum modo, uma maneira
do sistema responder a decisões arbitrárias proferidas pelo judiciário (afinal,
um sentença omissa, obscura ou contraditória pode ser considerada arbitrária,
pois não? Uma vez que mal fundamentada...). No caso dos embargos infringentes —
principalmente naquele caso em que a previsão, legislativa ou regimental, tem
por característica possibilitar ao réu de processo penal uma espécie de novo
julgamento — o que se tem é a "desconfiança" quanto à legitimidade
daquele acórdão exarado da autoridade estatal. E, por vezes, com toda a razão,
mormente quando a decisão guerreada viola direitos fundamentais do acusado.
Nestes casos, não há como se negar o direito à revisão dos equívocos, pela
simples razão de que se está diante de violação de regras atinentes ao devido
processo legal e à questão da definição acerca do conceito de prova. Isso
funciona como qualquer questão de inconstitucionalidade, ou seja, é, por assim
dizer, “uma questão de ordem pública”, com uma dose de substancialidade que
supera o aspecto procedimental (relembro, aqui, o debate que faço com as posturas
procedimentalistas em Jurisdição Constitucional e Hermenêutica). Nesse sentido,
minha discussão antiga acerca do papel dos predadores internos e externos do
Direito, em que os embargos acabam sendo, vistos em sentido lato,
lamentavelmente um mal necessário. E, de fato, o são. Ruim com eles, o caos sem
eles. Por que isso é assim? A crítica do Direito vem se debruçando sobre isso.
Todavia, é necessário ter
claro que essas correções sistêmicas não atingem aquilo que é o âmago do
problema que e justamente o agigantamento de poder que recai sobre o
Judiciário. Algo que, por sua vez, deve-se ao próprio parlamento que aprovou as
mais diversas reformas — processuais e constitucionais — que conferiram ao
Judiciário instrumentos de poder, nunca dantes observados em outras ordens
jurídicas democráticas. Súmulas vinculantes, súmulas impeditivas de recursos,
repercussão geral, enfim, tudo se encaixa em torno de uma mesma volta redonda
(para homenagear Faoro). E o sistema, certamente, responde. Se de forma adequada
ou não é uma outra história...
Enfim, a coluna teve esse
duplo efeito: elogiar a decisão da ilustre juíza e incentivá-la no sentido de
que continue nessa trilha garantidora e aumente o rol desse tipo de tese e, ao
mesmo tempo, chamar a atenção para o, digamos assim, DNA da história institucional
da tese adotada.
Por isso, em um país como o
nosso, fazer teoria crítica pode merecer críticas... mas o mínimo que ser quer
é que sejam preservadas as fontes. Como nos rótulos de água mineral!
[1] STRECK, Lenio Luiz. O
artigo 16 do Código Penal e Súmula 554 - A Injustiça de uma Antinomia não
resolvida. Revista de Direito do Ministério Público, Rio Grande do Sul, v. 26,
1990.
[2] “Art. 16 - Nos crimes
cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída
a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do
agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”
[3] “O pagamento de cheque
emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao
prosseguimento da ação penal.”
[4] STRECK, Lenio Luiz. A
filtragem hermenêutico constitucional do direito penal: um acórdão garantista.
Revista Doutrina, Rio de Janeiro, v. 9, p. 390-402, 1998.
[5] STRECK, Lenio Luiz. A
nova lei do imposto de renda e a proteção das elites: questão de ‘coerência’.
Revista Doutrina – Instituto de Direito, n. 1, p. 484 a 496, 1996.
[6] OLIVEIRA, Rafael Tomaz.
Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação
do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
[7] Cf. Verdade e Consenso.
4 ed. São Paulo: Sariva, 2011, p. 173. Para uma crítica à indeterminação do
conceito de princípio no âmbito do pensamento jurídico Cf. Tomaz de Oliveira,
Rafael. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008, passim.
[8] Cf. Norberto Bobbio.
Teoria geral do direito, ob. cit., p. 173.
[9] Art. 3º.
A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação
analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
Lenio Luiz Streck é
procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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Revista Consultor Jurídico,
21 de março de 2013
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