IDÉIAS DO MILÊNIO
Bancos nunca foram tão fortes e os Estados,
tão fracos
Entrevista concedida pelo filósofo francês
Gilles Lipovetsky, ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio, da
Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de
televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições
às 3h30, 11h30 e 17h30.
As luzes das grandes cidades do século 21
parecem anunciar a consolidação de uma nova era a humanidade. Uma era de
excessos e de carências onde o equilíbrio ainda é um sonho a realizar. Prédio
demais, carros demais, lojas demais, gente demais, com seus naturais anseios e
suas inerentes limitações... humanas, demasiado humanas. Nesse universo de
oposições e sobreposições é que o mundo vai velozmente enterrando a
pós-modernidade, como a sociedade de consumo já havia enterrado a modernidade.
Chegou a vez então da hipermodernidade, com todos os seus hiperlativos e suas
muitas possibilidades, que, em certos momentos, parecem infinitas. Mas só
parecem, pois até o pai do termo, o filósofo francês Gilles Lipovetsky sabe que
as barreiras existem, e não são poucas, a começar pela finitude do homem.
Nesses tempos de excessos, o pensador fala da cultura do vazio. Quando ressalta
a necessidade de um modelo sustentável de produção e consumo, lembra que a
comunicação abriu um caminho sem volta que deixou quase tudo ao alcance de
quase todos, e deu um novo significado ao conceito de luxo, que de frivolidade
e ostentação passa a ser visto como necessidade de pertencimento e afirmação.
Em uma recente passagem pelo Brasil entre seminários na América Latina e
apresentações na Europa, eu conversei com Gilles Lipovetsky. Encontrei um homem
simples e direto, intelectual irrequieto e curioso.
Marcelo Lins — Vou começar com uma pergunta
bem abrangente, mas acho que ela corresponde à curiosidade de muitas pessoas.
Na sua opinião, qual é o papel de um filósofo do século 21? É muito diferente
do papel de um filósofo do século 20?
Gilles Lipovetsky — Eu acho que o papel é
diferente, sim. Durante boa parte do século 20, os filósofos eram como uma
espécie de profeta, um tipo de autor engajado que determinava o que a
humanidade deveria fazer e ser. Ele era um mentor. Eu acho que, hoje, as
democracias amadureceram, a democracia não é mais algo fundamentalmente
ameaçada, e, principalmente, nós temos uma nova situação, com uma espécie de
inflação de conhecimento, de informação, que, na minha opinião, dá um novo
papel aos intelectuais. Os intelectuais estão aqui para trazer o que falta cada
vez mais aos indivíduos: grandes pontos de referência. Para dar um pouco de
distanciamento com relação às coisas, para entender que não há apenas os
acontecimentos dia após dia, como mostra a televisão e a mídia em geral,
deixando os indivíduos perdidos. O papel de um intelectual é mostrar os grandes
movimentos da História, de onde nós viemos, e talvez mostrar quais são as
grandes tendências que se afiguram. Na minha opinião, é a tarefa mais urgente,
e acho que deveríamos tirar consequências dela para nossos sistemas
educacionais.
Marcelo Lins — Em sua obra mais recente, que
acaba de ser publicada também no Brasil, o senhor fala de uma terceira fase da
cultura. Após uma primeira fase antiga, houve a fase da contestação, que seria
uma segunda fase, e, agora, há uma terceira fase. O que é a terceira fase e em
que ponto dela nós estamos?
Gilles Lipovetsky — Eu chamei essa terceira
grande fase de fase da cultura-mundo, o que já é uma mudança radical, porque,
desde sempre, as culturas são particulares e variam de acordo com as regiões do
mundo, as religiões etc. Mas, ao mesmo tempo, o mundo de hoje, o mundo
contemporâneo, criou uma cultura planetária. Essa cultura planetária se
distribui segundo um certo número de dispositivos maiores. O primeiro, é
preciso reconhecer, é o capitalismo. O capitalismo, hoje, não é mais apenas um
sistema econômico, é uma maneira de ser na sociedade, uma maneira de viver. Por
quê? Porque tudo é pensado em termos competitivos. É um fenômeno sem
precedentes. O segundo grande dispositivo é a técnica. Nos quatro cantos do
planeta, as pessoas usam smartphones, agora usam também tablets, elas têm
televisão, usam cartão de crédito etc. As pessoas usam chuveiros, as mulheres
tomam pílula... São gestos da cultura e da vida cotidiana, mas que agora
viraram planetários. O terceiro grande fenômeno constitutivo dessa cultura-mundo
é o extraordinário desenvolvimento das mídias e da informação. Antigamente, a
cultura era um mundo pequenininho. O mundo dos artesãos, o mundo dos artistas,
de Montmartre, dos artistas de vanguarda. Hoje são gigantes transnacionais. Nos
EUA, o faturamento das artes visuais é maior do que o da Boeing, do que o da
indústria química, do que o da agricultura. É o principal produto de exportação
americano. Uma empresa como a Disney tem 130 mil funcionários. Falamos dos
gigantes mundiais da cultura. Não se trata mais de uma cultura específica
diferente, de Londres, de Buenos Aires ou de Pequim. Não existe mais isso. O
quarto grande fator constitutivo dessa cultura mundial é o consumo, claro.
Porque, hoje em dia, todo o nosso modo de vida está organizado e estruturado
pelo mercado. Não compramos tudo, mas, cada vez mais, quase tudo. O quinto
grande fator, que me parece ainda estar no futuro, é — usando um termo que
desenvolvi extensamente — a individualização. No planeta todo, em graus
diferentes, vemos que os indivíduos aspiram à autonomia, ou seja, a poder
construir sua própria vida, a não serem mais guiados pela tradição, pela moral,
pelas igrejas, pelos políticos. Os indivíduos querem ser atores, controlar a
própria existência. Mesmo nos países muçulmanos mais tradicionais, as mulheres
controlam os nascimentos, as mulheres se maquiam, fazem cirurgia estética, ou
seja, comportamentos estritamente individualista, ainda que a ideologia oficial
demonize o Ocidente e sua chamada “decadência libertária”. Eu acho que é uma
tendência bem forte e que nos obriga a contestar a famosa tese do americano
Samuel Huntington, que falava do “choque de civilizações”. Na verdade, há um
movimento de aproximação das civilizações, porque todas as civilizações hoje em
dia operam com base nesses cinco grandes fatores. Isso não significa que há
unidade, pois haverá conflitos, não tem nada a ver. Significa que há uma base
cada vez mais comum.
Marcelo Lins — Eu queria voltar a esse
ponto, pois, ao ouvi-lo falar, lendo o que o senhor escreve, temos a impressão
de que existe uma certa homogeneidade das coisas, graças ao fluxo de informação
e à internet, mas, ao mesmo tempo, também vemos que as pessoas desejam uma
certa individualização, querem ter escolhas e preferências individuais. Como
conseguir esse equilíbrio?
Gilles Lipovetsky — Na verdade, há um
aparente paradoxo entre, de um lado, uma força de homogeneização planetária.
Vemos as mesmas marcas em toda parte. Por todo o planeta, as pessoas assistem,
massivamente, aos mesmos programas de televisão, ouvem os mesmos discos, veem
os mesmos filmes, e, agora, isso acontece no planeta todo. Ao mesmo tempo, nós
temos um desejo de individualização nos modos de vida, nos gostos. Vejamos o
exemplo da moda, que, talvez, possa explicar esse paradoxo. A moda cria
modelos, apresenta modelos, mas, ao mesmo tempo, esses modelos não são
obrigatórios. Ou seja, a moda não é mais como antes, quando ditava o que se
devia ou não fazer. Hoje, as mulheres olham as revistas, veem uma coisa aqui,
outra ali, e o que escolhem? Elas escolhem o que corresponde ao corpo delas, à
idade delas, aquilo que lhes agrada. Há uma “subjetivização”, uma
“afetivização” em relação às coisas. Então, o que quer dizer a
individualização? Quer dizer que o consumidor age em função de seu gosto,
daquilo de que ele gosta, e não mais do que se deve fazer para encaixar em uma
classe social.
Marcelo Lins — E, mesmo com todas essas
profundas mudanças econômicas, tecnológicas e culturais que às vezes nos fazem
perder valores ou pontos de referência, o luxo aparece como uma valor quase
imutável ou uma força crescente. Como podemos interpretar esse fato e como o
luxo afeta as pessoas de diferentes classes sociais e de diferentes níveis
culturais?
Gilles Lipovetsky — É exatamente isso. Nos
anos 1960, nós achávamos que o luxo era algo que estava em regressão. E, desde
os anos 1980, 1990, o mercado mundial do luxo está em expansão. O luxo não
conhece crise. Por quê? Porque o planeta está ficando mais rico, a concentração
de riqueza é cada vez maior, e as pessoas ricas são o primeiro fator. O segundo
fator é que, na classe média-alta, há uma preferência cada vez maior pela
qualidade, pela cultura, por todas essas coisas. E, por fim, até mesmo as
classes populares, que hoje estão informadas, não querem mais se contentar com
o que lhes permite sobreviver, elas também querem participar dessa sociedade do
luxo. Nas favelas, você vê um gosto pelas marcas, pela moda, pelo luxo. É a
mesma coisa. Elas não conseguem ter isso, ou conseguem por meios menos legais,
mas a situação do luxo é que, antigamente, era uma coisa exclusiva de um grupo
restrito, e todo mundo aceitava isso. Era para os ricos. Ninguém conhecia o
luxo. Hoje, todos conhecemos e achamos que temos direito a ele. Todos se
perguntam: “Por que não eu?” “Por que eu não tenho direito de ter coisas
bonitas?” Daí o gosto pela moda, pelas marcas, pelas viagens, pelo turismo, que
são fenômenos em plena expansão.
Marcelo Lins — Não podemos esquecer que o
mundo vive uma crise profunda, que os americanos estão vivendo uma crise, a
Europa também vive uma crise econômica. Essa crise tem o poder de afetar o que
o senhor chama de hiperconsumo, esse modelo? Esta crise pode chegar a mudar as
coisas?
Gilles Lipovetsky — É uma pergunta muito
importante. Eu acho que existe uma grande força que irá transformar o consumo:
são os grandes desequilíbrios ecológicos. Teremos que combater o aquecimento do
planeta, teremos que encontrar novas fontes de energia, ser menos gulosos em
termos de energia, encontrar uma economia de baixo carbono. Bem, isso significa
que teremos uma sociedade de regressão no crescimento e no consumo? Eu não
acredito. E vou dizer por quê. Porque hoje temos sociedades de inovação e
sociedades que não são mais tradicionais. É uma diversificação dos modelos de
consumo que deve ser feita. Eu acho que a paixão consumista hoje responde a
lógicas profundas. Primeiro, à lógica econômica, pois isso faz a máquina
funcionar, mas, em segundo lugar, responde ao gosto da novidade pela novidade,
porque a novidade nos dá prazer, e nossas sociedades hoje legitimam o prazer.
E, finalmente, o consumo é uma espécie de terapia. Quando estamos deprimidos,
vamos ao cinema, viajamos, compramos alguma coisa. É uma maneira de fugir da
velhice e da rotina. Então, a ideia de que a crise nos faria superar isso e ir
em direção a um futuro previsível... Eu não acredito nisso. E vou dizer mais.
Acho que isso irá se espalhar para o mundo, porque o que é verdade para a
Europa é verdade para os bilhões de indivíduos que estão na China, na América
Latina, na Índia. O que vamos dizer a esses bilhões de indivíduos? “Vocês têm
que parar de consumir”? Isso não pode ser feito. Então, temos um verdadeiro
desafio, porque o modelo não poderá continuar como está. Teremos que encontrar
novos meios. É por isso que eu acho que a solução não está em uma espécie de
cruzada ascética para gerar culpa nos consumidores, dizendo: “Atenção, não ande
de carro.” Isso não adianta nada, não muda nada. Ou se aumentam os impostos, ou
se investe cada vez mais em pesquisa e em inovações que possam desenvolver
novos objetos, novas arquiteturas, capazes de ser mais razoáveis e mais
econômicas em matéria de energia.
Marcelo Lins — O senhor disse que também
devemos equilibrar o termo “consumo” e lembrar às pessoas que consumir não é
apenas comprar e acumular.
Gilles Lipovetsky — Todas as pesquisas
mostram que consumimos mais energia, mais automóveis, mais alimentos, mas as
pessoas não estão mais felizes. E agora? Isso quer dizer que não devemos
demonizar o consumo, senão não compraríamos nada, apenas o que servisse à nossa
saúde. Mas, ao mesmo tempo, isso quer dizer que precisamos propor,
paralelamente, outro modelo. Viver não é consumir. Nós não vivemos para ter
marcas. O homem é um ser que aprende, que deve evoluir, e fazer as coisas é uma
grande satisfação, bem como ajudar os outros, se envolver no que se quer fazer,
empreender. Nada disso é consumir. E eu acho que o papel da escola é suscitar
nas pessoas o gosto pelo empreendimento, por fazer as coisas, para que elas não
sejam apenas consumidoras.
Marcelo Lins — Falando um pouco de todos
esses novos desafios que surgem, e das ferramentas que podemos utilizar, qual é
o papel da educação, daqueles que vão formar as novas gerações?
Gilles Lipovetsky — Nós precisamos revisitar
os métodos pedagógicos. Como ensinar e o que ensinar? E aí, talvez, voltemos à
primeira pergunta que você fez a gentileza de me fazer, sobre o papel da
cultura, dos intelectuais, que não agem mais como técnicos, mas que estão aqui
para dar um ponto de referência, para que as pessoas fiquem menos perdidas,
menos desorientadas neste mundo. E, por outro lado, a escola também deve
suscitar, através de imagens, da internet, da televisão, talvez, o gosto pelas
novas profissões. As pessoas estão fechadas em seu mundinho. Os jovens veem o que
seus pais fazem, não veem tudo o que existe, o que lhes é oferecido. A escola
não pode apenas distribuir saberes elementares, ela deve abrir o espírito,
suscitar o gosto pelas coisas. Mas isso é o mais difícil. Quando um professor
lhe passa amor por alguma coisa, é um tesouro, porque você guarda isso a vida
toda.
Marcelo Lins — Exatamente.
Gilles Lipovetsky — É raro, mas acontece. E
nós agradecemos por isso a vida toda, porque levamos conosco essa paixão, e nós
precisamos disso para o futuro. Então, eu acho que é um trabalho enorme, não
será obra de um homem só, mas estou convencido de que, nesse aspecto, o papel
da cultura permanece, mas deve ser uma cultura que saiba jogar com os novos
instrumentos de comunicação. Eu não sou um fetichista da internet. A internet
não vai bastar, sempre precisaremos do acompanhamento dos professores. Mas eu
acho que a internet revolucionou de tal forma as comunicações, que me parece
impossível não conectá-la, de uma maneira ou de outra, com o ato pedagógico. O
problema é como fazer isso. Mas, em todo caso, eliminá-la dizendo que é algo
técnico, acho que é um erro. Ela tem um potencial enorme, nós temos uma
ferramenta, mas não sabemos usá-la.
Marcelo Lins — Ainda estamos aprendendo.
Gilles Lipovetsky — Estamos aprendendo.
Marcelo Lins — A hipermodernidade, conceito
que o senhor prefere àquele da pós-modernidade, e que o senhor poderia nos
explicar. Esse conceito, a partir do que o senhor escreveu, daquilo que o
senhor fala, traz consigo mais competição, mais mobilidade, o poder cada vez
maior do mercado. Mas nós também vemos, ao mesmo tempo e paralelamente, que
movimentos recentes e bem atuais, como o Occupy Wall Street e tudo que o
acompanha, a antiglobalização e seus fenômenos na África e mesmo aqui, no
Brasil, e até os movimentos pela democracia no mundo árabe, trazem em seu
âmbito conceitos que poderiam ser classificados como antigos. Coisas como
solidariedade, colaboração... O equilíbrio entre esses dois mundos é possível,
é desejável? Ele já existe, mas nós não o vemos com clareza? Porque, às vezes,
é isso que parece. Esse equilíbrio, de certa forma, já existe, mas não o vemos
com clareza.
Gilles Lipovetsky — Após as crises de 2008 e
com a crise europeia, os bancos nunca tiveram tanto poder, os Estados nunca
foram tão fracos. Então, nós não vemos um movimento de equilíbrio. Eu espero
que ele venha. É preciso encontrar formas de equilíbrio. Agora, são esses
movimentos que farão isso? Eu receio que não. São movimentos, de certo modo,
românticos, ou que não entendemos muito bem, mas que não propõem uma solução
para o problema. Não há solução política para suas reivindicações. Eu sou muito
mais sensível a invenções como, por exemplo, as que vocês conhecem em seu país,
como o microcrédito. São invenções pequenas, mas que mudam a vida das pessoas.
Essa é uma fórmula que une mercado e solidariedade, que é compatível com um
universo de mercadorias. A solidariedade também é investir na educação, ter uma
escola de qualidade, especialmente para os mais jovens. Nós vemos que a hipermodernidade
é a força dominante, estruturante, mas ela gera necessidades de contrapeso, e é
isso que pode nos deixar otimistas. Nem tudo foi canibalizado pelo mercado,
pelo dinheiro e por Wall Street. Há valores éticos e culturais que ainda movem
os homens, que continuam a protestar contra as injustiças e que querem fazer de
sua vida algo além de ganhar dinheiro na bolsa de valores ou na profissão. Eles
também querem fazer coisas que amam, querem se expressar, querem encontrar um
sentido. Isso quer dizer que a aventura da cultura não está completa, ela tomou
um novo curso, o da individualização, e nós só precisamos inventá-la e
acompanhá-la.
Marcelo Lins — Muito obrigado.
Gilles Lipovetsky — Obrigado a você.
Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro
de 2012
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