É
preciso ter humildade constitucional: o caso alemão
POR JOÃO
COSTA NETO
Entre alguns
constitucionalistas alemães, é
popular a visão de que a Constituição deve funcionar como uma
ordem-moldura (Rahmenordnung). Sob essa perspectiva, a Constituição
seria como a moldura de um quadro ou de uma tela. A moldura fixa e delineia
limites; estabelece uma área do que é
admissível.
Dentro da moldura, o
legislador ordinário e infraconstitucional é
livre para fazer escolhas por meio do processo democrático.
Há algumas coisas que a Constituição
proíbe e outras que ela exige. Para todas as outras, não
há uma resposta constitucional pré-determinada.[1]
Já se chamou isso e outras coisas, no Brasil, de
humildade constitucional (sobre o conceito, clique aqui).
Essa visão
sobre a finalidade do texto constitucional é particularmente relevante no
caso de Constituições como a brasileira, a
americana, a alemã, a sul-africana etc. O
constituinte brasileiro desejou, como os povos em geral desejam, de tudo um
pouco. Ele quis adotar o rol mais amplo e belo de direitos e garantias, mas sem
especificar, em pormenor, como eles deveriam ser aplicados.
Não
é, por exemplo, porque a Constituição
possui um capítulo que garante a proteção
à família, que ela contém
a resposta para todos os problemas de Direito de Família
(ou das famílias). Não obstante, o lema de alguns
juristas, inclusive de muitos civilistas, parece ser: “Só
a Constituição salva!” É
puro dogmatismo...
Os termos explícitos
da Constituição criam, com frequência, conflitos entre dois ou
mais valores que são igualmente constitucionais,
sem que tais conflitos sejam resolvidos pelo texto constitucional.
Quando é
que a liberdade de expressão deve ceder à
proteção da privacidade, e vice-versa? Um membro da religião
rastafári, por exemplo, pode ser condenado por usar maconha
durante práticas religiosas? Casos análogos
a esse — envolvendo o uso de drogas ilícitas
e a liberdade religiosa — foram decididos de maneira
diferente pela Suprema Corte dos EUA[2] e pela Corte Constitucional da África
do Sul[3]. Há notícia de um caso semelhante no
Brasil.[4]
Nesse contexto, ao menos duas
decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão
(doravante, BVerfG) merecem atenção: Cannabis e Kopftuch.
Na decisão
sobre a proibição da maconha (Cannabis-Beschluss), o BVerfG disse que
fazia parte da margem de ação (Spielraum) do legislador
criminalizar o uso dessa substância.[5] O BVerfG entendeu
que “não lhe cabe aferir, se a decisão
do legislador é a mais correta, a mais racional ou a mais justa”; cumpre-lhe apenas verificar, se ela é
compatível com as decisões fundamentais e basilares
contidas na Lei Fundamental alemã.[6] A margem de julgamento
do legislador é ampla. A proporcionalidade serve apenas para coibir
o que é excessivo (übermässig).
A criminalização
do uso de maconha não é
nem exigida, nem proibida pela Lei Fundamental. A proibição
do excesso (Übermassverbot) comporta, em princípio,
as duas soluções.[7] Em tese, o mesmo vale para outras drogas.
Afinal, não há, na Lei Fundamental, um
direito à intoxicação (Ein ‘Recht
auf Rausch’ gibt es nicht).[8]
Também
se registrou, na decisão, que o legislador possui
uma margem de apreciação quanto aos fatos ou
prognoses que toma por verdadeiros. Portanto, se a ciência
discorda acerca dos efeitos maléficos da cânabis
em geral ou da maconha, sobretudo em relação às
outras drogas, prevalecerá a decisão
do legislador.
Perceba-se, inclusive, que o
BVerfG afastou a alegação de que a isonomia teria
sido desrespeitada. Argumentou-se, perante o BVerfG, que o álcool
e o cigarro não eram proibidos como a maconha e que isso feriria a
máxima da igualdade.[9] Na decisão
em apreço, prevaleceu que as diferenciações
feitas pelo legislador são, em geral, admissíveis.
Elas apenas violam a isonomia, se se mostrarem arbitrárias
(willkürlich). Trata-se, tão-somente, de saber se a
distinção é desarrazoada (sachfremd) ou
defensável (vertretbar). Basta ser meramente defensável
para que seja constitucional.[10]
Ademais, ainda que se admita
que o álcool e o cigarro causam o mesmo mal à
saúde que a maconha, esse não
precisa ser o único critério para a criminalização
de uma substância química.[11]
No caso Kopftuch
(Kopftuchurteil), uma professora de escola pública fora proibida de
lecionar, uma vez que, por ser muçulmana, usava o véu
em sala de aula.[12] O BVerfGentendeu que a proibição,
levada a efeito por membros da administração pública
estadual de Baden-Württemberg, era
inconstitucional, porque não havia lei formal que a
autorizasse. Sem lei, trata-se de limitação a um direito fundamental
que implica a sua violação; com lei, a limitação
ao direito fundamental passa a ser admissível.
Entendeu-se que a margem de
apreciação do legislador é ampla; que nem toda limitação
ou restrição a direito fundamental importa a sua violação;
e que enxergar um símbolo de opressão,
no uso do véu por muçulmanas —
professoras de escolha pública ou não
—, é uma simplificação
grosseira. O uso do véu também
pode ser fruto de genuína autodeterminação.[13]
Há
uma tensão entre a liberdade religiosa da professora e a
neutralidade religiosa e ideológica (weltanschaulich) que se
impõe ao Estado. Portanto, diante da colisão
de dois valores igualmente constitucionais, deve ter-se deferência
para com os parlamentos estaduais, que são competentes para legislar
sobre a matéria na Alemanha.[14]
Em uma comunidade tolerante,
não existe direito fundamental a não
ser exposto a visões religiosas minoritárias,
diversificadas ou plurais. Todavia, a questão toma outra forma, quando o
Estado, por meio de seus agentes, manifesta opinião em favor de uma religião.[15]
O BVerfG frisou, igualmente, o papel paradigmático que uma professora
desempenha perante crianças de pouca idade em uma
escola pública.[16]
Em apertada síntese,
é possível extrair algumas conclusões
das decisões brevemente analisadas.
Primeiramente, nota-se que,
em um estado que se diz democrático, questões
essenciais devem ser decididas pelo parlamento, independentemente de se
concordar com as decisões que ele toma. Entender a
Constituição como ordem-moldura, entre a demasia e a insuficiência,
entre o Übermassverbot e o Untermassverbot, significa ser
deferente ao parlamento, sem anular a superioridade hierárquica
da Constituição em face das normas infraconstitucionais.
A Constituição
e a jurisdição constitucional devem funcionar como uma navalha de
Ockham. Os constitucionalistas não têm
a resposta para todos os problemas morais, sociais, econômicos,
políticos etc.
Com efeito, tão
necessário quanto evitar uma subconstitucionalização
do Direito é impedir uma hiperconstitucionalização
do Direito. Basta a constitucionalização do Direito; basta a
ordem-moldura.
Essa constatação
vale, notadamente, para a isonomia. Na Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), há
elevadores exclusivos para professores. Isso pode ser declarado
inconstitucional com base na assim chamada “eficácia
horizontal” dos direitos fundamentais? As premissas
defendidas por muitos, de maneira irracional, levam a asseverar que sim.
Contudo, parece evidente que isso é um contrassenso, pois a
Constituição não possui uma teoria completa
e infalível da igualdade, que contenha todas as diferenciações
imagináveis que sejam “corretas” ou “erradas”.
A isonomia inscrita na Constituição é
compatível com diversas respostas.[17]
Se a Constituição
é vista como ordem-moldura, amplia-se a democracia e
diminui-se a suscetibilidade ao panprincipiologismo (sobre o abuso dos princípios
e seu caráter autoritário clique aqui para ler
artigo escrito nesta coluna por Marcelo Neves).
Há,
ainda, três outras cruciais consequências
da visão de Constituição como ordem-moldura.[18]
Em primeiro lugar, aceita-se
que a Constituição simplesmente não proíbe,
nem exige inúmeras coisas (discricionariedade estrutural). Nesses
casos, cabe ao legislador exercer seu juízo decisório
sobre os fins a perseguir, sobre os meios para fazê-lo,
bem como lhe compete definir o equilíbrio adequado entre esses
fins e esses meios.
Em segundo lugar, como visto
na decisão sobre a criminalização do uso da maconha,
respeitam-se os fatos legislativos e os prognósticos que o legislador toma
por verdadeiros (discricionariedade epistêmica de tipo empírico).
Se se exigisse absoluta certeza quanto às premissas fáticas
e empíricas de que parte o legislador, todas as limitações
legais a interesses constitucionais seriam inconstitucionais.
Em terceiro lugar, quando não
houver muita clareza quanto ao que a Constituição proíbe
ou deixa de proibir (discricionariedade epistêmica de tipo normativo), a dúvida
favorece o legislador. A incerteza cognitiva quanto aos limites da
discricionariedade estrutural privilegia a atividade legislativa. Ou seja, na
incerteza de até aonde vão os limites da moldura, a
decisão é do parlamento.
Há
algumas coisas que a Constituição proíbe
e outras que ela exige. Para todas as outras, não há
uma resposta pré-fixada. A Constituição é
uma moldura. Ter consciência disso é
ter humildade constitucional.
[1] Acerca da Constituição
como ordem-moldura, cf., e.g., BÖCKENFÖRDE,
Ernst-Wolfgang. “Grundrechte als Grundsatznormen: Zur
gegenwärtigen Lage der Grundrechtsdogmatik, in Staat,
Verfassung, Demokratie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991; ALEXY, Robert.
Verfassungsrecht und einfaches Recht (VVDStRL 61). Berlin: Walter de Gruyter,
2002; AFONSO DA SILVA, Virgílio. Grundrechte und
gesetzgeberische Spielraum. Nomos, Baden-Baden: Nomos, 2003.
[2] Gonzáles
v O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, 544 US 973
(2005).
[3] Prince v President of the
Law Society of the Cape of Good Hope, (CCT36/00) [2002] ZACC 1; 2002 (2) SA
794.
[4] Monteiro, André;
Sant’Anna, Emílio. “Criador
da 1ª igreja rastafári é
condenado por plantar maconha.” Folha de S.Paulo, São
Paulo, 28 maio 2013.
[5] A margem de ação
(Spielraum) também pode ser chamada de
discricionariedade legislativa, margem de escolha, margem de apreciação
ou zona de proporcionalidade. Sobre o tema, cf. BARAK, Aharon. Proportionality:
Constitutional Rights and their Limitations. Cambridge: Cambridge University Press,
2012. pp. 379ss.
[6] BVerfGE 90, 145 (173)
[7] BVerfGE 90, 145 (191)
[8] BVerfGE 90, 145 (172)
[9] Sobre a relação
entre isonomia e liberdade legislativa, cf. ZIPPELIUS, Reinhold. Der
Gleichheitssatz (VVDStL 47). Berlin u. Leipzig: Walter de Gruyter, 1989;
ZIPPELIUS, Reinhold. “Menschenwürdeschutz
am Beginn des Lebens”, in Der grundrechtsgeprägte
Verfassungsstaat: Festschrift für Klaus Stern zum 80.
Geburtstag. Berlin: Duncker & Humblot, 2013. pp. 1577ss.
[10] BVerfGE 90, 145
(196-198)
[11] BVerfGE 90, 145 (196)
[12] BVerfGE 108, 282
[13] BVerfGE 108, 282
(304-305)
[14] BVerfGE 108, 282
(299-303)
[15] BVerfGE 108, 282 (301)
[16] BVerfGE 108, 282 (307)
[17] Nesse sentido, é
de rechaçar-se, do ponto de vista constitucional, a opinião
unívoca e holística de Ronald Dworkin
acerca de direitos fundamentais como a liberdade e a igualdade em Sovereign
Virtue e em Justice for Hedgehogs (publicado em português
pela editora Almedina). É, inclusive, sintomático
que o último livro de Dworkin, a ser publicado postumamente
em agosto do presente ano, tenha por título Religion without God
(clique aqui). Há uma espécie
de teologia secular no que Dworkin escreve. A unidade/objetividade de valores e
a tese de que ideias como liberdade e igualdade jamais conflitam entre si, por
serem delineadas de maneira exata, diminuem – se é
que não extinguem – a possibilidade
de haver um amplo rol de respostas paritariamente corretas para questões
envolvendo direitos fundamentais.
[18] cf. ALEXY, Robert.
Verfassungsrecht und einfaches Recht (VVDStRL 61). Berlin: Walter de Gruyter,
2002; “Posfácio” à
Teoria dos Direitos Fundamentais, traduzida por Virgílio
Afonso da Silva e publicada, em São Paulo, pela ed. Malheiros.
JOÃO
COSTA NETO é professor substituto na Universidade de Brasília
(UnB), pela qual é doutorando e mestre em
Direito, Estado e Constituição. Mestrando em Direito
Romano pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade
de São Paulo (USP).
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