Coisas de que só eu gosto
Aquilo que a gente ama nos define. Quem a gente ama nos
distingue
IVAN MARTINS
Na
lanchonete Real, perto de casa, prepara-se um filé com ervilhas que me faz
feliz há mais de uma década. Mas noto que o prato já não é tão popular. Nas
últimas vezes em que o pedi, deparei com o olhar confuso do garçom, como se
perguntasse: “Filé com quê?”. Então repito: “Filé com ervilhas”. E mostro com o
dedo: “Aqui, está no cardápio”. O pessoal da cozinha ainda lembra como se
prepara o meu prato favorito, pelo menos.
Esse
filé está na categoria das coisas de que só eu gosto. Ou quase. É como Tropas
estelares, um filme de ficção científica com estética de seriado de TV dos
anos 1950. Vi no cinema com meus filhos quando foi lançado, em 1997 e, desde
então, mais uma dezena de vezes. Dias atrás, ao listar meus 10 filmes favoritos,
percebi ele que vinha em terceiro, atrás de O último tango em Paris e Paris,
Texas, duas obras primas. O que faz uma aventura romântica e juvenil em tão
nobre companhia eu não sei. Talvez seja nostalgia da adolescência e dos seus
amores impossíveis, como os do filme.
Ao
pensar no filé e no filme, assim como nos livros de Jorge Semprún ou nas calças
boca de sino, percebo que há peculiaridades de gosto que definem quem sou. Ou
quem você é. Milhões de pessoas gostam das mesmas coisas, e isso não as
distingue. Mas cada um tem preferências únicas, ou quase únicas, que ajudam a
definir quem é, no meio da multidão.
Entre
aquilo que mais nos distingue está a pessoa de quem gostamos e com quem
dividimos a vida. Ela é única em seus defeitos e qualidades, na beleza ou na
falta de atrativos. Não há ninguém mais com o mesmo sorriso ou a mesma
combinação de gestos. Entre bilhões de pessoas no planeta, piores ou melhores,
ninguém carrega as lembranças que ela carrega. Ninguém divide conosco as
memórias que ela divide. Essa Maria, seja ela quem for. Esse João, por comum
que seja. Não há ninguém em todo o mundo igual a nenhum deles. Amar essa
singularidade humana nos torna igualmente singular.
Ontem,
vi uma foto de Gisele Bündchen desfilando em Paris, de minissaia e botas.
Pensei: “Que linda”. Milhões devem ter pensado a mesma coisa. Haverá no mundo
um milhão de homens, talvez mulheres, apaixonados por ela. Gostar de
Gisele Bündchen talvez defina a vida de muitos. Gostar dela será, nesse caso,
como gostar de um filme de grande sucesso ou de um livro best-seller. Algo que
se pode partilhar com milhares ou milhões. Não é o mesmo que gostar de Maria ou
João.
O
gostar que nos define está ligado às entranhas de alguém, não à imagem que
projeta. Está ligado a seus sentimentos secretos, não apenas ao que diz e faz
em público. Essa conexão existe apenas entre gente de verdade, que se define,
necessariamente, de dentro para fora. O que há entre nós e a aparência dos
outros é somente fantasia e ilusão. Vale para Gisele ou para a garota mais
bonita do colégio, por quem todos parecem apaixonados. Elas não contam como
experiência única.
Aquilo
que marca a biografia, aquilo que nos define, é o que nos toca e se deixa
tocar. É o que se mistura ao que somos. Pode ser a mulher mais bonita do prédio
que, vista de perto, era despretensiosa e divertida. Pode ser a garota com
cheiro de cloro, cuja intimidade era tão rica que, anos depois, você ainda se
lembrará dela com saudades. O essencial é criar vínculos que durem. Entrar em
contato. Gostar e deixar-se gostar. Permitir que o outro nos olhe e pense:
“Esse é meu amor”. Que é uma forma de dizer: “Esse é quem sou”. Ou será que
isso é tão romântico que somente Heathcliff diria a Catherine?
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