A vida real
Ela começa quando as pessoas deixam
o mundo imaginário das relações passadas ou futuras
IVAN MARTINS
Três jovens amigas conversam num bar. O tema são
os homens com quem vivem. Elas se queixam, num tom carinhoso. Uma gostaria de ter
um segundo apartamento onde se refugiar da companhia constante dele. Só de vez
em quando, diz ela. Outra lamenta que o marido goste de acompanhá-la o tempo
todo. Adoraria fazer algumas coisas sozinhas, como ir ao cinema ou ler o
jornal. A terceira, mais ousada, acha que poderia propor ao companheiro uma
relação sexualmente mais aberta, se achasse que ele está pronto para ouvir a
sugestão sem magoar-se. Sente que na vida deles falta alguma excitação.
Ouvindo essas histórias, que me foram contadas por
uma amiga, é possível imaginar várias coisas. Uma legião de mulheres
insatisfeitas, apegadas a relacionamentos exauridos, que deram o que tinham de
dar. Ou uma geração de homens carentes, incapazes de tirar os olhos por um
segundo de suas mulheres enfastiadas. Quem sabe, um mundo repleto de madames
Bovarys, sempre à espreita de um sedutor galante e cafajeste, capaz de oferecer
a elas outra vida.
É possível que isso tudo seja verdade. É mais
provável que a cena entre as três amigas reflita apenas a vida real. Ela começa
quando as pessoas deixam o mundo imaginário das relações passadas ou futuras e
ingressam num relacionamento estável no presente. Nele, a rotina e a
previsibilidade se tornam de alguma forma inevitável. Como sugere a conversa
das amigas. Mas há na queixa delas um elemento oculto da maior importância: a
confiança. Quem está num relacionamento desse tipo sabe que se tornou parte da
vida do outro. O sujeito não desaparecerá amanhã cedo. Por isso, as jovens
amigas podem se sentir levemente entediadas com seus parceiros. Estão seguras
do afeto deles.
A confiança entre iguais é um sentimento
revolucionário. Num mundo em que tudo se desmancha no ar ou se desfaz de forma
líquida – escolha sua metáfora –, as relações afetivas ancoradas na confiança
são um bem precioso. Permitem que as os seres humanos desabrochem. Não é
preciso mais se proteger do outro, que pode partir e magoar a qualquer momento.
Também não se trata mais de ocultar tudo aquilo que não favorece. Nem é
necessário o exercício permanente da sedução, capaz de mantê-lo por perto. O
sujeito não está de saída. Ele escolheu, quer, deseja. Sua presença constante –
tranquila ou exaltada, romântica ou brincalhona, quieta ou barulhenta – deixa
isso claro.
Nessas circunstâncias, providas de um afeto
recíproco, as mulheres (tanto quanto os homens) descobrem nova formas de ser
elas mesmas. Aventuram-se. Exploram. Crescem, ao mesmo tempo que se
tranquilizam. A conversa aparentemente blasée em relação aos seus homens é
enganadora. As amigas que falam no bar entendem a importância deles na vida
delas. Apenas gostariam que tudo fosse um pouco melhor, como é da natureza
humana.
Não é única forma de estar bem no mundo, claro. Há
outras, perfeitamente respeitáveis. Ou não. As personalidades variam. Mulheres
sozinhas vão a qualquer parte, e isso tem vantagens. Há muita diversão e
descoberta por aí. Também se aprende muito procurando. O mundo é vasto, e os
voos de carreira são cada vez mais baratos. Todos temos direito a passaporte.
O universo dos relacionamentos reais é uma espécie
de continente, sempre à espera de ser explorado. Ele nos conduz a lugares onde
nunca estivemos, nos descortina paisagem interiores que não sabíamos existir,
nos transforma de fora para dentro – e, então, de dentro para fora –, abre
portas e cria novas formas de lidar com a vida. O amor, o convívio, a confiança
são profundamente transformadores. Sobretudo porque são opcionais É isso que
está por trás da conversa das amigas. O romance, na sua forma vagabunda e
prosaica. O romance das nossas vidas. Às vezes, besta que dói, mas essencial de
viver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário