sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A vida real
Ela começa quando as pessoas deixam o mundo imaginário das relações passadas ou futuras

IVAN MARTINS


Três jovens amigas conversam num bar. O tema são os homens com quem vivem. Elas se queixam, num tom carinhoso. Uma gostaria de ter um segundo apartamento onde se refugiar da companhia constante dele. Só de vez em quando, diz ela. Outra lamenta que o marido goste de acompanhá-la o tempo todo. Adoraria fazer algumas coisas sozinhas, como ir ao cinema ou ler o jornal. A terceira, mais ousada, acha que poderia propor ao companheiro uma relação sexualmente mais aberta, se achasse que ele está pronto para ouvir a sugestão sem magoar-se. Sente que na vida deles falta alguma excitação.
Ouvindo essas histórias, que me foram contadas por uma amiga, é possível imaginar várias coisas. Uma legião de mulheres insatisfeitas, apegadas a relacionamentos exauridos, que deram o que tinham de dar. Ou uma geração de homens carentes, incapazes de tirar os olhos por um segundo de suas mulheres enfastiadas. Quem sabe, um mundo repleto de madames Bovarys, sempre à espreita de um sedutor galante e cafajeste, capaz de oferecer a elas outra vida.
É possível que isso tudo seja verdade. É mais provável que a cena entre as três amigas reflita apenas a vida real. Ela começa quando as pessoas deixam o mundo imaginário das relações passadas ou futuras e ingressam num relacionamento estável no presente. Nele, a rotina e a previsibilidade se tornam de alguma forma inevitável. Como sugere a conversa das amigas. Mas há na queixa delas um elemento oculto da maior importância: a confiança. Quem está num relacionamento desse tipo sabe que se tornou parte da vida do outro. O sujeito não desaparecerá amanhã cedo. Por isso, as jovens amigas podem se sentir levemente entediadas com seus parceiros. Estão seguras do afeto deles.
A confiança entre iguais é um sentimento revolucionário. Num mundo em que tudo se desmancha no ar ou se desfaz de forma líquida – escolha sua metáfora –, as relações afetivas ancoradas na confiança são um bem precioso. Permitem que as os seres humanos desabrochem. Não é preciso mais se proteger do outro, que pode partir e magoar a qualquer momento. Também não se trata mais de ocultar tudo aquilo que não favorece. Nem é necessário o exercício permanente da sedução, capaz de mantê-lo por perto. O sujeito não está de saída. Ele escolheu, quer, deseja. Sua presença constante – tranquila ou exaltada, romântica ou brincalhona, quieta ou barulhenta – deixa isso claro.
Nessas circunstâncias, providas de um afeto recíproco, as mulheres (tanto quanto os homens) descobrem nova formas de ser elas mesmas. Aventuram-se. Exploram. Crescem, ao mesmo tempo que se tranquilizam. A conversa aparentemente blasée em relação aos seus homens é enganadora. As amigas que falam no bar entendem a importância deles na vida delas. Apenas gostariam que tudo fosse um pouco melhor, como é da natureza humana.
Não é única forma de estar bem no mundo, claro. Há outras, perfeitamente respeitáveis. Ou não. As personalidades variam. Mulheres sozinhas vão a qualquer parte, e isso tem vantagens. Há muita diversão e descoberta por aí. Também se aprende muito procurando. O mundo é vasto, e os voos de carreira são cada vez mais baratos. Todos temos direito a passaporte.

O universo dos relacionamentos reais é uma espécie de continente, sempre à espera de ser explorado. Ele nos conduz a lugares onde nunca estivemos, nos descortina paisagem interiores que não sabíamos existir, nos transforma de fora para dentro – e, então, de dentro para fora –, abre portas e cria novas formas de lidar com a vida. O amor, o convívio, a confiança são profundamente transformadores. Sobretudo porque são opcionais É isso que está por trás da conversa das amigas. O romance, na sua forma vagabunda e prosaica. O romance das nossas vidas. Às vezes, besta que dói, mas essencial de viver.

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