terça-feira, 10 de janeiro de 2012


RECURSO ESPECIAL Nº 1.051.270 - RS (2008/0089345-5)
 
RECORRENTE
:
BBV LEASING BRASIL S/A ARRENDAMENTO MERCANTIL
ADVOGADO
:
HENRIQUE HACKMANN E OUTRO(S)
RECORRIDO
:
MAURO EDUARDO DE ALMEIDA SILVA
ADVOGADO
:
JOSÉ ABEL LUIZ
 

 


RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. BBV Leasing Brasil S/A Arrendamento Mercantil ajuizou ação de reintegração de posse em face de Mauro Eduardo de Almeida Silva, ensejada por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil.
O Juízo de Direito da 5ª Vara Cível da comarca de Porto alegre, entendendo que o adiantamento do valor residual garantido (VRG) descaracterizaria o contrato de leasing, julgou improcedente o pedido de reintegração.
Inconformada, a instituição financeira interpôs apelação, que foi julgada prejudicada, com disposições de ofício (fls.113/121).
Interposto recurso especial, o e. Ministro Hélio Quaglia Barbosa cassou o aludido acórdão, determinando a devolução dos autos à justiça de origem para que fosse proferido novo julgamento.
Assim, julgada novamente a apelação da instituição financeira, a ela foi negado provimento, nos termos da seguinte ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ESPECIAL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. Atenta contra a boa-fé a reintegração do bem à arrendadora quando o contrato de arrendamento mercantil está substancialmente adimplido, já que importa em medida impositiva de lesão desproporcional ao consumidor. Inviabilidade do pedido. Apelação desprovida. (fl. 156)
_________________________


Inconformada, a instituição financeira interpôs recurso especial, arrimado na alínea "a" da norma constitucional autorizadora, no qual alega violação do art. 51 do CDC, bem como dos arts. 422, 394 e 475, todos do Código Civil, porquanto o devedor encontra-se em mora, razão pela qual a procedência da ação de reintegração de posse era medida que se impunha, nos termos da Lei 6.099/74.
Transcorrido em branco o prazo para contra-arrazoar, o apelo excepcional foi inadmitido (fls. 169), ascendendo os autos a esta Corte por força de decisão tomada no Ag 968.146/RS, de relatoria do Ministro Hélio Quaglia Barbosa (fls. 189).
É o relatório.

 



RECURSO ESPECIAL Nº 1.051.270 - RS (2008/0089345-5)
 
RELATOR
:
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE
:
BBV LEASING BRASIL S/A ARRENDAMENTO MERCANTIL
ADVOGADO
:
HENRIQUE HACKMANN E OUTRO(S)
RECORRIDO
:
MAURO EDUARDO DE ALMEIDA SILVA
ADVOGADO
:
JOSÉ ABEL LUIZ
 
 

EMENTA
DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL.
1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos".
2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato.
3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença.
4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.
5. Recurso especial não conhecido.

 

 VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. A irresignação não colhe êxito.
Diante da crescente publicização do direito privado, o contrato deixou de ser a máxima expressão da autonomia da vontade para se tornar prática social de especial importância, prática essa que o Estado não pode simplesmente relegar à esfera das deliberações particulares. Instituto nascido no âmbito do Direito Privado, o contrato passou a ter colorido publicístico, exigindo do julgador a aplicação, no caso concreto, das chamadas cláusulas abertas, dentre as quais se destacam a boa-fé-objetiva e a função social. Vale dizer, não se pode mais conceber o contrato unicamente como meio de circulação de riquezas. Além disso - e principalmente -, é forma de adequação e realização social da pessoa humana e meio de acesso a bens e serviços que lhe dão dignidade.
Sobre as cláusulas gerais - marca identificadora do Código Civil de 2002 -, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery destacam que:
A cláusula geral da função social do contrato é decorrência lógica do princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma sociedade mais justa. (...) As várias vertentes constitucionais estão interligadas, de modo que não se pode conceber o contrato apenas do ponto de vista econômico, olvidando-se de sua função social. A cláusula geral da função social do contrato tem magnitude constitucional e não apenas civilista (Código Civil Comentado, p. 447, 5ª edição. Ed. Revistas dos Tribunais).
_________________________


Com efeito, é pela lente das cláusulas gerais previstas no Código, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos".
Nesse passo, a faculdade que o credor tem de simplesmente resolver o contrato, diante do inadimplemento do devedor, deve ser reconhecida com cautela, sobretudo quando evidente o desequilíbrio financeiro entre as partes contratantes, como no caso dos autos. Deve o julgador ponderar quão grave foi o inadimplemento a ponto de justificar a resolução da avença.
Como bem assevera Athos Gusmão Carneiro, em um sistema de resolução judiciária dos contratos, a apreciação valorativa do inadimplemento contratual é alicerçada na análise global do contrato inexecutado, inclusive de sua natureza, e na consideração do comportamento total dos contraentes, desde o início da avença. Assim, ante eventual adimplemento limitado ou inexato, a decisão judicial, ou pela resolução da avença ou pela simples condenação em perdas e danos, dependerá de uma avaliação da "repercussão do incumprimento no equilíbrio sinalagmático do contrato" (Inadimplemento Contratual Grave - Discricionariedade do Juiz. In. Revista de Processo. Ano 20. Abril-Junho de 1.995, n. 78).
Vale dizer que, para a resolução do contrato pela via judicial, há de se considerar não só a inadimplência em si, mas também o adimplemento da avença durante a normalidade contratual. A partir desse cotejo entre adimplemento e inadimplemento é que deve o juiz aferir a legitimidade da resolução do contrato, de modo a realizar, por outro lado, os princípios da função social e da boa-fé objetiva.
Assim, a insuficiência obrigacional poderá ser relativizada com vistas à preservação da relevância social do contrato e da boa-fé, desde que a resolução do contrato não responda satisfatoriamente a esses princípios. Essa é a essência da doutrina do adimplemento substancial do contrato.
No direito comparado, essa teoria é amplamente aceita.
O art. 1.455 do Código Civil italiano, por exemplo, proclama que "o contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes tem escassa importância, resguardado o interesse da outra parte". Regra análoga é encontrada no art. 802, n. 2, do Código Civil português de 1966: "o credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância".
É de se notar, portanto, que a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença quando viável e for de interesse dos contraentes. Ou, como aduz Jones Figueiredo Alves, "o suporte fático que orienta a doutrina do adimplemento substancial, como fator desconstrutivo do direito de resolução do contrato por inexecução obrigacional, é o incumprimento insignificante" (Adimplemento Substancial como Elemento Decisivo à Preservação do Contrato. In. Revista Jurídica Consulex. Ano XI, n. 240, Janeiro de 2007).
3. No caso em apreço, afigura-se-me cabível a aplicação da teoria do adimplemento substancial dos contratos.
Colhe-se do acórdão recorrido que o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido".
Entendo que o mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil.
Diante do substancial adimplemento do contrato, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé-objetiva. A regra que permite a reintegração de posse em caso de mora do devedor - e consequentemente a resolução do contrato -, no caso dos autos, deve sucumbir diante dos aludidos princípios.
Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002.
Pode, certamente, o autor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.
Esta Corte já manifestou entendimento semelhante nos precedentes abaixo transcritos:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso.
Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela.
Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse.
Recurso não conhecido.
(REsp 272.739/MG, Rel. Ministro  RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 01.03.2001, DJ 02.04.2001 p. 299).
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ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Deferimento liminar. Adimplemento substancial.
Não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora.
Recurso não conhecido.
(REsp 469.577/SC, Rel. Ministro  RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 25/03/2003, DJ 05/05/2003 p. 310).
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Também a Primeira Seção deste Tribunal tem aplicado a teoria do substancial adimplemento do contrato no âmbito dos contratos administrativos, verbis:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 87 DA LEI N. 8.666/93.
1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau assim ementado (fl. 186): DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666/93. MANDADO DE SEGURANÇA. RAZOABILIDADE.
1. Cuida-se de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade militar que aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em licitação devido ao atraso no cumprimento da prestação de fornecer os produtos contratados.
2. O art. 87, da Lei nº 8.666/93, não estabelece critérios claros e objetivos acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mas por óbvio existe uma gradação acerca das penalidades previstas nos quatro incisos do dispositivo legal.
3. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual.
4. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87, da Lei nº 8.666/93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade, adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade.
5. Apelação e Remessa necessária conhecidas e improvidas.
2. Aplicação do princípio da razoabilidade. Inexistência de demonstração de prejuízo para a Administração pelo atraso na entrega do objeto contratado.
3. Aceitação implícita da Administração Pública ao receber parte da mercadoria com atraso, sem lançar nenhum protesto.
4.  Contrato para o fornecimento de 48.000 fogareiros, no valor de R$ 46.080,00 com entrega prevista em 30 dias. Cumprimento integral do contrato de forma parcelada em 60 e 150 dias, com informação prévia à Administração Pública das dificuldades enfrentadas em face de problemas de mercado.
5. Nenhuma demonstração de insatisfação e de prejuízo por parte da Administração.
6. Recurso especial não-provido, confirmando-se o acórdão que afastou a pena de suspensão temporária de participação em licitação e impedimentos de contratar com o Ministério da Marinha, pelo prazo de 6 (seis) meses.
(REsp 914.087/RJ, Rel. Ministro  JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/10/2007, DJ 29/10/2007 p. 190).
_________________________

Sobre o tema, também foi aprovado o enunciado n. 361, na IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, que assim dispõe:



Arts. 421, 422 e 475: O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.


4. Diante do exposto, não conheço do recurso especial.
É como voto.

 


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