O inimigo como tragédia e
como farsa
Por Luiz Moreira
Karl
Marx, um dos mais argutos e complexos pensadores do Ocidente, cunhou frase que é
repetida em diversos contextos e que é apropriada para expressar os diferentes
modos de manifestação do mesmo fenômeno: “Hegel observa em uma de suas obras
que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo
ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira
vez como tragédia, a segunda como farsa”.
Se
é certo que a conjunção de diversos fatores e inúmeras condições não permitem a
simples repetição do fenômeno histórico, também o é que a oposição (antífrase)
entre tragédia e farsa reflete uma decadência entre ambos, mas também adverte
que a ninguém é permitido portar-se ingenuamente ante as intrincadas relações
políticas, sociais e econômicas.
Embora
haja consenso que as instituições republicanas devem submissão à soberania
popular, razão pela qual ocorrem eleições periódicas, foi produzida ideologia
que não apenas subordina, mas que criminaliza os poderes que decorrem do voto.
No
Brasil, como caso único, adotou-se sistema em que há supremacia do sistema de
justiça sobre a política, adotando-se, ao mesmo tempo, controle difuso de
constitucionalidade, como nos Estados Unidos, e concentrado, como na Alemanha,
com clara preferência pelo modelo repressivo, no qual o sistema de justiça age
como corretor das instituições políticas. Tal construção mitiga a democracia e
fragiliza a atividade política, de modo a produzir ambiente semelhante ao
vivenciado nas ditaduras.
Atualmente,
há um claro desprestígio da lei, substituída por interpretações jurídicas
fundadas em princípios constitucionais “abertos”. Desse modo, prospera
ideologia que permite que manifestações individuais de magistrados e de membros
do Ministério Público se sobreponham às leis.
Um
dado é particularmente constrangedor: enquanto o sistema de justiça conviveu
harmoniosamente com o regime de exceção instalado pela ditadura civil e
militar, a sociedade reagia construindo uma rede de apoios que se fundava na
atuação de artistas, nas forças políticas clandestinas, nos movimentos
eclesiais de base, no Movimento Democrático Brasileiro, na Ordem dos Advogados
do Brasil e na Associação Brasileira de Imprensa.
Ante
a cassação de três de seus ministros (Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro
Lins e Silva) e a aposentadoria voluntária, em solidariedade aos ministros
cassados, do presidente e do vice-presidente do STF (Antônio Gonçalves de
Oliveira e Antônio Carlos Lafayette de Andrada), os demais ministros se
mantiveram nos respectivos cargos, em ato que representou mais que a convalidação
jurídica do regime de exceção.
Não
bastasse o aniquilamento físico e ideológico promovido pela ditadura, houve não
apenas a convalidação desses atos pelo sistema de justiça, mas sua perfeita
formalização jurídica. Ou seja, não havia democracia, mas havia Estado de
direito.
O
inimigo como tragédia
Em
Carl Schmitt o inimigo é o hostil e adquire contornos institucionais com a
ditadura brasileira: o inimigo era o estranho, o desconhecido e contra ele era
permitida qualquer hostilidade.
Operando
método de eliminação de cidadãos, que consistia na produção da figura do
inimigo, o Estado brasileiro adaptou métodos e nomenclaturas utilizados nas
guerras e os aplicou aos cidadãos que se opunham ao regime. Esses cidadãos eram
identificados e apartados da comunidade política.
O
método de apartação consistia na formulação de lista de suspeitos, com sua
posterior submissão à tortura. Os inimigos do regime eram identificados,
torturados e mortos. Aos sobreviventes restavam dois caminhos: o exílio ou a
clandestinidade. Ambos significavam que a hostilidade do regime os transformara
em apátridas.
É
nesse contexto que foi produzida a campanha “Brasil, ame-o ou deixe-o”, para
sinalizar que o desterro era o destino a que eram encaminhados os dissidentes
que resistiram à tortura.
E
o que podem esperar os dissidentes? Além de vítimas de tortura física e de
alvos de uma guerra psicológica, aguardavam a reprovação de suas condutas pelo
sistema de justiça, isto é, além de aniquilados fisicamente foram também
condenados pelo sistema de justiça.
Desse
modo, o Estado de direito se realiza como tragédia, pois à hostilidade política
sucede a decisão judicial.
O
inimigo como farsa
Günther
Jakobs também formula um conceito de inimigo. Para ele, o inimicus é o
criminoso.
Jakobs
concebe dois tipos de direito penal. No direito penal dos cidadãos, a pena é um
parâmetro a ser evitado e os cidadãos que se desviarem desse parâmetro devem suportar
a pena como “reparação do dano”, isto é, a pena é um castigo que deve ser
aplicado para que seja conservada a norma penal.
Já
o direito penal do inimigo é a regulamentação do Estado de exceção. Criam-se os
meios jurídicos para o aniquilamento dos que descumprem determinadas normas
penais. Assim, se um cidadão infringir algumas normas ou se cometer
determinados crimes, a ele não se aplicam as normas penais que são válidas para
os demais, vez que se trata de eliminar o inimigo.
Para
Jakobs, o cidadão que viola a norma penal, ainda que de menor potencial
ofensivo, é já inimigo, ainda que provisoriamente. Mas os cidadãos que praticam
certos crimes ou que os praticam mais vezes são inimigos permanentes e a eles não
se aplicam o direito penal do cidadão. Como inimigos do Estado deixam de ser
tratados como pessoa.
Desse
modo, o criminoso é aquele cuja conduta o aparta da comunidade jurídica. Esse
apartar significa tanto ato de isolamento quanto perda de direitos. Isolamento
porque deixa de ser membro da comunidade dos cidadãos e, por não participar
dela, não usufrui dos direitos que nela são gestados.
O
que antes era circunscrito às favelas, aos presídios e às periferias passa a se
generalizar. Mesmo medidas judiciais de exceção, como prisões processuais,
passam a ser regra. O cidadão, transformado em inimigo, de presumivelmente
inocente é transformado em previamente suspeito, assim como medidas invasivas e
prisões, em regra.
A
"lava jato" e a reedição do inimigo
Com
o propósito de subverter essa estrutura garantista da Constituição foi moldado
um componente ideológico abstrato (o combate à corrupção) e um “exército” de
combatentes, que se utiliza de campanhas midiáticas para obter o apoio da
população às suas causas e lhes garantir que essa atuação seja inquestionável.
Esse
alinhamento do sistema de justiça à mídia tem garantido supremacia da primeira
instância sobre as instâncias revisoras. Ou seja, os juízes dos tribunais têm
evitado conceder habeas corpus ou mesmo decretar nulidades processuais, pois têm
receio de serem tidos como coniventes com a corrupção.
Mais
do que ocupar o topo do Poder Judiciário, o STF é o guardião das liberdades.
Desse modo, uma de suas missões é apreciar e julgar habeas corpus, justamente
para coibir qualquer arbitrariedade praticada pelo Estado.
Não
é admissível que a apreciação e a concessão de habeas corpus dependam de
percursos burocráticos, sobretudo quando são conhecidos os problemas com o
tempo de duração dos processos no sistema de justiça. Assim, não faz qualquer
sentido a manutenção, pelo STF, da Súmula 691, por significar primazia da
burocracia judiciária ante as liberdades, da qual o habeas corpus é expressão.
Embora
vivamos sob uma democracia constitucional, a operação "lava jato" tem
se utilizado de métodos condizentes com a transformação de cidadãos em
inimigos: primeiro, com a figura da delação; segundo, com a transformação da
prisão preventiva em meio ordinário apto a produzir provas.
A
delação premiada é uma adaptação, para o direito, da figura do confessionário
da igreja católica. No catolicismo, o pecador se dirige ao confessionário para
obter o perdão de suas culpas; já no direito penal, o delator é aquele que
confessa ter cometido crimes e que projeta seu agir em termos utilitários, isto
é, no agir do delator tudo é calculado: o crime praticado, o que confessar e o
a quem envolver ou a quem proteger. Diferentemente do pecador ante o confessionário,
o delator é um jogador que se utiliza do sistema de justiça para obter
vantagens.
Na
perspectiva adotada pela "lava jato", ou seja, a do direito penal do
inimigo, duas questões afrontam o direito penal constitucional vigente no
Brasil:
(I)
a transformação do depoimento do delator de indício em prova, com a consequente
equiparação dos depoimentos de dois ou de mais delatores em conjunto probatório;
e (II) a tendência a se perder a diferença qualitativa, ainda existente, entre
os métodos investigativos da polícia e do ministério público dos praticados por
delinquentes.
Já
a prisão preventiva como meio de produção de prova se classifica como
modalidade de guerra ao inimigo.
Embora
o STF já tenha se posicionado sobre a ilegalidade dessa medida, a permanência
da Súmula 691 retarda o triunfo das liberdades sobre o arbítrio.
A
ninguém interessa a impunidade. No entanto, o combate à impunidade não pode
significar violação à Constituição. O combate à impunidade significa investigação
criteriosa, com autonomia operacional da Polícia, independência institucional
do Ministério Público e garantias à atuação do Judiciário. Significa também
presunção de inocência, divisão entre as atividades de acusar e de julgar,
devido processo legal e reconhecimento da importância do advogado para o
sistema de justiça.
Nas
democracias constitucionais a liberdade é a regra. Nessas, cidadãos só são
presos quando constatadas suas culpas em processos em que a ampla defesa e o
devido processo legal são observados. Antes circunscrita geograficamente às
favelas, aos presídios e às periferias, esse estado de exceção rompe essa
estratificação e se generaliza, em falso movimento de universalização da exceção.
Cabe
ao STF conter essa farsa.
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