quarta-feira, 9 de julho de 2014


O adulto desmontado
Cada vez mais pessoas crescidas teimam em continuar vivendo como adolescentes e já não existem referências claras sobre o que é ser adulto e se comportar como tal. Por que anda tão difícil envelhecer?

por Texto Mariana Sgarioni

O cara só usa bermudão e camiseta tipo skatista, fala gíria e masca chiclete sem parar, mora com os pais, nunca se preocupou em aprender a fazer um nó de gravata (ele só tem uma, comprada para o casamento do melhor amigo), se nega a assumir o relacionamento com a “ficante” oficial há mais de um ano, e, para completar, acha que previdência não é assunto que lhe deva despertar interesse. Há alguns anos, tal descrição certamente seria referente a um rapaz de 18 anos. Acontece que as fronteiras etárias se tornaram nebulosas: atualmente o perfil acima também corresponde a muitos homens de 35 ou 40 anos. Eles fazem parte de uma turma que anda com uma certa dificuldade – para não dizer aversão – de encarar a vida adulta como ela é conhecida. Aquela vida chata, mas inevitável, cheia de responsabilidades e suas conseqüências. Como, por exemplo, trocar a lâmpada queimada da geladeira, lembrar de pagar o seguro do carro, usar terno e gravata ou salto alto quando for necessário, concordar em estabelecer vínculos verdadeiros com os outros. Enfim, aceitar a maturidade e assumir de vez o controle da própria vida. Está parecendo papo de gente careta? Cuidado, você pode ser o cara descrito ali atrás: um adultescente em potencial.
Por que é difícil crescer?
Não faz tanto tempo (coisa de 30 ou 40 anos atrás), as opções de estilo de vida eram um tanto restritas. As mulheres eram educadas para se casar e ter filhos. Já os homens, para serem chefes de família e manterem um emprego estável. Quando atingiam esse estágio, pronto, se tornavam adultos aos olhos de todos. E o que fugisse disso causava uma certa indignação. O negócio é que os dias de hoje – ainda bem – permitem outras escolhas que não são mais marginalizadas. É possível não casar, trocar de emprego toda hora, não ter filhos, deixar a faculdade para mais tarde, morar fora do país... o leque é infinito. “Isso é bom, por um lado, uma vez que a vida passou a ser menos restritiva”, afirma a psicóloga Maria Tereza Maldonado, autora do livro Maturidade. “Mas, por outro, gerou a cultura do transitório, do descartável, algo típico do comportamento adolescente que não se preocupa em se responsabilizar por nada. Ninguém quer mais nada a longo prazo que gere comprometimento, uma vez que isso implica renúncias, tolerância, paciência e, principalmente, maturidade emocional.”
Existe também um aspecto mercadológico na adultescência. A partir do período pós-guerra, tudo o que remete à juventude passou a ser extremamente valorizado. Não é cool comprar fixador de dentaduras, mas é bacana ostentar uma calça jeans de cintura baixa – não interessa se o “corpitcho” já não tem o vigor dos 20 anos. Não é surpreendente que o fenômeno só atinja indivíduos das classes mais abonadas, que podem se dar ao luxo de manter o estilo de vida juvenil indefinidamente (ou cujos pais têm condições de bancar esse luxo).
Antigamente, mesmo esses bem-nascidos tinham uma senha para ingressar na idade adulta: o fim dos estudos (e a conseqüente entrada no mercado de trabalho), quando o cidadão passava a ganhar seu próprio dinheiro e se sustentar sozinho. Isso acontecia, em geral, no fim da faculdade. Agora, a vida escolar pode se alongar ad aeternum: as pós-graduações e os cursos de extensão podem esticar a fase de estudos e a dependência financeira até por volta dos 27 anos. Sem contar que a conclusão da universidade não significa mais nenhuma garantia de emprego. Debaixo do teto e proteção dos pais, fica bem mais difícil mesmo saber onde fica o botijão de gás.
Biologicamente falando, existe ainda outra justificativa para os garotões de meia-idade: no ser humano, a adolescência tem idade certa para começar, a entrada na puberdade, por volta dos 11 anos. Mas não tem idade para terminar. Por isso, nas culturas primitivas, existiam rituais de passagem, justamente para marcar a diferença entre jovens e adultos. Até hoje, diversas etnias continuam promovendo esses rituais, por vezes bem dolorosos inclusive (veja quadro ao lado), mas indispensáveis para a entrada no convívio com os mais velhos. “Crescer invariavelmente dói, não tem jeito. O negócio é que as sociedades mais complexas acabaram criando uma cultura de proteção excessiva à criança e ao adolescente, que acaba não preparando para a vida adulta”, diz Francisco Assumpção, psiquiatra de crianças e professor do Instituto de Psicologia da USP. “Os pais assumem toda a responsabilidade pelo filho durante muito tempo. Portanto, é muito mais confortável continuar debaixo das asas de quem resolve tudo pra você. Afinal, ser adulto é não apenas correr riscos como também bancar o preço desses riscos.”
Maturidade = caretice
Mas o que acontece quando os adultescentes têm filhos? Aí é que está. Como a idade cronológica dessa turma passa dos 30, é evidente pensar que a geração dos eternos imaturos está procriando. O fenômeno tem chamado tanto a atenção que, segundo a revista americana New York, já existe até um nome para esses pais: os grups. Trata-se de uma contração da palavra grown-ups (“adultos”, em inglês), e se refere a um episódio do seriado Jornada nas Estrelas em que aparece um planeta governado por crianças, uma vez que os adultos desapareceram vítimas de um vírus. Existem vários tipos de grups: aqueles que escutam as mesmas músicas dos filhos, se vestem da mesma forma e que são ainda mais agitados do que as crianças. Ou ainda aqueles que disputam com eles o chocolate, o controle remoto da televisão, o videogame, o tempo na internet, a minissaia. O comportamento de não tomar nenhuma decisão para não ter que abrir mão de nada, que deveria ser típico do adolescente, passa a ser dos pais. “A mãe e o pai servem para dar referências, concentrar o poder decisório, para definir um sistema hierárquico. É por essa falha que vem sendo comum os jovens chamarem seus pais pelo nome e se referirem a eles como irmãos”, diz Assumpção.
O xis da questão é: amadurecer, virar gente grande, não precisa ser algo obrigatoriamente chato, como todo mundo pensa. Claro que pode usar bermuda e jogar videogame com os filhos. Mas existe uma diferença do ponto de vista emocional – é ele que conta. “Uma pessoa que passou da fase adolescente para a fase adulta é aquela que adquiriu a capacidade de tomar conta da própria vida, de responsabilizar-se por si mesma e por aqueles que precisam dela”, afirma Maria Tereza. Só isso. Ninguém é obrigado a deixar crescer um bigodão, cultivar a barriga de chope, comprar um carro sedã ou começar a ouvir Ray Conniff para entrar no enfadonho mundo dos adultos. Também não precisa casar, ter filhos, um emprego estável com carteira assinada, almoçar na casa da sogra, e criar labradores sorridentes correndo nos jardins de uma casa própria.
Nada disso define um sujeito maduro – essas são apenas escolhas de um determinado estilo de vida, que ficou impregnado na nossa mente como o estereótipo de adulto. “É preciso relativizar essa definição de amadurecimento, uma vez que normalmente ela vem contaminada por um senso moral” , diz o psiquiatra Luiz Cuschnir, da USP, autor do livro Homem – Um Pedaço Adolescente. “O que significa ser adulto? Ele é um sujeito que trabalha honestamente pelo país, é chefe de família, tem filhos? Como saber se ele, nos bastidores, não tem atitudes infantis como manter mil amantes, humilhar a esposa, sonegar imposto de renda ou puxar o tapete dos colegas de trabalho? Esse cara continuaria sendo adulto mesmo assim?”
O que importa de verdade não é a aparência, muito menos a escolha do estilo de vida. O que vale é a maturidade emocional. E isso um surfista ou roqueiro pode ter muito mais do que um bem-sucedido empresário.
Aceitar a própria idade
Para atingir a idade adulta com dignidade, a primeira coisa a lembrar é que não tem jeito: nossas células têm um tempo de vida e ninguém permanece criança para sempre. Ou seja: por mais que exista uma enxurrada de propagandas exaltando o valor e a beleza da eterna juventude, você vai, sim, ficar velho, querendo ou não. Então, um bom começo é fazer as pazes com o tempo. “Se você envelhecer sem amadurecer, certamente estará em débito com sua vida emocional, psíquica e física”, diz Luiz Cuschnir. Por outro lado, para a manutenção do equilíbrio, é preciso preservar para sempre dentro de nós o lado criança e adolescente da vida – é ele, por exemplo, que nos oferece a capacidade de aprender sempre, de nos adaptar a novas situações, de estar abertos a novidades e a um mundo de descobertas. Não fosse assim, quem hoje tem mais de 30 anos não saberia como usar o celular ou mandar um e-mail.
Mas qual seria então o ponto ideal do amadurecimento? Primeiro, tudo vai depender da referência e dos olhos de quem observa: uma criança de rua que trabalha desde os 5 anos de idade pode ser muito madura. Depende do que a gente valoriza como maturidade. Segundo Cuschnir, “o amadurecimento está ligado à forma como sua estrutura emocional se ajusta ao meio em que vive. Não dá para ir de chinelos a um casamento. Nem deixar de declarar o imposto de renda. Isso seria sinal de imaturidade, de alguém que não se adapta ao meio em que vive. Mas é perfeitamente possível fazer a declaração em casa, em 5 minutos, antes de jogar uma partida de videogame. E de chinelos”.
 
Virar adulto dói
Tatuagens, perfurações, circuncisões, cabelos arrancados. Dói – e muito – entrar para o mundo dos adultos em algumas culturas. A idéia desses povos, na verdade, não é promover nenhum show de horrores, pelo contrário – trata-se de uma celebração. A dor e, naturalmente, o temor e a ansiedade dos envolvidos têm o objetivo de demonstrar aos novos adultos a importância social do momento ou até mesmo de fortalecer os laços de solidariedade entre os iniciandos. Conheça quem pratica e como funcionam alguns desses rituais:
Tucunas (Amazonas)
A “festa da moça nova” é uma das principais celebrações da tribo tucuna. O ritual celebra a primeira menstruação e tem seu ápice quando as mulheres mais velhas da tribo arrancam os cabelos das meninas.
Nambiquaras (Mato Grosso)
O ritual de perfuração do nariz a sangue frio marca a passagem do menino do povo nambiquara para a vida adulta. Os adolescentes, nesse momento, devem demonstrar coragem, firmeza e força espiritual. Ou seja, agüentar a tortura sem implorar pelo colinho da mãe.
Sioux (EUA)
Os jovens passavam pelo ritual do o-kee-pa. Primeiro, seu peito era perfurado por afiados pedaços de madeira – sem anestesia, claro. Depois, presos a uma corda amarrada em um galho de árvore, seus corpos eram suspensos aos poucos. Com os pés saindo do chão, o sacrifício significava que o menino deixava de ser criança para virar guerreiro.
Xhosas (África do Sul)
Para serem considerados homens de respeito e adquirem status e direitos, adolescentes devem se submeter ao ritual de circuncisão. Líderes tribais cortam o prepúcio dos meninos utilizando um instrumento cortante primitivo, sem nenhuma assepsia nem o refresco de qualquer substância anestésica.
Ijos e iorubás (Nigéria)
Os adolescentes ijos, para se tornar adultos, devem copular com um carneiro na frente dos homens mais velhos. Entre os iorubás, a tradição mandava que o jovem caçador transasse com o primeiro antílope que matasse.
 
Homem, um bicho criança
O ser humano é um animal que prolonga sua infância ao máximo. Isso, na linguagem dos biólogos, se chama neotenia. Nenhuma outra espécie se compara a nós nesse quesito. De acordo com o etólogo (especialista em comportamento animal) César Ades, da USP, essa característica é uma bela vantagem. “Nas outras espécies, o aprendizado é restrito à infância. O filhote olha e aprende com os adultos. Para eles, a imaturidade é um mecanismo de aprendizagem. Já o ser humano, por ser neotênico, é capaz de aprender o tempo todo”, diz o pesquisador. O que acontece com o bicho homem é que ele já nasce mais exposto, mais dependente e prematuro, precisando de mais cuidados que os outros. E nossos companheiros no mundo animal, diferentemente de nós, são escorraçados pelas mães logo cedo: as fêmeas aceleram o desmame, uma vez que elas sentem a necessidade de se reproduzir novamente. Já as mães humanas gostam de ter seus filhotes “debaixo das asas” pelo maior tempo possível. Muitos jovens animais, como lobos e leões, ao entrar na idade certa, se afastam do grupo para finalmente se tornar adultos e buscar constituir família por outras bandas. Já o homem é o único que mantém vínculos familiares para sempre – muitos, inclusive, não saem nunca de suas casas. “Mas é preciso relativizar isso. Se o animal estiver em um contexto ameaçador, ele não se destaca do grupo, prolonga sua dependência ao lado dos familiares. Entre nós, podemos dizer o mesmo: se não há empregos, a situação do mercado está difícil lá fora, continuamos na casa de nossos pais até que tudo melhore.”
Para saber mais
Une Boussole pour la Vie – Les Nouveaux Rites de Passage - Fabrice Hervieu-Wane, Albin Michel, França, 2005
Amor Líquido - Zygmunt Bauman, Jorge Zahar, 2004
Maturidade - Maria Tereza Maldonado e Alberto Goldin, Planeta, 2004.
Homem – Um Pedaço Adolescente - Luiz Cuschnir, Saraiva, 1994.
 
 

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