domingo, 4 de maio de 2014

DIÁRIO DE CLASSE

Quando o juiz veste Prada, a moda dita a hermenêutica


A moda jurídica e as coleções da estação
Em texto de 1977, denominado O Jogo da Arte, Gadamer afirma que: “Faz muito tempo que nem tudo aquilo que acompanhamos com a consciência de nossa liberdade é realmente consequência de uma decisão livre. Fatores inconscientes, compulsões e interesses não dirigem apenas nosso comportamento, mas também determinam nossa consciência.”[1]A afirmação é forte e, talvez, possa servir como norte na reflexão sobre o hiato, enfim, o Gap, entre a teoria da decisão manejada pelo “senso comum teórico” (Warat) e as possibilidades da Hermenêutica Filosófica, lançando a discussão sobre a perspectiva da Moda[2]. A situação hermenêutica, ou seja, o campo no qualse poderá deitar a compreensão está historicamente condicionado por uma tradição que não pode ser desconsiderada, muito menos deixada à margem como um campo menor. A moda é uma variável importante, ainda que não protagonista.

A compreensão autêntica da noção de “Moda” (Simmel, Lipovetsky, Klein e Svendsen) pode nos auxiliar na busca das motivações da ausência de efetividade da Hermenêutica Filosófica no campo do Direito. Ainda que muito difundida — especialmente por Ernildo Stein e Lenio Streck — há um fosso entre os trabalhos acadêmicos e a implementação no campo das decisões judiciais[3]. Talvez, contudo, possa justamente este estranhamento (tão íntimo) servir de guia nesta investida. A Hermenêutica Filosófica é uma desconhecida. Enfim, decide-se fora do “círculo hermenêutico”. E é justamente este desconhecimento que se pretende marcar, a saber, este estar “fora de moda”, em desconformidade com espaços uniformizados pelas “quatro estações”.
Claro que se pode negar qualquer impacto da moda. Mas isto seria desconsiderar o que se passa, talvez se acreditando, demais, nas suas convicções... A “hermenêutica tradicional” continua operando com noções que não fazem mais sentido do ponto de vista hermenêutico, mas estão na moda. Esse dilema contemporâneo, a saber, a discussão filosófica tão ultrapassada como a discussão entre objetivistas (vontade da norma) e subjetivistas (vontade do legislador) continua na “moda”, precisa ser indagado na sua perspectiva autêntica.
Realismo jurídico tropical?
Pode-se dizer que nos encontramos na era do “realismo jurídico tropical” em que a lógica que preside este modelo é a dos informativos etiquetados com as grifes com durabilidade efêmera, de uma semana, aliás, como as coleções da grife Gap. Até a próxima semana não se sabe, de fato, o que pode ter mudado. O aumento da velocidade constante impede, também, a possibilidade de reflexão. Os informativos são uma espécie de adição, de vício, dos consumidores compulsivos de jurisprudência. A última edição da interpretação (sic) ocupa o lugar da última versão da moda e como a maioria não quer aparentar estar out, o sentido migra “automaticamente”. O paraíso da funcionalidade impede que as reflexões se postem de maneira constante, dada a fragmentação do momento. O produto (verbete) nesta nova economia simbólica do Poder Judiciário decide desde antes e pelo sujeito. Não lhe concede, ademais, espaço para dizer o contrário. O argumento da autoridade toma o lugar da reflexão, impondo o sentido aparentemente estático e paradoxalmente cambiante. É a ostentação do novo.

Joga-se, assim, de um lado com a premência de estar in e, de outro, com a irracionalidade do mercado consumidor. O cenário judiciário acabou, pois, transformando-se no cenário próximo ao da moda. Pode-se apontar que, de um lado, o sujeito deficiente filosoficamente e formatado a partir da Filosofia da Consciência acolhe a última verdade apresentada, enquanto, por outro, o sujeito descobre que não há mais verdade verdadeira e se apoia na estrutura paranóica que lhe diz a verdade; não qualquer verdade: mas toda a verdade. Neste jogo de lugares, todavia, o papel de enunciação do sujeito resta aterrado pelo receptor inerme da sideração de sentidos que lhe é apresentada, no que já denominei de “Hermenêutica do Conforto”[4]Just in time. O sujeito que não está por dentro dos últimos informativos, pelo que se passa, acredita que está por fora. O consumo de significantes transborda a razão. Buscava-se, até pouco tempo, razões para reflexão. Hoje a razão já é vendida com a aparente reflexão pronta, embalada em papel de presente aparentemente hermenêutico. O excesso faz seu efeito de exceção, sendo o Dr. Google o repositório final.
A pressa e a urgência são baseadas em um mecanismo de premência articulado em face de variáveis mercadológicas, cujo rigor racional cede espaço a contingências. Ela implica no estabelecimento de campo autônomo (mecanismo)_ pelo qual a articulação dos objetos que são mostrados no ambiente jurídico terão espaço e aceitação. A aceitação ou rejeição das novas tendências, de regra, depende do movimento propagandístico aparentemente “de carona”, a saber, do que “se diz” sobre os novos objetos da interpretação, como se verá, cuja qualidade é subtraída em nome do conforto[5].
Maison da Moda Jurídica
As decisões judiciais deixaram de dizer o caso. Elas são produzidas para serem vistas. O computador e a internet propiciaram uma vitrine para decisões judiciais. Reproduzem-se como metâmeros. Orquestradas pelos órgãos de cúpula e na lógica da Orquestra Judicial, espraiam-se como uma sinfonia única, para todo o sistema. Há uma compulsão por admirar, copiar e legitimar quem nos conduz. A decisão judicial, pois, está vestida com as roupas da última coleção e garantida pela grife: STF e STJ. E a moda jurídica atende a interesses não ditos e muitas vezes obscenos. A lógica desta produção sem limites não é a de um melhoramento ou mesmo de um ultrapassado progresso. A lógica que preside esta situação é interna e de autorreprodução. As edições dos mesmos livros trazem na capa “atualizado até o dia tal” como se isto garantisse o atendimento das novas tendências ditadas pelas grandes Casas da Moda Jurídica (STF e STJ).

A lógica do mundo da moda, ao adentrar no campo do Direito, desfaz a noção de tradição. A mudança contínua dos referenciais implica na ausência de uma consolidação do enleio social. A moda não se vincula à tradição, mas à escolha. E escolha é ato de vontade, bem aponta Lenio Streck. Não é hermenêutico. Dito de outra forma: o Direito quando gira em torno da moda não atende a racionalidades. Gira por gostos, caprichos, questões estéticas e econômicas. A sedução da novidade é o centro referencial do semblant. O sujeito, ao mesmo tempo livre das amarras da tradição e preso aos desígnios da moda, transforma-se em presa fácil dos discursos da eficiência, do pragmatismo, os quais podem ser chamados de “discurso do conforto”. O espírito de nossa época é da “eficiência”, atendida uma lógica de meios e não de fins (Jacinto Coutinho e Júlio Marcellino Jr). A transparência dos informativos implica em coleções semanais e o sujeito precisa, para se achar in, decidir conforme a última tendência, afinal, quem quer ser tachado de fora de moda? É justamente nessa excentricidade, nesse lugar de borda, que nos encontramos hoje. A leitura pode parecer pessimista, e o é. Talvez sejamos jurássicos. O paraíso da inautenticidade prevaleceu. E as tentativas de reerguer esbarram, na base, no “analfabetismo funcional dos atores jurídicos”.
Julgando sem entender. Da decisão à mera adesão.
Entre a decisão que serve de paradigma e a decisão tomada com base na primeira há um fosso de sentido preenchido pelo imaginário de uma analogia ingênua. A decisão paradigma real é substituída pelo signo simbólico que representa e, não raro, sua aplicação é imaginária, a saber, ela serve para legitimação de qualquer decisão, ainda mais quando fundamentada exclusivamente em verbetes de ementas. É impossível preencher o fosso do real na ementa de uma decisão. Além do que pressupõe uma condição estática do mundo que se replica. A relação entre uma ementa e o caso que se diz aplicar é arbitrária. E isto é ingênuo, mas vende, e faz “decisões judiciais”.

A contingência do caso — e seu contexto inigualável — resta soterrada pela ilusão do já-dito. Uma decisão antecedente, uma orientação jurisprudencial desonera a responsabilidade pela enunciação “como se” fosse possível o sujeito se desincumbir do seu lugar (Maurício Ramires e Dalton Sausen). Não pode a jurisprudência ser tratada como um fim em si mesmo ou ainda uma interpretação declarativa e desonerativa. A jurisprudência não é, nem pode ser, sinônimo de hermenêutica, muito menos de fundamentação, dado que demandam um contexto para somente, então, fazer sentido. Decorre justamente deste lugar uma responsabilidade que não se pode fugir, nem oscilar. A decisão tinha uma marca e uma singularidade. Hoje se pode falar em banco de sentenças. Por elas tudo já está dito e não há mais decisão. Passa-se à adesão.
O fato de a moda possuir um papel considerável, ainda que não preponderante, quem sabe, precisa adentrar no círculo hermenêutico, passando a ser uma variável do sentido, constando assim: Vistos, etc.. Decisão atualizada até o informativo número 461 do STJ. Essa posição do sujeito, todavia, implica uma responsabilidade. Negar esta nova economia das decisões judiciais parece ser o caminho mais fácil, apesar de ilusório. A ilusão, como tal, traz certo alívio, acompanhado, claro, de uma angústia recalcada, cujo preço, não raro, se faz no corpo do sujeito. A tradição pode constranger o sujeito sem que com ele se confunda, dado que é somente no momento em que o sujeito realiza o corte, abre-se para enunciar.  Os constrangimentos somente podem funcionar se forem introjetados por mecanismos simbólicos advindos da tradição.
A Hermenêutica Filosófica aponta justamente que não se pode tudo, enfim, que todos os estilos pessoais guardam uma referência coletiva e que não se pode fazer um idioleto, ou seja, uma língua individual (André Karam Trindade e Rafael Tomaz de Oliveira). De certa forma a semiologia do poder (Warat) precisa ser invocada para se mostrar que o seu lugar é dominado.  Liberados da tradição e munidos de criatividade e individualidade, sem dívidas, nem amarras, o sujeito sente-se liberado para dizer o que quiser, não raro sob o semblant de um mal-dito. O pluralismo democrático da louvação do sujeito solipsista gera o furor dos sentidos, no qual o discurso da moda ocupa um efeito devastador.
Diálogo entre dois magistrados: 
— "Concordas com a decisão?"
— "Sim, se for do Supremo", responde o juiz que decide conforme a moda. 
— "Mas e o conteúdo, você concorda?", pergunta o primeiro magistrado. 
— "E precisa? A ementa já me satisfaz."

Para isso precisamos opor a nossa recusa, procurando inserir a responsabilidade do sujeito, sempre, insistindo no que se passa no cotidiano. É preciso, assim, resgatar a enunciação e a compreensão autêntica, via Hermenêutica Filosófica. Se for demais, continuemos com o desfile de moda. Justice Fashion Week?

[1] GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da Obra de Arte. Trad. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 49-50
[2] Texto elaborado a partir do livro Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material, 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, de autoria de Alexandre Morais da Rosa. O texto foi trabalhado por Adalberto Narciso Hommerding: confira aqui
[3] Cabe destacar a existência de autores (no Direito) que trabalham na mesma linha desvelada por Lenio Luiz Streck: André Karam Trindade, Maurício Ramires, Rafael Tomaz de Oliveira, Marco Marrafon, Wálber Carneiro, Clarissa Tassinari, Marcelo Cattoni, Francisco Borges Motta, Júlio César Marcellino Jr, dentre outros.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[5] Trata-se, em resumo, de consumir imagens e não texto. Por isto, talvez, não se consiga entrar no círculo hermenêutico, uma vez que não se trata de dialogar com o texto, mas com a imagem estática que dele deflui.  A imagem possui, neste lugar, uma função de deslocar o sentido simbólico, limitando, por assim dizer, as possibilidades de deslocamentos. A Súmula Vinculante, diz Lenio Streck, pode ser compreendida por aqui.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 3 de maio de 2014

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